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O gosto amargo da missa de 1 ano da morte de Olavo de Carvalho

Marco Zero Conteúdo / 25/01/2023

Crédito/Divulgação

Por Lula Pinto*

O primeiro aniversário da morte do escritor bolsonarista Olavo de Carvalho não passou em brancas nuvens em Casa Amarela, um dos bairros mais populares da Zona Norte do Recife. Sob a responsabilidade do padre Paulo Sérgio Vieira Leite, a Igreja da Harmonia foi palco de uma homenagem a um dos responsáveis pela elaboração da linha ideológica que dá forma à extrema direita brasileira. A lembrança de Olavo aconteceu por meio de uma missa realizada durante a noite quente e abafada que fazia neste dia 24 de janeiro, durante a qual se celebrou também a passagem de quatro outros fiéis vinculados direta ou indiretamente à paróquia.

Às 19h00, quando a cerimônia começou, não mais que 40 pessoas estavam presentes na nave principal da igreja, que passou recentemente por uma reforma interna. O público fiel nesta terça-feira não destoava do perfil majoritariamente branco de classe média e pobre que frequenta as missas nos dias da semana. Exceção à presença de um já manjado conjunto local de seguidores dos cursos que o ex-astrólogo dava no Youtube, antes de essa plataforma o expulsar pelos discursos de ódio que propagava.

Percebi que Olavo foi o único dos mortos a ter o nome inteiro pronunciado ao longo da cerimônia. O que é compreensível: o autor preferido dos filhos de Bolsonaro, e de diferentes linhas de extremismo à direita no Brasil de hoje, estampou um dos posts do perfil da paróquia no Instagram, que recebeu uma chuva de comentários negativos e foi deletado no início da noite, pouco antes da missa começar. E o padre precisou, assim, logo no início do encontro, dar algumas justificativas para manter Olavo de Carvalho na lista, seguindo a solicitação que geralmente é enviada por parentes ou admiradores da pessoa homenageada.

A essa altura, passados somente cerca de 10 minutos do início da missa, e de ter me postado para assisti-la, achava que o calor teria arrefecido por causa dos muitos ventiladores que somavam zumbidos ao trânsito lá fora. O Pároco Paulo Sérgio Vieira Leite desenhou o argumento que lhe conduziu até o final das homenagens: por um lado, a coincidência do dia 24 de janeiro, data da morte de Olavo, ser uma data reservada pela Igreja Católica para lembrar de São Francisco de Sales. Nascido em meio aristocrático, na família dos Barões de Boisy, em 1567, São Francisco de Sales é o patrono dos escritores e dos jornalistas.

E, por outro, a associação da própria vida de Olavo de Carvalho e sua obra à vida de São Francisco de Sales e seu trabalho junto à Igreja Católica num sentido muito específico. O Pároco Paulo Sérgio Vieira Leite afirmou, ressaltando a importância de Olavo de Carvalho para a Igreja que: “Conheço muitas pessoas que se converteram (ao Catolicismo) por conta dos ensinamentos de Olavo de Carvalho”. E completou afirmando que, “Assim como São Franciso de Sales, que através das suas pregações ajudou muitas pessoas a voltarem ao seio da Igreja, Olavo fez da profissão dele seu apostolado”.

Os dois argumentos convergiram, então, na reflexão do Pároco Paulo Sérgio Vieira Leite, para um ponto pertubador: a necessidade de focar na piedade como instrumento para ler o mundo, as ações das pessoas e em especial a do senhor que vivia em Richmond, morto há um ano. Foi nesse ponto que me lembrei que o autor já havia argumentado que a cultura inferior de civilizações africanas é a razão da escravização que se intensificou em África partir do século XVI. E que por isso, negras e negros não merecem nenhum tipo de políticas de reparação no mundo contemporâneo.

Olavo também foi um apologista da superioridade da cultura ocidental em sua matriz judaico-cristã e da filosofia Grega sobre as de culturas de África, o que lhe serviu, em determinado ponto de suas aulas e escritos, a afirmar que negras e negros se beneficiaram dos processos de colonização.

Card divulgado nas redes sociais oficiais Paróquia do Bom Jesus do Arraial - Igreja da Harmonia

Nesse ponto passei a me fazer aquela pergunta retórica que mutos andamos nos fazendo a tempo demais talvez: como foi que chegamos até aqui mesmo? Eu já suava um bocado, apesar disso não deixei de me arrepiar com a ideia que havia na entrelinha daquele argumento, que eu ouvia em stéreo – são muitas as caixas de ressonância. Porque o Pároco Paulo Sérgio Vieira Leite sugeria, apoiando-se num personagem da história da Igreja Católica, identificando o percurso de Olavo ao de São Francisco de Salles e no argumento básico do cristianismo (o amor e o perdão), algo que me pareceu a mais uma anistia, uma remissão ao horror, o tipo de conciliação que a dinâmica social brasileira não pode mais tolerar.

“Todos somos chamados a sermos instrumentos de Deus. E para sermos instrumentos de Deus, precisamos ter coragem, não passaremos ilesos, vamos sofrer decepção, dificuldades, difamação, tudo. Mas é preciso ter fé em Nosso Senhor. Então vamos nos preparar para a nossa celebração, protegidos por esse grande santo que encontrou atalhos para os casos mais graves tendo em vida piedade. Porque é a piedade no coração da gente, ter piedade é a forma de ver as coisas de maneira diferente. É a piedade que nos faz entrar na mensagem de hoje, fora disso é só ideologia, é só guerra, é só confusão, é tudo, menos, vida cristã”, ecoavam nas caixas de som a voz do Pároco.

Na sequência, um dos integrantes do coral entoou um “Senhor, que vieste salvar, os corações arrependidos”, ao que a nave respondeu: “Piedade, Piedade, Piedade de nós; Piedade, Piedade, Piedade de Nós”. “Ó Cristo que vieste chamar os pecadores humilhados”, a nave: “Piedade, Piedade, Piedade de nós; Piedade, Piedade, Piedade de Nós”. Senhor que intercedeis por nós, junto a Deus Pai que nos perdoa”: “Piedade, Piedade, Piedade de nós; Piedade, Piedade, Piedade de Nós”.

Estava assim entre esses pensamentos, mas percebendo também que nada nas palavras do Pároco Paulo Sérgio Vieira Leite gerou reação perceptível nas pessoas que estavam ali para honrar seus mortos. Ao final da missa, me aproximei de alguns fiéis para comentar a forte presença da defesa do trabalho de Olavo de Carvalho, feita pelo Pároco, saber como interpretavam ou consideravam a celebração. Ninguém me deu um depoimento definido. Ou por não querer comentar ou por não saber do que se travava.

Depois de argumentar que não devemos julgar e condenar ninguém por seus atos em vida e de lembrar a necessidade de rezar pelos cristãos como era o mais célebre falecido, uma das falas do Pároco Paulo Sérgio Vieira Leite voltou a tratar de forma direta de Olavo e da polêmica que havia se armado no tal post da Paróquia.

O padre defendeu a necessidade de rezar para o cristão que se arrepende, diferenciando esse ato da simples homenagem, e completou: “Eu fico surpreso com o número de pessoas convertidas através da palavra de Olavo de Carvalho, aqui mesmo há pessoas. Eu tenho tido muitos contatos com essas pessoas, que tem se aproximado da religião, deixado de ser protestante, outras… através desse homem. Que era desbocado, que tinha uns radicalismos, quem de nós não tem na época eleitoral?”. Antes de finalizar a celebração, o Pároco Paulo Sérgio Vieira Leite ainda confirmou que há diversos pontos nos escritos de Olavo de Carvalho que valoriza.

Sem perceber, a meio tom entre ligeiro e devagar, numa igreja meio cheio e meio lotada, sob o calor pleno de uma noite na Zona Norte, o Pároco Paulo Sérgio Vieira Leite homenageava sim um ideólogo do caos e da banalidade do mal.

Eles devem ser sempre bem lembrados. Lembrá-los bem significa a necessidade ética de qualquer pessoa e instituição de colocá-los diante do valor da vida em toda as suas formas e intensidades e fazer escolhas.

Saí da igreja da Harmonia com um gosto amargo na boca e com um frio, apesar do calor, me perguntando coisas. Até que ponto vamos presenciar as diversas formas de defesa da anistia? Qual o real nível da aproximação de setores de instituições como a Igreja no Brasil de grupos e formadores da extrema direita?

* Lula Pinto é jornalista, formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é coordenador do Mestrado em Indústrias Criativas e professor do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco.

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