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O racismo que não acaba na virada do ano

Débora Britto / 29/12/2020

Você postou um quadrado preto na sua conta de Instagram, uma #hashtag contra o racismo ou compartilhou imagens e mensagens sobre ser antirracista em 2020? Quantos dos casos de racismo que surgiram na sua tela chegaram a uma conclusão? O assassinato de George Floyd incendiou o mundo com protestos, assim como o homicídio de Beto Freitas em uma loja do Carrefour mobilizou o Brasil, principalmente as pessoas negras.

Na virada do ano em que o debate sobre racismo e práticas antirracistas ganhou destaque nas redes sociais e na mídia, a pergunta que não pode deixar de ser feita é o quanto e como esse debate continuará a ser travado em 2021. #VidasNegrasImportam é mais sobre ações e práticas do que a própria hashtag.

De acordo com o relatório “A cor da violência policial: a bala não erra o alvo”, da Rede de Observatório da Segurança, em Pernambuco, para cada dez pessoas mortas no estado, nove são negras – um percentual de 93%. O número de mortos pela polícia em 2019 é o dobro de 2015. E apenas no primeiro semestre de 2020 foram registradas 55 mortes em ações policiais.

Quando 2020 acabar, a extensão dos danos do racismo continuará para milhares de famílias. No Recife, a Marco Zero noticiou e vem acompanhando ao longo do ano três casos que mostraram a perversidade de como o racismo atua e estrutura a sociedade, nas suas diferentes expressões.

Em todos eles, meninos e jovens negros foram vítimas do racismo institucional, da violência policial e do racismo estrutural. Márcio, Miguel e Lucas – o primeiro segue vivo. Mas, para cada um deles a justiça ainda não foi feita, tampouco houve reparação. Os três casos seguem em aberto, com a angústia da vítima, das famílias que lutam por justiça e de quem luta para ver o nome ser limpo.

Crédito: Reprodução Facebook.

Racismo institucional

Em 4 de fevereiro, durante a Terça Negra, evento tradicional organizado pelo movimento negro, no Pátio de São Pedro, um jovem negro foi abordado e detido arbitrariamente pela Guarda Municipal, quando um dos agentes disparou tiros de arma de fogo em meio a uma multidão. Como resultado, o rapaz foi incriminado e poderia responder a um inquérito policial por porte de drogas – que ele afirmou que não estavam com ele – enquanto, por outra via, foi aberta investigação para identificar o agente que atirou, mesmo quando no Recife o porte de armas é proibido, por lei, para agentes municipais de segurança.

Dez meses depois, a lentidão da burocracia que já apontava que o caso não seria resolvido rapidamente se confirma. Oficialmente, os advogados que acompanham o caso de Márcio da Silva sequer foram notificados de movimentações no processo. Uma das possibilidades é de que o processo tenha sido arquivado, como pedia a defesa, ou que esteja parado. Enquanto isso, durante todo este tempo, segundo a advogada de Márcio, Josenira Nascimento, ele disse não ter recebido nenhuma notificação em casa.

A ausência de resposta das instituições diz muito. Márcio foi vítima do racismo institucional, poderia ter sido morto por um dos tiros disparados por agente da Guarda Municipal e ainda precisa seguir a sua vida com receio de que seja incriminado.

Racismo estrutural

Semana a semana, 2020 possivelmente se transformou no ano mais longo da vida de muitas pessoas. Uma dessas pessoas é Mirtes Renata, mãe de Miguel, menino de cinco anos que caiu do nono andar de um prédio de luxo e morreu no dia 2 de junho. A criança ficou sob responsabilidade de Sarí Corte Real, ex-patroa de Mirtes, enquanto a trabalhadora doméstica passeava com o cachorro da família.

Para ela e Dona Marta, avó de Miguel, assim como não existe clima para celebrar as festas de fim de ano, enquanto não houver justiça por Miguel, sua luta não terá descanso. “Eu vou ficar em casa mesmo. Só o que eu tenho a fazer é botar meu joelho no chão, agradecer a Deus por ele está cuidando do meu filho, à vida de cada pessoa que está me ajudando nessa luta e pedir forças para continuar lutando”, conta.

A luta de Mirtes desde junho não tem data para acabar. No último dia 3 de dezembro aconteceu a primeira audiência de instrução do caso. No entanto, a escuta de todas as testemunhas não terminou porque algumas pessoas indicadas por Sarí Corte Real não compareceram, nem respondem às cartas precatórias (instrumento jurídico para intimar pessoas residentes em outras localidades). No dia 17 de Dezembro deveria ter sido instituída nova data para resposta das cartas, mas não saiu. Agora só depois do retorno do judiciário é que haverá a definição de uma nova data. “Se não tiver, vamos ter que fazer mobilização cobrando as datas”, afirma Mirtes.

“Eu estou bem indignada. Querem culpar Miguel, uma criança!”, diz sobre a audiência. A defesa de Sarí, que é ex-primeira dama de Tamandaré, está tentando construir a narrativa de que Miguel seria responsável pelo que aconteceu. Mesmo sendo ela adulta e ele uma criança de cinco anos. “É revoltante saber que Miguel era uma criança que não tinha o direito de ser protegida porque é filho de empregada, era uma criança negra”, desabafa Mirtes.

Mirtes e Dona Marta, avó de Miguel. Para Mirtes, seu menino virou um anjo. Na casa em que vivem, ele está em todo canto. Fotos: Inês Campelo / MZ Conteúdo

Ao longo do tempo, o racismo que atravessou e atravessa pessoas como Sarí ficou nítido para Mirtes. “Alguns pontos que aconteceram na audiência deu para enxergar bem que era o racismo. Os filhos deles tinham que ser protegidos, a filha da amiga dela tinha direito de ser protegida. Eram crianças que podiam receber cuidados. Mas meu filho não era uma criança que merecia ser cuidada e protegida na visão deles”.

Como Mirtes, são muitas as mães que veem seus filhos e filhas negros e negras serem vítimas do racismo e ainda criminalizadas. Na sua busca por justiça, se fortalecido com o apoio de movimentos sociais, do movimento negro, artistas e da sociedade.

“Eles estão querendo me cansar psicologicamente, para atrasar o caso, para me cansar e eu desistir. Eles têm o poder do dinheiro, eu tenho o poder da fala, da coragem, do justo. Eu tenho caráter, coisa que eles não têm”, diz, sabendo que 2021 ainda é parte da batalha para preservar a memória do seu filho e ver a justiça ser feita.

Extermínio de jovens negros

No dia 17 de outubro, um sábado, um grupo de jovens estava reunido em uma escadaria no Alto da Colina, no bairro de Cavaleiro, em Jaboatão dos Guararapes, quando a Polícia Militar chegou atirando e Lucas da Luz Marques da Rocha, um adolescente negro de 17 anos, foi atingido por um tiro de fuzil no tórax. Ele morreu cerca de quatro horas depois no Hospital Otávio de Freitas.

O sofrimento de Lucas, no entanto, não acabou no momento que levou o tiro, nem o de sua família acabou até hoje. Depois da morte de Lucas, a família soube que ele havia sido incriminado pela polícia, que afirmou que ele reagiu à abordagem e estaria com uma arma. Desde então, a luta é para provar que a ação da polícia foi ilegal e limpar o nome do adolescente.

Família de Lucas pede por justiça em ato (esquerda). Lucas da Luz, de 17 anos (direita). Créditos: Jéssica Lopes e acervo pessoal.

O relato do que aconteceu naquela noite é de horror. De acordo com a família, os policiais arrastaram o menino até a viatura para levar ao hospital. Ele teria ficado 20 minutos sem respirar durante esse trajeto, segundo a equipe médica. No hospital, durante as horas de espera por notícias do irmão, Renata da Luz tentou saber dos policiais que o levaram o que havia acontecido e só encontrou indícios de irregularidades e contradições. Alguns rapazes que estavam com Lucas no momento que a polícia chegou atirando foram detidos e levados na mesma noite do ocorrido à delegacia, mas foram liberados no dia seguinte sem qualquer acusação, apenas o adolescente assassinado foi incriminado.

Em nota à Marco Zero, a Polícia Civil de Pernambuco, por meio da 13a Delegacia de Polícia de Homicídios/DHMS, informou que o inquérito sobre o homicídio foi concluído e remetido ao Ministério Público de Pernambuco.O inquérito que, em teoria, investigava também a ação dos policiais aconteceu sob sigilo e assim continua, já que o MPPE ainda não apresentou denúncia. Nem os advogados que acompanham o caso tiveram acesso ao documento. Devido à pandemia, muitos prazos se perderam e, o que já demorava, não tem data certa para acontecer. Oficialmente, não se sabe se os policiais foram denunciados e caso tenham sido denunciados, pelo quê.

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AUTOR
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Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.