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Marcos Santos USP Imagens
Tem sido difícil convencer os mais velhos a ficarem em casa durante a pandemia do coronavírus. Filhos e netos vêm gastando saliva, mirabolando ideias e se desentendendo com pais e avós na missão de explicar a necessidade do isolamento.
“Ah, mas eu sou uma pessoa de fé em Deus”, “Vou só ali rapidinho e já volto” ou “Você acha que vou passar meses sem ver meus netos?” são algumas das frases mais ouvidas pelos mais jovens em casa. Isso sem contar o silenciamento e as saídas escondidas.
Uma pesquisa do instituto francês Ipsos em 12 países mostrou que, no final de fevereiro, 80% dos italianos “acreditavam fortemente” que a mídia exagerava no impacto da doença. Em duas semanas, quando o número de casos passou a crescer assustadoramente, esse percentual caiu para 29%. Esses números mostram como a ficha da maioria das pessoas demorou a cair.
“Minha mãe, de 64 anos, continua saindo. Esses dias quando acordei, ela já tinha ido e voltado da padaria. Mas pendurou um terço na porta para se proteger”, conta uma leitora da Marco Zero.
“Lá em casa a situação é difícil porque meus pais têm mais de 70 anos, ela é diabética e hipertensa e ele é cardiopata. Já sabemos de todos os procedimentos há um tempo porque meu irmão mora em Madri. Mas não foi suficiente. Não sei se é um processo de negação ou se eles seguem a linha do ‘Não vamos nos desesperar, não é pra isso tudo’. Percebemos um silenciamento muito grande”, relata um outro leitor.
“Eles estão saindo para resolver coisas. Não têm internet banking, não sabem trabalhar na web. Meu pai trabalha com tradução, não tem manejo com tecnologia, não tem impressora em casa”, detalha.
“Os mais velhos dão as normas, não recebem as normas”. Essa é uma das explicações da psicóloga Patrícia Raquel Barbosa, especialista em análise bioenergética e arteterapeuta em formação, sobre o porquê da resistência, sobretudo daqueles que têm renda ou aposentadoria própria e vivem de forma mais independente.
“O enrijecimento é natural e, para os mais velhos, é mais difícil sair da rotina e lidar com o novo”, explica Larissa Vieira, psiquiatra. “Já é difícil para todos lidar com o isolamento e a cartela de opções fica mais restrita para os idosos que não fazem uso da tecnologia”.
“Muitas vezes é revoltante para esses idosos tirá-los a autonomia e criar uma situação de dependência, porque eles não podem sair para pagar uma conta nem ir ao mercado, por exemplo. Sabemos que nem os idosos passaram por uma situação como essa. Tudo é muito novo e os mais velhos têm na cabeça que já viveram muito, têm muita experiência de vida e que não devem entrar nessa. E aí terminam também por não acreditarem muito e entram nessa resistência de não querer se submeter a uma norma que venha de fora”, complementa Patrícia.
O processo de conscientização muitas vezes envolve uma relação de poder, observa.
Há também um recorte de classe nesse cenário. Os idosos que contam com uma pequena renda ou uma pequena aposentadoria não costumam ter uma segunda opção para se sustentar e se sustentar o restante da família. Por isso não conseguem parar de trabalhar ou de gerir a casa.
Para os homens a aceitação também pode ser mais difícil por causa da masculinidade, do homem super poderoso, corajoso, que tudo tudo enfrenta.
Além disso, quanto mais velha a pessoa, mais trabalhada tende a ficar a questão da fé para quem é religioso.
A preocupação do enclausuramento dos idosos se torna também o adoecimento mental, para que a mudança de rotina não gere somatizações e fragilize a imunidade. Esse momento exige então muita empatia, como indica Patrícia e Larissa.
“São pessoas com idade já avançada, história de vida longa, com suas construções emocionais, de personalidade, de vida. Desconstruir isso é difícil. Então a juventude se colocar nesse lugar é muito importante”, aconselha a psicóloga.
Em vez de bater de frente, é preciso entender e pensar como ajudar a contornar, avalia Larissa. Ela acredita que o melhor caminho é o da compreensão e do diálogo, em vez de imposição.
“É preciso ouvir, entender e respeitar. E aí colocar os argumentos num lugar de conciliação em relação às novas rotinas. Tentar trazer as novas informações conversando e respeitando as convicções de cada um, com muito amor e paciência”, diz.
Perto de completar 91 anos, a artista plástica Tereza Costa Rego, já vive a quarentena desde janeiro. Recuperando-se de uma queda que lhe custou fissuras na coluna, desde então ela está a casa da filha e convive com um colete cervical, mas continua pintando pequenos fragmentos de quadro.
Com a tranquilidade que não terá a rotina alterada mais do que já foi, ela resume com um misto de bom humor e filosofia a resistência dos idosos em ficar em casa:
“Talvez seja porque, quando a pessoa passa dos 90 anos, como eu, perde a fé nos micróbios. Só pode ser isso”.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com