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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
por Emerson Saboia
Numa manhã, no final de agosto, a Ocupação Chico Lessa, localizada na BR-101 e organizada pelo Movimento Urbano dos Trabalhadores Sem Teto (MUST), foi alvo de uma violenta abordagem policial. Segundo os moradores, oito policiais militares, que diziam fazer parte do 13º Batalhão da PM, pararam duas viaturas junto à entrada e entraram na ocupação sem qualquer mandado judicial.
Naquele momento, a comunidade – reunindo idosos e crianças – estava se preparando para receber a visita de representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e da campanha Despejo Zero, uma iniciativa que luta pelo direito à moradia para comunidades ameaçadas e pessoas em situação de rua em todo Brasil. Sem se identificarem, os policiais foram até o galpão no centro da ocupação e passaram a ameaçar moradores.
Tentaram prender o advogado Bernardo Weinstein, de 59 anos, que representa a ocupação e estava lá por causa da visita programada para a tarde daquele dia. “Eles me chamaram de advogado ‘maloqueiro’ e que eu defendia bandido”, relembra Weinstein.
Quando partiram para cima do advogado, foram surpreendidos com o som estridente de uma sirene. Era o alarme usado para alertar a comunidade em caso de perigo. Rapidamente, os pms foram cercados pelos moradores e deixaram Weinstein de lado, não sem antes disparar três vezes para o alto.
Nas filmagens, uma mulher diz: “Tem que chegar direito, não é agredindo morador, não”. O vídeo enviado para Marco Zero Conteúdo, ainda mostra um dos policiais escondendo o rosto enquanto porta um fuzil.
Essa não é a primeira vez que Chico Lessa é vítima deste tipo de abordagem. O episódio de “terror pelo terror” não foi novidade e ilustra como é o dia a dia de quem luta pelo direito de morar em grandes capitais como o Recife. A sirene e a reação dos moradores, por sua vez, é exemplo do grau de organização e de mobilização dessas pessoas.
“Eu já admirava o acampamento antes”, conta Maria Jaciara Ribeiro da Silva, de 44 anos, moradora e coordenadora local da Ocupação Chico Lessa, sentada em frente ao galpão, no centro do assentamento. Ela é mãe solo de quatro filhos, dos quais dois gêmeos, e escolheu Chico Lessa como o lugar para criar as crianças. A família de Jaci, como é conhecida por lá, é uma das 450 que vivem nos 22 hectares da maior ocupação urbana de Pernambuco.
A Chico Lessa fica na BR-101, no bairro de Caxangá, antes da ponte que atravessa o Rio Capibaribe e dá acesso ao bairro da Iputinga, na zona oeste da cidade. Ali há um grande portão, que, na velocidade em que o tráfego na rodovia flui, passa despercebido. Quando fechado, ele forma uma frase: “Chico Lessa meu amor”, pintada no ferro em cores vivas. Uma espécie de guarita, com um ou dois moradores, vigia a entrada do assentamento, que, logo de cara, revela a rua principal.
Sim, rua. O lugar tem mais de 220 mil metros quadrados e ainda conta com uma área de proteção ambiental. “Sempre ruas, nunca becos ou vielas”, pontua Bernardo Weinstein, também coordenador geral do MUST. Ele explicou, enquanto caminhava pelo assentamento, que ruas são mais seguras, enquanto pequenos becos e vielas, entre os barracos ou as casas de alvenaria de Chico Lessa, poderiam promover insegurança na ocupação.
Chico Lessa tem diversas “ruas” como as que Bernardo mostrou à reportagem. A principal delas leva até o galpão central, onde Jaciara concedeu entrevista. Outras cortam a área em pequenos quarteirões que abrigam dezenas de moradias. Enquanto uma minoria de casas é de alvenaria e tetos com telhas, a maior parte são barracos feitos de madeira, lona e outros materiais reutilizados. A casa de Jaci é assim, improvisada.
Ela conta que fazia parte dos Sem Teto, desde que morava em Matriz da Luz, São Lourenço da Mata. Posteriormente, se mudou com os filhos para o Ibura, zona sul do Recife e por lá ficou. Pelo menos até as contas apertarem e o orçamento da família ser totalmente impactado pela pandemia de covid-19. Não deu outra. Em 2021, ano em que a ocupação foi fundada, no mês de novembro, Jaci se mudou para Chico Lessa. Hoje ela é uma das lideranças e cuida “de tudo”, como brinca.
Existem outras lideranças, mas como o trabalho dela é ser a coordenadora local de Chico Lessa – uma espécie de síndica -, Jaciara precisa ser “mãe” de um monte de gente. Portanto, alimentação, mudança de moradores, água, lixo e entre outras questões fazem parte do trabalho dela. Além dos problemas de qualquer vizinhança, é claro. O vizinho colocou o som muito alto? Chama Jaci… e por aí vai. “É problema com gato, cachorro, fio, água, vizinho…”, revela a coordenadora local.
Jaci também diz não se preocupar com o que pensam sobre seu envolvimento com o MUST e o fato de morar numa ocupação, muito pelo contrário. O que sempre vem é a curiosidade. Como ela mesma coloca, a pergunta é sempre sobre segurança e ela rebate: “quem faz o lugar são as pessoas”, sobre a relação entre os ocupantes. Mas o que une mesmo os moradores de Chico Lessa é o direito fundamental à moradia, reconhecido como fundamental pela Organização das Nações Unidas (ONU), desde 1948.
Para o o advogado Bernardo, “a casa própria, que sempre foi um sonho da classe média, passou a ser uma necessidade de sobrevivência”. Ele ainda defende que a exclusão social chegou a tal ponto de incidência sobre as populações que, “para comer, foi preciso e está sendo preciso”, que, antes, outro problema seja resolvido: o da moradia.
Fato é que o Recife é a cidade mais populosa do estado, a terceira da região Nordeste e a nona do Brasil. Por aqui, mais de um milhão e quatrocentos mil habitantes se espalham em pouco menos de 219 km² quadrados de território. O que os dados do IBGE de 2023 não revelam são as condições em que boa parte dessas pessoas vivem. Ao olhar pela janela do carro ou dos coletivos, fica evidente a crescente da população de rua no Recife, sobretudo após a pandemia.
O que é feito pelos governos, nas esferas municipal, estadual e federal, ainda é “insuficiente enquanto programa de moradia popular”, defende Bernardo. Essa falta de políticas e preparo do poder público afeta todos os recifenses, principalmente as vítimas dessa má distribuição da população no território da cidade. Desde o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, os movimentos sociais dissidentes enfrentaram anos tortuosos. Quando se refere ao governo Bolsonaro, Bernardo fala com firmeza que “o fascismo não foi derrotado porque gostamos do Lula, derrotamos o fascismo porque não queremos morar em favela”.
Os moradores de Chico Lessa, por exemplo, enfrentam dificuldades “devastadoras” como coloca Weinstein.
A primeira delas é a segurança. “A violência da polícia, que do mesmo jeito que chega nas periferias, chega aqui”, coloca Bernardo. Ele continua, “Ela [a polícia] chega, entra na casa das pessoas, agride as pessoas e algema as pessoas”. Segundo o advogado, a polícia geralmente justifica a abordagem truculenta com o pressuposto de uma busca por drogas. Ele afirma que, na grande maioria das vezes, as acusações são falsas e que a organização e conscientização predominam no assentamento, mas entende que o consumo de drogas é um escape para muitos que vivem marginalizados. Para esse tipo de situação, Chico Lessa possui uma sirene que, quando acionada, reúne toda a comunidade no galpão. Foi o caso da terça-feira.
A segunda delas é a saúde. “Aqui o estado não vem com um cartão de vacinação, aqui o estado não chega oferecendo cartão para atendimento no posto de saúde, é o movimento que entrega uma declaração de moradia [para o cadastro no SUS]”, protesta Bernardo. De acordo com ele, o MUST ainda precisa pressionar os postos de saúde para que atendam moradores da ocupação. Hoje, o único posto que recebe as pessoas de Chico Lessa está localizado no bairro de Caxangá. Uma conquista recente, revela o coordenador.
A terceira é a educação. Todo ano, matricular as crianças de Chico Lessa na escola, “é uma batalha”, segundo Bernardo. Além disso, ele também diz que a quantidade de jovens e adultos sem formação é enorme. Outro desafio é levar as crianças para a escola mais próxima. O trajeto era feito com uma antiga kombi, hoje encostada no galpão, enferrujando, com problemas mecânicos sem a perspectiva de reparos. Muitas crianças estudam na comunidade de Nova Morada, na vizinhança da ocupação. Mas as vagas na escola pública não contemplam todas as famílias. O que muitas mães de Chico Lessa ainda precisam fazer é levar seus filhos de ônibus para escolas distantes.
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“É o coração de Chico Lessa”, esse é o jeito que Jorge Luiz do Nascimento, de 29 anos, outra liderança, define o galpão. É o lugar onde ele passa a maior parte do seu tempo, quase sua verdadeira casa, que aliás, fica bem de frente, com uma das fachadas mais decoradas do assentamento. Jorginho – como é conhecido no MUST – sonha alto: “uma escolinha ali no canto, com um campinho de futebol, aula de balé ali pras meninas, né? Como tem em várias escolas”.
Por lá, Jorginho promove algumas atividades para as crianças locais. Brincadeiras que envolvem materiais reciclados ou dinâmicas que as distraiam das vulnerabilidades em volta, “por que a gente sabe, né? Que a vida não é fácil e tem que manter as crianças longe de coisa errada”. Além disso, o galpão também serve para apresentações musicais, comemorações, reuniões dos moradores, cultos religiosos e eventuais descarregamentos de doações – um elemento importante da existência do assentamento.
A geladeira de livros é um dos projetos que Jorginho pensa para o galpão. A ideia consiste em uma geladeira antiga que seja usada para guardar livros comunitários e promover a leitura, principalmente entre as crianças, no caso de Chico Lessa. Durante toda a conversa, Jorginho usou por várias vezes a palavra “honra”. “É uma honra fazer parte da luta”, “é um honra ajudar as crianças”, “é uma honra cuidar do galpão” e por aí vai. Dando um Google rápido, “honra”, de acordo com o primeiro resultado – com o Oxford Languages de fonte – é o “princípio que leva alguém a ter uma conduta proba, virtuosa, corajosa, e que lhe permite gozar de bom conceito junto à sociedade”.
Quando o Jorginho olha para o galpão e imagina uma escola, ou mesmo quando ele passa uma vassoura rápida no lugar como estava fazendo quando a reportagem da MZ chegou – da mesma forma que alguém arruma a casa antes da visita entrar – ele demonstra o significado da palavra. Luta e necessidade são a mesma coisa quando o assunto é o básico, como: fome, saúde ou moradia. Fazer com honra transforma tudo num propósito.
No final do ano passado, o engenheiro Júlio Marcelino, ao lado da esposa e dos dois filhos, buscava transformar a celebração de natal de algumas pessoas por meio de doações. Eles chegaram até a Chico Lessa com esse intuito, mas enxergaram no lugar uma oportunidade de impacto ainda maior: transformar a ocupação em uma ZEIS, uma Zona Especial de Interesse Social, o que garantiria dignidade para os moradores de lá. Mas o caminho não é simples. Para isso, Júlio, engenheiro civil e responsável pelo estudo de concepção habitacional, equipamentos comunitários e infraestrutura urbana de Chico Lessa, criou um projeto, junto da organização do MUST.
A ideia é mudar profundamente o lugar e preservar algumas estruturas existentes no terreno. O projeto prevê dois núcleos habitacionais com 750 apartamentos, incluindo espaço reservado para comércio, além de uma sementeira e horta orgânica, possibilitando a formação de uma feira de produtos em frente ao assentamento – gerando renda para os moradores. O projeto ainda propõe equipamentos comunitários, como creche, escola, espaço cultural e uma quadra poliesportiva. Júlio explica que esses espaços também seriam usados, “não só para Chico Lessa, como para o entorno”.
Chico Lessa também se posiciona geograficamente entre os rios Capibaribe e Beberibe, o que também traz a responsabilidade ambiental de adaptar o projeto a isso. A ideia foi manter as áreas verdes como “áreas de proteção ambiental”. Quando perguntado sobre a localização da ocupação, Júlio se mostra otimista: “facilita [ser central], porque, geralmente, as pessoas do Minha Casa Minha Vida são marginalizadas, são colocadas na franja do perímetro urbano, longe de acesso de moradia”. O engenheiro ainda reconhece que esses acessos negados geram maior distância ainda entre as pessoas mais pobres e a sociedade como um todo.
Para mais, Chico Lessa “já tem esgoto na porta, só interligar”, coloca Júlio. Hoje em dia, inclusive, a comunidade tem acesso à energia elétrica e água encanada na maior parte das residências. Atualmente, a organização do movimento luta pela posse do terreno – uma propriedade privada que não exerce função social – e se mostra otimista em relação ao andamento da ação no âmbito legal. Caso o lugar seja desapropriado e transformado numa ZEIS, a Prefeitura do Recife faria as adequações necessárias no projeto criado por Júlio e lideranças e a procura de recursos começaria. O projeto tem a expectativa de entregar os apartamentos em um ano e meio, depois da liberação do dinheiro.
Júlio também coloca que o maior desafio é sensibilizar os agentes necessários que o projeto para Chico Lessa “não é se tornar uma favela organizada”, mas na verdade “otimizar ao máximo o terreno” e promover dignidade para as famílias. Ele explica que esse é o motivo da escolha de construir apartamentos no lugar de casas. “Recife não tem mais área útil para ser construída”, começa. O engenheiro ilustra que caso o projeto fosse constituído por casas, a quantidade de famílias contempladas cairia pela metade.
Com experiências no Minha Casa Minha Vida e trabalhos sociais, Júlio Marcelino defende que “a gente como profissional, que tem capacidade técnica, precisa se doar”. Ele continua, “não adianta nada apenas a questão financeira, um bom salário, viver bem, pegar os filhos e ir pro shopping”, se referindo a missão de se envolver em demandas sociais. Júlio contou que a primeira coisa que fez quando conheceu Chico Lessa com a esposa Susan Lewis, professora universitária e historiadora, foi levar os quatro filhos para conhecer o lugar e “furar a bolha”. Ele finaliza, “se nós não aplicamos nosso conhecimento e nossos recursos na melhoria da humanidade, vai ser um pequeno caos daqui alguns anos”.
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