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Ana Cristina Fernandes, 60 anos, é doutora em geografia econômica pela Universidade Sussex, tem mestrado em sociologia urbana pela Unicamp e se graduou em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco, onde atualmente dirige a Coordenação de Articulação e Promoção de Parcerias Estratégicas. Foi a ela que a Marco Zero Conteúdo procurou para entender o que está por trás da crise de combustíveis que paralisou o Brasil e culminou com a demissão do presidente da Petrobras, Pedro Parente. Em duas horas de conversa, a pesquisadora traçou um panorama da disputa geopolítica em torno do petróleo no mundo e da estratégia brasileira de exploração soberana dessa riqueza. Agora considerada em xeque. Para Ana, existe um processo deliberado de desinvestimento na Petrobras para garantir vantagens competitivas a empresas estrangeiras que estão tomando o mercado nacional de derivados. É esse o sentido da política que vincula os preços internos dos combustíveis às oscilações do preço internacional do petróleo e às flutuações cambiais, que vendeu os gasodutos construídos com recursos públicos e reduziu o refino de óleo nas refinarias do Brasil, subsidiando derivados importados de outros países, especialmente dos Estados Unidos. “É um crime de lesa-pátria”, define. Na entrevista, ela também fala do papel da Operação Lava Jato, da tática americana de desestabilizar a Venezuela e da incapacidade de análise das elites brasileiras: “estreitas e que se contentam com pouco”.
No momento em que a Petrobras volta ao centro da discussão econômica no país, como posicionar o seu papel estratégico?
O esforço de criação da Petrobras lá atrás com Getúlio Vargas foi no sentido de assegurar que essa grande riqueza que foi descoberta no país (na época, basicamente na Bahia) fosse capaz de gerar benefícios para o povo brasileiro, para a economia brasileira. Os esforços passavam por tecnologia. Foi então criado um centro de pesquisa de desenvolvimento de tecnologias necessárias para se desenvolver essa atividade, o Cenpes (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Leopoldo Américo Miguez de Mello), que funciona no campus do Fundão da UFRJ. Formamos geólogos, engenheiros, especialistas em mecânica de alta precisão. Você tem uma decisão política, estratégica, do governo brasileiro, não apenas de fundar uma empresa que vai explorar petróleo, mas dotar essa empresa das condições tecnológicas para que essa exploração seja autônoma. Pensaram: `ou desenvolvemos tecnologia aqui ou vamos ficar na mão de quem detém essa tecnologia`.
Uma decisão pela soberania nacional…
Essa decisão incomodou muito desde o começo. As tentativas de destruir a Petrobras são muito recorrentes. A gente não teve só essa agora e aquela lá nos anos Fernando Henrique Cardoso, tivemos várias outras anteriores. No meio da recente documentação sobre o Brasil liberada pelo governo americano tem um telegrama do vice-diretor da CIA, Vernon Walters, que havia sido adido militar da embaixada americana no Brasil, em que ele argumenta que tinha conseguido chegar a um entendimento com o presidente Ernesto Geisel de que finalmente as reservas brasileiras poderiam ser exploradas por empresas estrangeiras. É um telegrama de 1974. E olhe que a gente não tinha muito petróleo naquela ocasião. Mas o telegrama já mostra o interesse estratégico americano na exploração desse petróleo.
A capacidade de explorar soberanamente o petróleo faz diferença na geopolítica internacional?
Quando houve a queda da União Soviética foi aquela degringolada geral e eles privatizaram tudo muito rapidamente, inclusive a companhia de petróleo. Foi um desastre. A Rússia que tem a quinta maior reserva de petróleo do mundo. Faz alguns anos, já com Vladimir Putin, ela foi reestatizada. Todo esse capital que Putin utiliza para se manifestar com mais força na disputa contra o que ele chama de imperialismo não teria o mesmo efeito se essa empresa fosse privada. Ela é um componente fundamental do país no diálogo frente a outros países, especialmente em relação a aqueles que têm uma posição hegemônica no mundo, como os Estados Unidos, e mesmo a França e a Inglaterra. São poucos os países que têm essa condição. Cinco países detém uma parcela muito grande das reservais mundias em relação ao total. A Venezuela tem 25% das reservas mundiais, 22% na Arábia Saudita, 13% no Iraque e no Canadá. Esses países têm uma riqueza muito grande que deveria ser um instrumento fundamental para o seu desenvolvimento.
O petróleo explica a pressão internacional e especialmente dos Estados Unidos contra a Venezuela?
Os países que fazem o jogo dos Estados Unidos geralmente, como é o caso da Arábia Saudita, o segundo maior produtor de petróleo, estão pacificados. A gente nunca ouviu falar de nenhum descrédito, nenhum problema de ditadura na Arábia Saudita, quando a gente sabe que o que existe lá é uma monarquia absolutista, uma ditadura estabelecida há muito tempo. Esse argumento, por outro lado, é constantemente utilizado contra a Venezuela, que possui as maiores reservas do mundo, 25% do total. São dois pesos e duas medidas que mostram nitidamente como os discursos e as narrativas são utilizadas para assegurar acordos. ´Nós (os Estados Unidos) temos acordo com a Arábia Saudita e deixamos eles protegidos. Nós não temos acordo com o atual governo da Venezuela, nós vamos derrubar esse governo`. Todos os países que têm grandes reservas e que de alguma forma não montaram alianças com os Estados Unidos vivem uma situação de instabilidade política: Irã, Iraque, Venezuela, Kuwait, Líbia, Rússia. Para estes países terem condições de explorar adequadamente suas reservas – do ponto de vista da sustentabilidade no tempo, porque são reservas finitas, recursos não-renováveis, estão colocadas basicamente duas condições. Uma é você conseguir estabelecer uma posição de soberania do país sobre essa exploração. E a outra é deter tecnologia para isso.
Foi esse o caminho que seguimos no Brasil a partir de Vargas e depois com os militares…
A exploração é uma atividade complexa. A cadeia produtiva é muito longa, envolve vários setores de atividade econômica e tem uma repercussão sobre o conjunto da sociedade e da economia. No caso brasileiro, demanda um investimento de pesquisa muito grande que é financiado pelo conjunto da sociedade porque a Petrobras fez o centro de pesquisa, mas mantém cooperação com as principais universidades públicas brasileiras que desenvolvem pesquisas de ponta na área. Foi preciso desenvolver muita tecnologia nacional para extrair o petróleo do pré-sal. Lembremos que quando as reservas foram descobertas no Brasil, no governo Lula, muita gente, especialmente a grande mídia, dizia que sua exploração nunca seria viável. (Hoje o pré-sal é responsável por 50% do petróleo extraído no Brasil). Você tem a exploração, e também o refino e a distribuição. Então a Petrobras tem uma capacidade de multiplicar qualquer investimento que ela faça de tal forma que se calcule que 10% do PIB brasileiro decorre dessa empresa. O seu campo de efeito é estrategicamente imenso para o desenvolvimento do país.
Houve um acúmulo de conhecimento tecnológico de décadas de investimento público, não é?
O investimento que foi feito começa lá atrás nos anos 50 e o conhecimento e a capacidade de operação vão se acumulando no tempo. Dos primeiros ensaios até a capacidade de refino foram 20 anos. O refino, lá nos anos 1970, foi resultado de um grande esforço feito pelo governo brasileiro, então no regime militar, que tomou dinheiro emprestado a juros muito altos, inclusive dos petrodólares, que haviam inflado os bancos europeus justamente na sequência do primeiro choque do petróleo em 1974.
Construímos nossas refinarias com os petrodólares?
Em 1973, você tem um processo inflacionário muito grande no mundo, especialmente no mundo desenvolvido. Os caras lá na Arábia resolvem botar o preço do petróleo lá pra cima e nadam em dinheiro. E esse dinheiro então serviu para financiar, em alguns países, a estratégia de substituição de importações justamente dos derivados de petróleo que, na ocasião, cotados em dólar, forçavam muito a balança comercial brasileira. Então foram construídas diversas refinarias, como a de Camaçari, na Bahia. Naquela ocasião a gente importava bem mais petróleo porque não havia tantas reservas, mas reduzirmos a despesa fazendo refino dentro do país ao invés de comprar o produto refinado de importadores. Um passo importante. A gente consegue melhorar o refino e segue fazendo estudos com relação a continuar a exploração de novas reservas e a gente chega então à Bacia de Campos, que dá um salto na produção de petróleo brasileiro. Isso é antes do pré-sal. Final dos anos 80 e começo dos anos 90.
O cenário muda a partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso para presidente?
O cientista político José Luis Fiori, da UFRJ, argumenta que o neoliberalismo só chega ao Brasil vinte anos depois do Chile (a partir do golpe militar contra Salvador Allende) porque o Brasil tinha construído uma estrutura produtiva industrial significativa e diversificada, que a introdução de uma política neoliberal iria destruir. Isso fez com que a classe empresarial resistisse. Quando Fernando Henrique consegue chegar ao poder, o Departamento de Estado americano põe de pé junto com os caras daqui o Plano Real. Ele é o instrumento essencial para se viabilizar negócios estrangeiros no Brasil. É muito importante a gente entender isso. E o Plano Real vai acontecer depois de 15 anos de inflação alta. Quinze anos de inflação alta para os empresários brasileiros é assim: eu me agarro com a capa de salvação. Seja o que deus quiser. Não dá mais para continuar assim. Então eles vão entregar alguns anéis para não perderem os dedos. E aí deu no que deu.
Apoiaram o governo, mas saíram perdendo?
Foi uma quebradeira geral no ABC paulista. Aí os empresários fizeram uma caravana para ir a Brasília. Fernando Henrique recebeu depois de muito tempo e deu tchau e bença, do mesmo jeito que ele deu tchau e bença para Antônio Carlos Magalhães com a abertura para o capital estrangeiro no polo petroquímico de Camaçari, em cuja cadeia de refino atuavam muitas empresas ligadas ao senador baiano. Fernando Henrique tava tão fortalecido que ele desdenhou as demandas dos empresários e continuou, seguiu adiante o processo de desnacionalização. A decisão de implantar o Plano Real é uma decisão estratégica para assegurar que o Brasil venha a ser um território de expansão do capital internacional e um território expressivo. Justamente no momento em que você tem as notícias das descobertas das reservas lá na Bacia de Campos.
Foi quando a Petrobras abriu o capital.
Uma das principais medidas de Fernando Henrique aos ser eleito é justamente levar ao Congresso a chamada Lei do Petróleo, junto com a privatização de outras empresas públicas como foi o caso da Telebras. A Lei do Petróleo estabelecia então pela primeira vez a quebra do monopólio da Petrobras, a abertura da empresa ao capital investidor internacional. Quando Fernando Henrique propõe essa lei, ela gera uma reação, gera um debate muito forte. Era como se fosse uma espécie de tabu que começou a ser revertido. Foi muito forte a reação e o que eles fizeram para assegurar o processo, sem chamar de privatização, e Pedro Parente (então secretário-executivo do Ministério da Fazenda) já envolvido nisso, foi uma negociação com governadores e prefeitos para que os hoyalties do petróleo, que viessem a ser obtidos com a exploração, pudessem ser distribuídos para os governos dos estados e os municípios. Coisa que não existe em nenhum lugar do mundo. É uma jabuticaba, como se diz. Então, com isso, ele consegue que as bancadas estaduais e os municipalistas, que estavam com muita força na época, pressionassem os parlamentares para aprovar a lei. Eu acho que esse foi o primeiro baque.
Um baque para o processo de industrialização nacional?
O processo de inovação é assim. Você não aprende a fazer as coisas de uma hora para a outra. E o nosso processo de industrialização, começando lá atrás nos anos 30, foi um em que as pessoas não acreditavam que a gente pudesse esperar. O tempo de desenvolvimento de tecnologia era longo demais. Então vamos importar. O petróleo possibilitou uma das poucas experiências no Brasil, por decisão política dos governantes, de desenvolvimento de tecnologia nacional. A mesma coisa os militares fizeram com o Ita (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), em São José dos Campos (SP) que gerou a Embraer, uma das cinco mais importantes empresas de aviação do mundo. Bom lembrar que gente também está enfrentando um momento crucial de perda de soberania nacional nessa área. Assim como foi decisão política também desenvolver tecnologia para a agroindústria com a Embrapa. Quando o país tomou a decisão política de desenvolver tecnologia internamente, nós fizemos um dever de casa exemplar.
A indústria naval nacional que havia crescido no período militar praticamente fechou com FHC, como isso aconteceu?
Quando Fernando Henrique assume, a Petrobras era um dos mais importantes mercados da indústria naval. E aí o que ele diz? `Não vamos mais subsidiar capitalistas descansados que têm reserva de mercado`. Esse é um discurso que cola muito facilmente. As pessoas ficam entusiasmadas com a ideia que o mais competente que se estabeleça e de que os incompetentes devem ficar à própria sorte. Só que as pessoas não se dão conta de que todos os países que hoje são competências mundias de inovação e desenvolvimento tecnológico tiveram e ainda têm grandes investimentos públicos a financiar esse desenvolvimento. Até hoje. Incluindo os Estados Unidos. Toda a indústria armamentista norte-americana e também a área de pesquisa em saúde humana são financiadas pelo governo americano com o envolvimento das grandes universidades na produção científica e tecnológica, beneficiando a indústria farmacêutica, eletroeletrônica, uma rede infindável. Então quando Fernando Henrique assume, ele toma a decisão de importar de Cingapura, de importar da Coreia os navios da Petrobras. Aí essa indústria definha.
Qual a repercussão?
O desemprego no setor foi fantástico, o Rio foi um dos estados mais atingidos e a gente passou a importar lá de fora. Aí começou a ter uma porção de acidentes, teve a P-36, você se lembra? Porque uma parte dessas atividades que eram desempenhadas por empresas subsidiárias da Petrobras, ou seja, estatais como ela, passam a ser terceirizadas, que vão fazer por um custo menor e sem o mesmo padrão de responsabilização. Eu não estou dizendo que seja a única alternativa e nem que a empresa pública vai existir sozinha. A gente vive numa economia de mercado e é importante que outras atividades aconteçam fora do campo governamental. Mas é ela o elemento impulsionador dos demais. Ela funciona com esse objetivo. Mas a Petrobras é um conglomerado que está perdendo seus braços. Pedro Parente vendeu muitos desses braços.
Mas, depois de FHC, com a eleição de Lula, o processo começa a ser revertido. Por que?
O Lula é muito ligado aos trabalhadores por conta de sua trajetória de vida. Sua preocupação é gerar emprego e ele enxerga muito rapidamente aimportância de uma empresa como a Petrobras. Se tem um setor que pode desencadear a abertura de muitos postos de trabalho rapidamente é este. Ele tem um grande benefício que é o fato de que a Bacia de Campos já estava produzindo bastante e finalmente a Petrobras acha o pré-sal. A Petrobras vai colocar para moer um conjunto de ações que vão dar sequência ao processo de expansão da empresa. Tome projeto para financiar a construção das competências tecnológicas e industriais públicas e privadas para fazer a empresa crescer. Eles criam o Prominp. Quem quisesse ser fornecedor da Petrobras, que estava ampliando sua demanda por uma quantidade enorme de produtos e serviços, tinha que se qualificar para chegar no padrão de qualidade exigido pela empresa. Conheço o caso de Mossoró. O efeito na economia local é muito maior do que simplesmente fornecer para a Petrobras porque aquele padrão de qualidade vai ser referência para os outros negócios que as empresas locais vão ter.
Agora, no governo Temer, como você disse, a Petrobras está perdendo os seus braços. Pode dar alguns exemplos?
Construir é mais difícil, demora mais. Mas destruir é mais fácil. Nos gasodutos o que é que acontece? Dilma faz um investimento grande para completar a rede de dutos no Nordeste e, depois de pronta, ela foi vendida na gestão de Pedro Parente. Vender é fácil. Você tem no Nordeste toda a rede de gasoduto vindo do Rio Grande do Norte para cá e pro Ceará. Tem outra parte, que é uma rede na Amazônia. Tem uma rede bem mais capilarizada no Sudeste e no Sul. Houve um investimento muito forte nos governos Lula e Dilma. Eles agora estão vendendo. Agora a Petrobras vai pagar aluguel para que esse gás que sai lá do Rio Grande do Norte possa passar pela rede do gasoduto. Já estamos pagando aluguel. É impressionante, mas o preço da venda desse gasoduto representa três trimestres desse aluguel.
E o governo também anunciou que vai vender algumas refinarias.
É interessante notar que eles colocaram no processo de privatização a Refinaria de Abreu e Lima, em Pernambuco; a Landulpho Alves (RLAM), na Bahia; a Alberto Pasqualini (Refap), no Rio Grande do Sul; ea Presidente Getúlio Vargas (Repar), no Paraná, mas não colocam as refinarias do Sudeste. Eu acho que essa é uma questão interessante para explicar. Por que as do Sudeste ficam livres? Obviamente os interesses de lá, dos industriais, são relevantes para os empresários pressionarem de forma que eles não incorram nos custos que os daqui vão ter que incorrer. Ou seja, os industriais e empresários dessas outras regiões vão pagar mais caro. No Sudeste, não.
A quantidade de óleo refinado no Brasil está caindo?
Essa é uma decisão muito perversa porque apesar da capacidade instalada, inclusive ampliada em anos recentes, você coloca as refinarais operando com capacidade ociosa muito grande e amplia a importação de produtos derivados do exterior, especialmente de empresas norte-americanas. Mas não fica só aí, o mais complicado é que o governo subsidia o preço dos produtos importados elevando, portanto, o preço das refinarias brasileiras. É isso que o senador Roberto Requião (MDB-PR) vem denunciando. O que mais importa nesse momento é abrir a caixa-preta dos custos de operação da Petrobras. Segundo estimativa de alguns engenheiros ouvidos pelo senador, o custo de produção do petróleo e dos derivados (diesel e gasolina) é muito menor do que a Petrobras cobra. O preço que a Petrobras tá cobrando por litro no mercado interno na refinaria, porque é a refinaria que vende para as distribuidoras, a própria BR e as demais, é 120% acima do custo de produção, segundo esses engenheiros. Então a margem de lucro é de 120%.
E para onde vão esses recursos?
Segundo Requião, esse dinheiro é transferido para pagar os dividendos dos acionistas e está subsidiando a entrada dos derivados importados por um preço menor. Por que os derivados importados estão entrando no mercado? Porque o preço da refinaria brasileira está sobrestimado e eles entram com um preço mais barato. É uma ação de lesa-pátria. Então, Pedro Parente atuava como um executivo cujo objetivo era destruir o mercado da empresa que ele dirigia. É uma situação absolutamente impensável em qualquer uma dessas empresas petroleiras que a gente conhece. O que o golpe fez, na verdade, foi botar de joelho a capacidade da nação brasileira definir os destinos dessa grande estrutura e desse grande patrimônio que é a Petrobras. Quer dizer que os beneficiários finais desse esforço feito por décadas pela sociedade brasileira vão ser os investidores estrangeiros?
Na prática o que estamos vendo é a privatização da Petrobras?
O que eles tentam evitar é a designação de que estão privatizando. Então o que eles estão fazendo? É desinvestimento. O que é desinvestimento? Você abrir mão de uma porção de atividades, vendendo, deixando de fabricar, subsidiando o que vem de fora. Mas o termo privatização, que está intimamente ligado na cabeça das pessoas como algo negativo, eles evitam.
Explique o caso dos poços de petróleo no Rio Grande do Norte.
Os poços em terra lá no rio Grande do Norte e ainda mais lá na Bahia estão em extinção, ele chamam de poços maduros. Mas existem vários, ainda há muitos, muitos lá em operação. Eu visitei lá e vi. E ai o que Parente fez? Tomou a decisão de encerrar as atividades lá no Rio Grande do Norte. Eu tenho um aluno petroleiro que trabalha lá no Rio Grande do Norte e ele me explicou que esses poços são menos desafiadores tecnologicamente, porque você está em terra, então eles servem como se fossem laboratórios de experimentação para as tecnologias que vão ser aplicadas em alto-mar. Então é preciso que a empresa mantenha esses laboratórios, e não se desfaça deles, justamente porque eles permitem que se façam algumas estimativas do que pode acontecer com aquelas matérias, com aquelas tecnologias quando elas estiverem em alto-mar. Eles estão fechando tudo isso. Vendendo.
Todo esse processo está relacionado à redução da influência internacional do Brasil?
Com certeza, não só porque somos o maior país da América do Sul, que tem uma importância estratégica enorme, afinal o que o governo brasileiro decidir influencia os vizinhos latinoamericanos, mais intensamente os sulamericanos. Posso dar o exemplo do papel que o Brasil exerceu na crise do Irã, durante o governo Lula, que acabou interferindo na decisão de outros países de não se alinhar tão diretamente aos americanos. Exercer esse controle sobre o governo brasileiro, para os americanos, é fundamental não só em função do petróleo, mas em função das diversas agendas que eles querem fazer prevalecer pelo mundo. Se vai estar em andamento uma invasão à Venezuela, depende muito da posição do governo brasileiro essa invasão ser aprovada. O Brasil tem um papel importante.
O enfraquecimento da posição do Brasil nos Brics também entra nessa equação geopolítica?
Derrubar Dilma não é só ter acesso às reservas brasileiras e ao mercado brasileiro de derivados, mas controlar, assegurar uma influência favorável aos americanos em vários fóruns. Os Brics com Dilma, especialmente com Dilma, e isso é muito relevante, foi uma construção. E de novo se você pegar as matérias de Míriam Leitão da época, o que é que ela falava? `Brics? O que é que é isso? Não tem que sustente esse bloco, por nenhum critério ele se sustenta`. Mas foi dada sequência e os países firmaram uma porção de acordos. Entre esses acordos eles criaram algumas coisas muito importantes.
Quais?
Uma delas foi o Banco dos Brics. O Banco dos Brics nasce para financiar o desenvolvimento econômico nos países menos desenvolvidos, que têm dificuldade de obter financiamento no Banco Mundial ou então só obtêm financiamento do Banco Mundial (criado e controlado até hoje pelos norte-americanos) se adotarem políticas bem ortodoxas, de ajuste fiscal, que foi o que fez Geisel tomar dinheiro emprestado dos petrodólares árabes. Mas por que? Porque não vinha com nenhuma rubrica dentro, de ter que fazer isso ou aquilo. Porque o Banco Mundial na época não queria emprestar se não fosse seguindo o seu receituário.
Os Brics também criaram uma espécie de fundo?
Sim. Um fundo monetário, ou seja, um fundo de estabilização para países que estivessem enfrentando problemas de instabilidade monetária. Um fundo monetário alternativo ao FMI. E para facilitar os acordos comerciais laterais, multilaterais, que representam hoje uma parcela muito grande do comércio mundial, estava em andamento a criação de uma moeda comum. Então você imagine. Uma moeda comum significa o que? Você não precisar mais do dólar como moeda conversível. A redução da demanda pelo dólar, portanto, a desvalorização da moeda deles e a possibilidade de uma moeda nova que poderia extrapolar as trocas comerciais dos Brics para outros países. Então, a capacidade desse bloco de viabilizar uma alternativa geopolítica concreta no médio prazo era muito grande. E Dilma foi uma grande estimuladora de soluções institucionais para a criação do Banco dos Brics.
Houve o enfraquecimento desse projeto multipolar dos Brics?
Quebrar o Brasil, ajuda a quebrar esse projeto alternativo. Hoje, os Brics não convidam o governo brasileiro para mais nenhuma atividade. O Brasil está fora de todas as atividades dos Brics. Em resumo, destruindo o Brasil, eles destroem uma parte importante dos Brics. Por isso que eles (as lideranças países dos Brics) estão defendendo Lula no fim das contas. É um bloco político que compreende que Lula sendo novamente presidente altera o pêndulo. O Brasil tem, com Lula, a possibilidade de fazer novamente um desvio nessa trajetória que fortalecerá os demais países também.
Como você vê o papel da Operação Lava Jato nesse processo?
Corrupção tá na origem da natureza humana. Se você olha direitinho a quantidade de gente que fura o sinal, deixa de pagar alguma coisa, sonega imposto, para numa calçada, não dá o troco certo… essa é uma coisa alastrada pela sociedade. Então é muito difícil você eliminar. Mas você tem que ter algumas medidas para manter sobre um determinado controle porque a corrupção generalizada é extremamente perversa para o funcionamento da vida de uma forma geral. A China tem problema de corrupção do mesmo jeito, os Estados Unidos não ficam atrás. Eu acho que o que faz a diferença é que nesses países, a China entre eles, existe uma noção de nacionalidade. As pessoas valorizam a sua nacionalidade, o seu país e têm um projeto de país, de nação. Eles não aceitam a possibilidade de você ameaçar esse projeto, que vai ser daninho para a coletividade. No Brasil, o nosso problema central é esse. A gente está sempre sendo chamado de cidadão de segunda categoria, país que não é sério, tudo que é ruim acontece mesmo no Brasil… Isso é disseminado. Se você não gosta de uma pessoa, você não defendê-la. Se você não gosta de um país, você não vai defendê-lo.
Há uma exploração política da corrupção?
A corrupção é explorada politicamente periodicamente no país. Repare, o que foi que aconteceu com Getúlio? Foi corrupção. Antes de Juscelino morrer, depois que voltou do exílio, ele foi envolvido num escândalo de corrupção cujo problema foi um apartamento. A campanha de Jânio Quadros foi a da vassoura, para varrer a corrupção. A mesma coisa a de Fernando Collor, a dos marajás. Corrupção foi o que mais houve no regime militar. O caso de Camaçari, que beneficiou empresas ligadas a Antônio Carlos Magalhães, é um exemplo claro disso. Só que não se chamava pelo nome. A corrupção é periodicamente usada como mecanismo para enevoar a visão da sociedade sobre os reais problemas que a gente vive.
É o que acontece agora?
Uma evidência contundente de que a corrupção é só uma desculpa é o fato de que se o problema era só corrupção põe os caras na cadeia e se preserva a empresa. Mas a gente está destruindo as empresas. Não só a Petrobras, mas todas as empresas envolvidas na Lava Jato. Você está destruindo o setor que era um dos mais importantes do país, que era o de engenharia, um setor intensivo em conhecimento e que estava avançado em mercados estrangeiros. Esse setor foi dizimado. Você não podia ter destruído a empresa. O que foi que os americanos fizeram com as empresas envolvidas em grandes escândalos, tira os executivos, põe esses caras para responder o que é preciso, põe interventores e se preserva a empresa. Isso para mim é uma evidência mais do que clara do que menos do que cuidar da corrupção essa foi uma operação não revelável para atingir segmentos da economia brasileira que representavam riscos de autonomia e concorrência indesejadas.
Tem uma pergunta que sempre fica no ar: por que mesmo tendo lucrado tanto no período de Lula e Dilma os grandes empresários brasileiros apoiaram o impeachment da ex-presidenta e estão associados aos grupos políticos que beneficiam o capital financeiro estrangeiro?
Quando começou a crise de Dilma, a economia entrando em recessão, eu disse à minha mãe – que tem uma loja – para ela não se preocupar porque se acontecesse alguma coisa com Dilma haveria um caos tão grande que eles vão pensar duas vezes antes de seguir adiante. E eu estava redondamente enganada. Porque eu fiz uma análise racional. Mas o interesse objetivo desses empresários é atravessado por subjetividades, os caras querem ganhar dinheiro, mas eles têm uma história de desigualdade, de benefícios, que é mais importante do que a lucidez da sua análise. Muitas vezes eles fazem uma análise como se eles estivessem na pele desses grandes atores econômicos que são os que se beneficiam. Mas eles se ferram e não mudam de opinião. Você veja como eles mantém esse mantra de que tudo o que está acontecendo é culpa de Dilma e de Lula. Por que? Porque mudar essa concepção vai mostrar que eles são tão simplórios, incapazes de fazer a análise minimamente fundamentada que é melhor continuar nisso. É justamente o que quero dizer por subjetividade. É uma questão de certezas, de convicções na vida, que encobre qualquer capacidade de análise fundamentada em evidências.
Não seria porque eles querem ganhar dinheiro do jeito deles, sem qualquer interferência de um presidente como Lula, que veio de outra classe social?
Eles inverteram a posição. O presidente era um empregado. Eles enxergavam ali um empregado e aquele empregado ditar as regras do jogo era inadmissível. A gente viveu 300 anos de escravatura. Isso não muda facilmente. Milton Santos falava isso. Quem é que muda o mundo? É quem tá embaixo e que se sente incomodado porque os que estão em cima não querem mudar. Mas eu acho que existe ainda outro elemento: você ter mais gente educada vai gerar mais concorrência. O filho do empresariozinho vai conseguir ter uma posição x, almejada por ele, se tiver muito menos gente concorrendo por aquela posição. Botar mais gente no mercado, que signifique mais concorrência, é uma coisa inadmissível.
Nos últimos anos, muitas famílias puderam pela primeira vez ascender ao ensino superior.
Exatamente. Aí você junta isso com a subjetividade. Quando você antigamente chegava num lugar e estacionava o seu carro, chegava alguém e perguntava: ´Doutor o senhor quer alguma coisa?´ Você é reconhecido como doutor. Doutor significa alguém diferente de mim, muito superior a mim. De repente tem uma porção de doutores. E o doutor deixa de ser o padrão de referência. Então é uma mudança na sociedade que na cabeça das pessoas fervilha e dificulta que ela enxerguem a realidade mais objetiva de seus interesses mais completos, entendeu? Economia é feita por gente e gente tem subjetividade e interfere. Agora, o mais perverso disso tudo que eu vejo é que essas pessoas mais qualificadas, no fim das contas, produziriam com mais produtividade. Elevariam a capacidade de o Brasil produzir riqueza. O país seria muito mais rico, o mercado seria muito maior. Então a gente está desperdiçando talentos para sacrificar nessa bacia desesperada de uma elite que é extremamente estreita e se contenta com pouco.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República