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O mundo começa a vacinar, mas a Hapvida ainda obriga médicos a receitar cloroquina

Inácio França / 10/12/2020

Crédito: Google Street View

O estoque de cloroquina da Hapvida parece ser infinito. No momento em que as vacinas começam a tornar-se realidade e passam a ocupar o centro do debate público mundial, o maior plano de saúde do Brasil ainda insiste em distribuir para seus pacientes a ineficaz cloroquina como solução para a Covid-19.

Pior: a empresa continua a constranger os médicos de suas unidades de atendimento a prescrever e entregar as caixas do medicamento utilizado contra o lúpus e a malária, mas comprovadamente inútil para tratar a Covid.

Seis meses depois de ser acusada de demitir um médico e de ameaçar outros profissionais por não prescreverem a droga, a Hapvida persiste em intimidar os clínicos que atendem na sua rede exclusiva de 33 hospitais, 20 serviços de pronto-atendimento e 90 clínicas espalhadas por 14 estados. Duas médicas confirmaram a pressão recebida e descreveram o ambiente pesado na empresa.

“Há um tempo que a Hapvida vem forçando um protocolo que só ela está usando. Queria muito provar como eles estão nos coagindo, mas agora só fazem isso pessoalmente, não estão mandando mais mensagens”, relatou uma profissional que trabalha em um pronto-atendimento do Recife. Ela enviou uma imagem da tela do sistema da Hapvida usado pelo seu corpo de médicos.

A recomendação é clara: "Não deixe de prescrever" cloroquina

Outra médica, também do Recife, contou que o clima de intimidação gera boatarias e fofocas: “Pra você ter ideia de como estão as coisas, há uns 15 dias houve o boato de que o superintendente do Hapvida iria nas unidade escolher dois médicos aleatoriamente e perguntar se conheciam o estudo e se prescrevem cloroquina rotineiramente”. Essa conversa aconteceu no dia 30 de novembro, mas até o fechamento desta reportagem, as visitas surpresas não tinham acontecido.

O estudo ao qual a médica se refere chama-se “Risco de hospitalização para pacientes ambulatoriais Covid-19 tratados com vários regimes de medicamentos no Brasil: análise comparativa”. Não se trata, contudo, de um estudo independente realizado por algum instituto de pesquisa reconhecido no meio científico. Ao contrário, foi realizado nas unidades da Hapvid, por médicos do próprio plano de saúde em colaboração com pesquisadores de outras instituições, e assinado também por um controverso cientista americano da universidade de Yale.

Voltaremos ao estudo que sustenta a prática da Hapvida mais adiante.

Por enquanto, vale registrar que o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) confirmou a existência de uma investigação sobre a prática da operadora, mas que o sigilo é mantido em virtude do código de ética da profissão. A denúncia também chegou à 11ª Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde, mas foi enviada ao Cremepe por se tratar de questão relacionada ao exercício da profissão.

“Alguém aí tem lúpus?”

No dia 2 de dezembro, o autônomo Lucas Souza Pinto, de 30 anos, foi às redes sociais fazer uma oferta: “Alguém que tenha a doença Lúpus ou conhece quem tenha e que esteja precisando de Hidroxicloroquina?” Em seguida explicou que estava fazendo o oferecimento porque tinha recebido o remédio numa emergência da Hapvida e não pretendia tomá-lo.

“Eu e minha companheira começamos a sentir os sintomas no dia 25 de novembro. Fomos três vezes na unidade da Hapvida. Na segunda vez, ela pediu uma consulta pra requisitar também um teste pelo Hapvida, que acabou não sendo realizado. Mesmo sem sermos testados e não passarmos por nenhum exame, recebemos o kit-desperdício com seis comprimidos de cloroquina. Minha companheira levou apenas uma injeção pelo cansaço. Mais nada”.

Quando procurou o pronto-atendimento pela terceira vez na esperança de ser testado, Lucas foi atendido por um médico que fez questão de interagir mais. “O atendimento foi bem melhor e o próprio médico perguntou logo se tínhamos tomado e recomendou que não era pra tomar. Ele também confirmou que não adianta ir no Hapvida atrás de teste porque estão acabando e eles só estavam testando os internados com gravidade”.

Lucas e a companheira, a professora Mariana Prímola, de 28 anos, melhoraram sem a hidroxicloroquina, mas ainda estão com dor de cabeça e de garganta. A tosse e a fadiga passaram.

O estudo da Hapvida

A Marco Zero enviou três perguntas para a assessoria de comunicação da Hapvida:

  • A Hapvida determina sua equipe de médicos a, compulsoriamente, prescrever a cloroquina para pacientes com covid?
  • Os médicos são punidos se não prescreverem?
  • Qual a base científica para a prescrição da cloroquina?

Após a publicação da matéria, a empresa enviou a seguinte nota:

NOTA DE RESPOSTA
A operadora de planos de saúde reitera que não interfere na relação médico-paciente e na conduta médica escolhida pelo profissional, apenas aconselha qual a melhor alternativa indicada.

Sobre a prescrição de cloroquina ou hidroxicloroquina, a operadora afirma, ainda, que fica a critério do profissional, inclusive 50% dos médicos não prescrevem.

A empresa ressalta o compromisso com todos os seus clientes e profissionais e segue empenhando esforços em meio à pandemia.

Para responder à terceira questão, foram enviados o link para a publicação do estudo e um vídeo de pouco menos de seis minutos apresentando o tal estudo publicado na edição novembro/dezembro do jornal científico Travel Medicine and Infectious Disease (Medicina de viagem e doenças infecciosas, em inglês) e já compartilhado pelos perfis bolsonaristas. O estudo pode ser encontrado nesta página.

Longe de ser uma pesquisa científica independente, o estudo nasceu dentro da própria Hapvida. Metade dos seus 10 autores são funcionários da empresa, incluindo uma diretora de hospital da operadora no interior de São Paulo. A validação nos parâmetros científicos foi feita pela comissão de ética da Universidade de Fortaleza (Unifor), uma instituição privada da capital cearense, cidade onde a Hapvida tem sua sede.

Os resultados indicam que “o uso de hidroxicloroquina (HCQ), prednisona ou ambos reduziu significativamente o risco de hospitalização em 50-60%”. Foram analisados os dados dos prontuários de 717 pacientes da operadora de plano de saúde.

Os médicos mais curiosos, porém, poderão encontrar na página desse estudo outro link, bem ao lado (ver imagem abaixo), para outro artigo cujo titulo alerta para a “toxicidade cardíaca” da cloroquina e hidroxicloroquina e porque elas “não devem ser usados rotineiramente no tratamento da doença covid-19”.

Yale versus Yale

O vídeo é uma peça de propaganda do estudo e tem como âncora o médico americano Harvey Risch, apresentado como professor de Epidemiologia e Saúde Pública da Universidade de Yale. O título impressiona, mas uma breve consulta na internet revela que outros 20 professores de Medicina de Yale atacaram duramente a defesa obstinada que Risch fez da cloroquina.

O jornal da própria universidade, o Yale News, publicou no dia 16 de agosto uma detalhada matéria sobre o choque entre Risch e seus colegas professores. A reportagem informa que, no dia 27 de maio, Risch publicou no American Journal of Epidemiology (Jornal Americano de Epidemiologia) um artigo defendendo que “a combinação de drogas [hidroxicloroquina +azitromicina + corticóides] pode prevenir efetivamente a hospitalização para a maioria dos pacientes ambulatoriais de alto risco sintomáticos e que é segura para uso em curto prazo no início do curso da infecção”. Semanas antes, Donald Trump havia endossado o uso do medicamento como capaz de curar a Covid-19.

Assim que foi publicada a tese foi contestada por pesquisadores de Yale e de vários outros centros de pesquisa.

Vinte docentes de Yale publicaram um artigo conjunto dizendo que “Risch, um epidemiologista de câncer respeitado, tem o direito de expressar suas opiniões”, mas afirmaram estar preocupados “com a segurança dos pacientes e a coerência de nossa resposta nacional de emergência Covid-19, em meio a desinformação sendo disseminada por pessoas como Risch quando existem evidências contrárias claras”.

Albert Ko, chefe do departamento e professor de epidemiologia da Escola de Saúde Pública de Yale, foi enfático e disse que “não conhece pessoalmente nenhum médico que continue a prescrevê-la em Yale”.

Da Universidade de Minnessota, o cientista David Boulware enviou em um e-mail irônico para o Yale News: “Se a Universidade de Yale apoia o Prof. Risch, por que a Universidade de Yale ou a Escola de Saúde Pública de Yale não financiam o ensaio clínico duplo-cego randomizado controlado por placebo para provar que o mundo está errado que hidroxicloroquina + azitromicina + zinco funcionam como terapia para Covid-19 ? ”

Boulware não poderia imaginar tanto interesse da Hapvida em apoiar o doutor Harvey Risch.

(Atualizada às 15h50 do dia 11/12/2020 para acrescentar a nota de resposta da Hapvida)

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Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.