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“Os povos indígenas são alternativa para o fracasso que estamos vivendo”, diz Guilherme Xukuru

Marco Zero Conteúdo / 11/06/2020

Por Chico Ludermir

O
bem viver indígena – conceito amplamente utilizado para se referir
à vida comunitária, conexão com a ancestralidade e
espiritualidade, a relação de respeito com a terra, a harmonia com
a natureza e práticas sustentáveis de consumo – agora, como
sempre e mais do que nunca, se apresenta como uma via de construir um
futuro possível, frente ao abismo em que estamos. Com estratégias
potentes de resistência a um processo de perseguição e genocídio
contínuo, que acompanha toda a história do Brasil, os povos
originários têm reinventado, ao longo dos últimos 500 anos, formas
de existir. Certamente têm muito a ensinar, inclusive, a como nos
mantermos vivos. Não por acaso, referências indígenas como Davi
Kopenawa e Ailton Krenak têm tido destaque nas discussões que
circundam os outros mundos
possíveis a partir das perspectivas ameríndias.

Em Pernambuco, o povo Xukuru de Ororubá é reconhecido nacionalmente pela sua organização sócio-política e pela sua espiritualidade, que não se dissocia de suas ações. Na Serra do Ororubá, em Pesqueira, Agreste Pernambucano, os 10 mil indígenas Xukuru ocupam 27,5 mil hectares de terra demarcada com muito luta e muito sangue indígena derramado, o que incluiu o trágico assassinato do cacique Xikão, em maio de 1998. Em memória de Xikão, anualmente, os Xukuru reúnem-se em assembleia para discutir as questões urgentes e estruturais e ouvir o que lhes falam os encantados.

Na entrevista que você lê abaixo, parceria do Programa Entre, da Rádio Universitária Paulo Freire, com a Marco Zero Conteúdo, Guilherme Xukuru, dias depois da realização da assembleia, fala sobre como tem sido a quarentena para o seu povo, atualiza o debate sobre o marco temporal e conta como a etnia tem enxergado esse momento. “A gente está vivendo um momento de fracasso e os povos indígenas, há muito tempo, propõem alternativas ao modelo que está sendo colocado”, afirma ele, que é advogado e mestrando em antropologia social na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e o atual presidente da Associação da Comunidade Indígena Xukuru.

Eu
tenho escolhido sempre começar as entrevistas perguntando como cada
um tem passado e se rearranjado nessa quarentena. Para você que aqui
fala representando todo o seu povo, queria que você me dissesse como
o seu povo tem enfrentando esse momento?

O povo Xukuru tem buscado fazer o seu próprio lockdown. Tem tentado minimizar os impactos da pandemia, e a forma que se encontrou foi através da redução desse movimento de vir para a cidade e voltar para a aldeia. Na maioria das aldeias tem pessoas controlando esse fluxo – os próprios indígenas se voluntariam a fazer esse controle. Tentamos inibir que alguém que está menos dedicado ao isolamento fique saindo e voltando para a aldeia. Em alguns casos não é possível. Como vocês sabem, o território Xukuru fica a poucos quilômetros da cidade. Tem aldeias muito distantes das cidades, mas tem aldeias bem próximas. Tem algumas que ficam a somente quatro quilômetros da zona urbana da cidade de Pesqueira e isso faz com que boa parte dessas pessoas tenham trabalho na zona urbana. Essa é a realidade de vida do povo Xukuru. Além disso, a PE-219, que vai até o limite de Pernambuco com a Paraíba, passa pelo nosso território. Tem esse fluxo de carros que acontece e é impossível a gente impedir essa passagem, ou regular. Então temos buscado formas alternativas.

Como
eu falava, alguns Xukurus trabalham na cidade, inclusive, dentre
eles, alguns trabalham em uma granja que tem aqui em Pesqueira, um
abatedouro. Nesse abatedouro houve uma proliferação de casos e
vários Xukurus foram infectados. Já tem oito Xukurus que foram
confirmados com Covid-19 e, os que não pegaram diretamente na
granja, eram familiares dos que pegaram no abatedouro. Infelizmente,
não restou outra alternativa para a
gente que não fosse pensar em intensificar esse cuidado no combate
ao vírus.

Além do lockdown, o que a gente pensou foi um local que permitisse ter um acompanhamento melhor porque se já está difícil na zona urbana, na zona rural é bem mais complicado – a atenção de saúde está toda na zona urbana. Temos aqui os postinhos de saúde, mas todos são voltados à lógica da saúde preventiva, de baixa complexidade. De média e alta complexidade, tem que se procurar os grandes centros urbanos. A alternativa que a gente encontrou aqui foi colocar assistência para todos aqueles que já foram identificados com coronavírus em uma escola. Lá tem um espaço muito amplo. Tem uma horta pedagógica, tem acesso à internet – que não é tão fácil assim quando a gente está na zona rural. A gente conseguiu vários jogos: dominó, jogos lúdicos em geral, televisão. A gente montou todo um aparato lá para permitir que as pessoas ficassem de uma forma confortável e, além disso, terem um acompanhamento médico. As equipes multidisciplinares de saúde que trabalham aqui no polo-base Xukuru estão prestando essa assistência a partir desse local.

A
Associação Xukuru mandou fazer dez mil máscaras e distribuiu nas
aldeias para as pessoas. A gente tem também brigado bastante por
cestas básicas. Conseguimos algumas e vamos começar a distribuição
para que as pessoas não necessitem descer para a cidade para fazerem
a sua feira, como é muito comum aqui. Estas têm sido as iniciativas
que a gente tem tomado e, de certa forma, a gente continua nessa
espera de que não tenha um aumento tão grande de casos aqui dentro
do povo Xukuru.

Como
eu já pontuei aqui na abertura da entrevista, os processos de
perseguição e morte dos povos indígenas acompanham toda a história
do Brasil. Mas, desde que o governo Bolsonaro assumiu, um novo
conjunto de ameaças começaram a se apresentar: o desmembramento e
esvaziamento da Funai foi o primeiro, junto com a parali
sação
das demarcações em todo o país, dentre outras. Diante deste
cenário muito desalentador, eu queria te provocar a falar sobre uma
questão que está na agenda política atual, que é o
marco
temporal.
A votação sobre o assunto, que traz a tona o interesse dos
latifundiários e do agronegócio, foi recentemente paralisada no
Supremo Tribunal Federal. É uma decisão que tem impactos muito
importantes na vida dos povos indígenas, já que vai definir que
data será considerada como um marco para deliberar o que é terra
indígena passível de demarcação – se somente as que eram
ocupadas por indígenas em 1988, ano da promulgação da
Constituição,
ou antes dela. Queria te ouvir sobre esse assunto e saber como vocês
têm lido esse cenário? Por que você acha que a discussão e
votação foram adiadas? Que impactos vocês preveem em caso de o
marco temporal ser definido como o ano de 1988?

O marco temporal passa a ser definido juridicamente no julgamento de Raposa Serra do Sol, que é um marco jurídico dos povos indígenas do país. A sentença é uma vitória para os indígenas porque o interesse inicial era demarcar ilhas de terras. Tudo que estivesse fora das ilhas poderia ser explorado. Os povos indígenas venceram aquela batalha judicial e o território de Raposa da Serra do Sol foi demarcado continuamente. Porém, mesmo tendo esse revés, o agronegócio se articulou e, em um dos votos da sentença de demarcação, saíram várias condicionantes – e todas elas voltadas a dificultar o processo de demarcação dos territórios indígenas dali por diante. A ideia era a de que colocando aquelas condicionantes em um dos votos, elas serviriam de jurisprudência para inviabilizar as próximas demarcações.

Dentro
dessas condicionantes, estava o marco temporal – que era vincular a
demarcação do território indígena apenas aos povos indígenas que
estavam na posse do território em 1988. Esse é o tipo de medida que
já nasce inviabilizando a demarcação. Como é que o mesmo Estado
que passa não sei quanto tempo incentivando que se adentre, explore
e ocupe os territórios dos povos indígenas é o Estado que está
condicionando ao povo indígena estar na terra em 1988? Isso não é
pra atender a uma questão judicial, é para atender o lobby
do agronegócio de não demarcar mais terra indígena. Juridicamente,
eles se apegam ao fato de a lei ser de 1988, mas isso não acontece
para nenhuma outra regra da Constituição.
Dá pra perceber que é algo extremamente voltado para atender um
interesse. Juridicamente, é algo totalmente sem sentido. A gente
continua defendendo isso no Judiciário.
Continua pleiteando no Legislativo
para que não se permita que o marco temporal se torne uma regra no
sistema jurídico brasileiro.

O
que se tem de mais recente no direito
brasileiro
é a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos do caso do
povo Xukuru contra o Estado Brasileiro. Essa sentença, inclusive,
reconhece que o Estado é culpado por vários momentos de dificuldade
que o povo Xukuru passou. Condena o Estado a reparar não só
financeiramente (1
milhão
de
dólares),
mas, juridicamente, e
sentencia o Estado a se adaptar ao que a sentença diz – e a
sentença não reconhece o marco temporal. Juridicamente, a gente tem
vários argumentos para mostrar que o marco temporal não pode ser
introduzido ao direito brasileiro.

Certamente você tem acompanhado, como eu, a emergência de figuras indígenas a posições de muito destaque no cenário nacional. Na política, tivemos a candidatura de Sônia Guajajara à presidência, ao lado de Guilherme Boulos. No campo da construção do conhecimento temos, por exemplo, tanto as reflexões do xamã Davi Kopenawa, que lançou em 2016 um livro histórico, A Queda do Ceu, como os pensamentos de Ailton Krenak, que tem sido escutado com bastante entusiasmo por uma boa parcela da intelectualidade, buscando saídas para o nosso mundo em absoluta crise. Demorou bastante tempo para que isso acontecesse, mas me parece que o modo de ver o mundo, que Eduardo Viveiros de Castro tem chamado de perspectivismo ameríndio, tem ganhado espaço e respaldo como um mundo e uma forma de vida possível. Queria que você primeiramente me dissesse como você tem percebido a contribuição desses mestres, mas queria, sobretudo, que você aproveitasse essas provocações para me dizer também o que você, a partir da sua perspectiva ameríndia, consegue ver desse momento de mundo que a gente tá vivendo.

A
tecnologia fez com que a gente avançasse tanto por um lado, mas que
desprezasse alguns pensamentos. A lógica da
ciência despreza o conhecimento tradicional. Isso durante muito
tempo vigorou. Com o passar do tempo, acho que as pessoas, por tudo
que tem acontecido mundialmente, foram perdendo referência. É
natural, quando se perde referência, que apareçam outras
referências. Já começamos a perceber a necessidade de encontrar
outras saídas. A gente está vivendo um momento de fracasso e os
povos indígenas, há muito tempo, propõem alternativas ao modelo
que está sendo colocado. Acho que por isso tem tido essa fase de
procura e de ganho de visibilidade para os pensamentos e pensadores
indígenas. Nesses momentos de dificuldade a gente busca se
reencontrar, se reorganizar. Isso tem acontecido com todo o mundo.

Um
tema que tem voltado com frequência às minhas entrevistas é o
quanto essa pandemia revela sobre as estruturas da nossa sociedade –
a desigualdade, o racismo, o descaso com a vida das pessoas e com o
meio ambiente. A gestão do governo Bolsonaro tem colocado a gente em
um mapa de países que pior têm lidado com a pandemia. A
necropolítica, a política da morte, do deixar morrer, não é, de
forma nenhuma, casual. Somado a isso, ficou evidente, mais do que já
era, a partir da reunião de ministros divulgada amplamente, que o
governo tem se aproveitado do momento de crise para implementar uma
série de medidas nefastas para o país – algumas que tocam
diretamente a preservação dos recursos naturais. Imagino que você
tenha escutado com o mesmo espanto que eu a declaração do ministro
do
Meio
Ambiente,
Ricardo Salles, que afirmou, literalmente, que faria uso do momento
para assinar medidas infralegais, que atingem, por exemplo, a
preservação da Mata Atlântica e autorizam a exploração e
a
comercialização
de terras indígenas não homologadas. Queria te convidar a refletir
junto comigo sobre isso, me respondendo como você avalia a gestão
da pandemia, no Brasil. A partir da sua perspectiva, o que você acha
que ela revela do nosso país?

Você
consegue definir muito bem quando cita a necropolítica – essa
lógica do deixar morrer. Tem sido assim não só na pandemia. Tem
sido assim quando vemos, lá atrás, ministros anteriores da saúde
defendendo, por exemplo, a privatização do SUS; quando a gente vê
a defesa do fim do sistema de saúde indígena; quando a gente vê a
criação do teto de gastos públicos para poderem não investir na
saúde. A gente percebe que não é algo apenas na pandemia. Tem sido
uma sucessão de fatos que mostram que a necropolítica está aí e
tem sido o que esse governo entende como estratégia. A gente viu
pessoas afirmarem que o coronavírus colocou todo mundo em situação
de igualdade, mas tem várias coisas que mostram o contrário disso –
por exemplo, o
fato de uma
das primeiras mortes do país, se não foi a primeira, ter sido de um
jovem indígena Yanomami. É quando você começa a perceber, por
exemplo, o índice de morte de negros por Covid-19, que é bem maior.

A
necropolítica tem um objetivo. Tem pessoas que ela quer atingir
especificamente. Esse discurso me incomodava, quando as pessoas
colocavam que a pandemia tinha servido para trazer igualdade, quando
na realidade a gente começa a perceber que, quem tem condição, vai
ficar em casa, mas muitos desses que têm condição e que vão ficar
em casa estão defendendo que as pessoas voltem a trabalhar nos
ônibus lotados, nas empresas lotadas. Eles querem ficar em casa e
colocar quem não é da classe deles na rua para trabalhar, para ser
contaminado, para morrer, que é a lógica da necropolítica.

Acho que esse momento tem escancarado como essa desigualdade social é insustentável e como a gente precisa continuar lutando pela redução dessas diferenças, para que se torne o mais igual possível. Não apenas na questão financeira, mas no direito em geral. Se a gente for olhar, o que a gente estava falando no começo da entrevista, sobre acesso a saúde pública, que na zona urbana é uma realidade, mas que dentro da própria zona urbana, na periferia, já é diferente e na zona rural mais diferente ainda. Então acho que a gente precisa continuar nesse sentido de tornar mais igual.

A temporada do Programa Entre na quarentena tem como mote as reflexões do agora, mas também as reflexões do porvir. Queria trazer aqui o conceito ameríndio de Bem Viver para que você falasse um pouco a partir dele. Como você acredita que essa forma de vida pode ser uma possibilidade alternativa para o colapso que estamos atravessando.

Aqui
a gente chama o bem viver de Limolaigo
Toype

– inclusive está no tema de todas as nossas assembleias mais
recentes. Na língua materna do povo Xukuru, Limolaigo
Toype

significa “terra dos ancestrais”. Muita gente enxerga isso como a
gente voltar a viver como nossos ancestrais viveram. Já ouvi vários
questionamentos sobre voltar a andar nu, sobre negar o que a gente
tem de tecnologia… a gente não fala nesse sentido, mas no de viver
em coerência com como nossos ancestrais viviam. Coerentes com os
princípios que eles colocavam. A gente pensa em reconstruir a partir
dessa coletividade, mas não somente a partir do homem como centro.
Como é que eu vou pensar o modo de vida Xukuru sem considerar, por
exemplo, a realidade dos meus ancestrais que estão ali plantados.
Isso faz com que eu crie essa relação com a natureza, porque ali
meus ancestrais foram plantados e deles surgem novos guerreiros.
Pensar não apenas a partir da minha realidade, como homem, mas
pensar na realidade também envolvendo a natureza. Por que não a
natureza ter também direitos? Por que não pensar nela quando a
gente for construir esse modelo, esse modo de vida? Continuar
enxergando do jeito que está, a gente está vendo que é bem
complicado. A gente não nega que tem influências coloniais agindo
dentro do nosso povo. O povo Xukuru reconquistou o território dos
anos 2000 pra cá e, pela influência, pelo tempo que passamos
servindo a esse modelo, naturalmente trazemos ainda várias
influências dele. O problema principal é você não tentar caminhar
para um outro modelo. O bem
viver
Xukuru, o Limolaigo
Toype,

tem se proposto a isso: a fazer a gente se criticar e encontrar um
modo que seja mais coerente com o que os nossos ancestrais viviam.

A última pergunta desse programa é sempre essa que eu vou te fazer agora. Tenho chamado de pergunta entre, porque ela aproveita esse imperativo “entre” para provocar meus entrevistados e entrevistadas a compartilharem comigo e com os ouvintes e as ouvintes sobre seus projetos de mundo, desejos de mundo e de sociedade, num gesto de projeção e invocação de um novo mundo. É a radicalização dessa reflexão sobre o porvir. Então: nesse outro mundo, Guila, que sujeitos, que práticas precisam estar atuantes e precisam entrar? Que mundo precisa entrar?

Eu coloco muito o Limolaigo Toype como essa prática, porque é uma prática que permite se criticar e continuar a fazer o caminho inverso da colonização. Continuar se criticando e construindo possibilita a gente encontrar novas formas de viver em comunidade e de construir um modelo alternativo ao que está posto. Se fosse escolher um modelo para entrar seria o Limolaigo Toype, e que a gente vivesse essa constante construção desse modelo, construindo e refletindo junto sobre isso.

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Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.