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Os riscos das 108 câmeras de reconhecimento facial que a prefeitura quer espalhar pelo Recife

Maria Carolina Santos / 22/11/2021

Crédito: Pixabay

Nesta quarta-feira, 24 de novembro, acontece a audiência pública para discutir o projeto da Prefeitura do Recife de oferecer para a iniciativa privada a exploração publicitária de 108 relógios digitais. A ideia da prefeitura é de que os relógios sigam os modelos dos que foram instalados em Porto Alegre e São Paulo e, além da exibição da hora, forneçam informações sobre o tráfego, indicadores de qualidade do ar e temperatura, publicidade e também sirvam como um ponto de wi-fi público. Parece algo simples, mas há uma questão controversa: os relógios terão câmeras de monitoramento com tecnologia de reconhecimento facial.

O projeto é o primeiro de uma série de Parcerias Públicos-Privadas (PPP) que o prefeito João Campos (PSB) quer implementar no Recife até o fim do mandato, em uma expectativa de arrecadar um total de R$ 1 bilhão para os cofres públicos. É também o primeiro projeto de concessão de longo prazo – são 20 anos – que o Recife lança em sua história, de acordo com a secretaria executiva de Parcerias Estratégicas do Recife.

Adotado na maioria dos estados brasileiros, o reconhecimento facial por câmeras é uma tecnologia que desperta duas importantes discussões. Uma é na segurança pública, com vieses de racismo e de transfobia. A outra é na própria publicidade e no direito à privacidade.

A questão central de discussão na segurança pública tem seguido no caminho de que os algoritmos usados nessa tecnologia tendem a discriminar negras e negros. O doutor em ciências políticas Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), explica que os softwares usados hoje não conseguem fazer uma leitura eficaz de pessoas negras.

“Em todas as aplicações do reconhecimento facial há essa questão central de que os algoritmos têm tendência a ter vieses que discriminam pessoas principalmente em relação à cor da pele. Eles têm mais dificuldades em apresentar resultados corretos para pessoas negras, principalmente mulheres negras, quando fazemos a comparação com homens brancos. Isso, na área de segurança pública, pode resultar na abordagem, na detenção e até na prisão de uma pessoa que não tem mandado em aberto”, explica Nunes, que também coordena O Panóptico, um projeto de monitoramento de iniciativas de reconhecimento facial pelo Brasil.

O cientista político Pablo Nunes alerta para o viés racista do reconhecimento facial. Foto: arquivo pessoal

O reconhecimento facial por câmeras em vias públicas começou a ser usado no Brasil em 2019. Naquele ano, 184 pessoas foram presas. Mais de 90% eram negras. Não faltam casos de prisões equivocadas, seja pelo reconhecimento por fotos – aquele feito por 3×4 em base de dados como a do Detran – ou o feito pelas câmaras de segurança.

Nunes lembra um caso marcante. No segundo dia de funcionamento de câmeras desse tipo no Rio de Janeiro, em 2019, uma mulher, que estava sentada em uma calçada em Copacabana, foi detida pela polícia porque o software apontou uma semelhança de mais de 70% com Maria Leda Félix, condenada por homicídio e com mandado de prisão em aberto. “Mas o que aconteceu era que o banco de dados da polícia era antigo. Não havia mandado algum, porque a verdadeira procurada já estava presa há quatro anos. Além de ter detido a pessoa errada, a polícia usava um banco de dados desatualizado. Esse caso é emblemático porque expõe a falha da máquina de leitura facial e a irresponsabilidade por parte da secretaria de Segurança Pública”, afirma.

O pesquisador destaca ainda a insegurança jurídica que pode ocorrer quando se trata de reconhecimento facial voltado para a publicidade. Ele cita que o artigo 4 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) retira a privacidade para uso em segurança pública, apenas. O uso para publicidade pode ser contestado. “É bom que fique claro que, ainda que Recife não tenha iniciativas de reconhecimento facial mais estabilizadas, o que temos visto no cenário internacional, e também no nacional, é uma série de questionamentos que colocam essas câmeras como iniciativas equivocadas e até perigosas. No caso de São Paulo, já tivemos câmeras de reconhecimento para fins de publicidade embargadas por uma ação civil pública da defensoria pública de São Paulo e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)”, diz.

Carta aberta contra o projeto

Mais de 25 entidades, entre elas o IP.rec, o Centro Popular de Direitos Humanos – CPDH e a Articulação Negra de Pernambuco, assinam uma carta aberta ao prefeito João Campos e aos secretários do Recife pedindo para que voltem atrás na ideia das câmeras de reconhecimento facial.

A “Carta Aberta: Política de reconhecimento facial da PCR ameaça direitos de
todos os cidadãos e cidadãs”
traz uma série de questionamentos sobre privacidade e segurança de dados. ” O modelo de terceirização da operação e gestão das câmeras sugere uma série de novos desafios e perguntas que, aparentemente, não foram endereçadas até o momento pelo poder público: quais as exigências feitas aos agentes privados no que diz respeito a padrões mínimos de proteção de dados dos recifenses que deverão ser adotados? A coleta e o tratamento de dados biométricos serão realizados somente pelo poder público ou também pela empresa contratada? Quais as diretrizes de transparência sobre o uso desses dados? Afinal, agentes econômicos costumam tratar dados pessoais com fins lucrativos e dificultam o acesso público a essas informações, abrindo margem para a monetização de dados pessoais sensíveis dos cidadãos com outras entidades públicas e privadas”, diz trecho do documento.

Cidadão sem direito à privacidade?

Mas, afinal, qual o uso do reconhecimento facial para a publicidade? O mercado publicitário promete para o público peças interativas ou que sejam especialmente desenhadas para um público específico. Por exemplo, ao identificar uma pessoa que usa óculos, aparecer no painel uma propaganda de óculos. Ou propagandas específicas para mulheres ou para homens.

Para o professor de comunicação da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Fernando Fontanella, é muito pouco diante dos riscos que a tecnologia apresenta. “O mercado publicitário é muito acrítico sobre privacidade. Como não se faz essa pergunta dos problemas que existem, tem se discutido muito pouco como funciona essa tecnologia e as implicações que ela traz”, afirma.

Para Fontanella, são várias as questões que o cidadão deve levar em conta na hora de avaliar o reconhecimento facial. “A primeira questão é a do consentimento. Quão transparente é esse sistema e quão consciente a população está sobre isso? E se eu não quiser ser monitorado? Quando se compra um Echodot (do software Alexa, da Amazon) ou se coloca um aplicativo no celular eu estou dando consentimento e concordo com um termo de condições, para que as empresas coletem alguns dados. Não há consentimento em ser monitorado em um equipamento público, por uma câmera”, diz.

É como se as questões de privacidade que causaram os escândalos do Facebook estivessem também no mundo offline. “Já vemos grupos de ativistas que tentam sabotar esse sistema. Com maquiagens e máscaras para despistar o reconhecimento facial”, diz. Outro ponto é o que vai ser feito com esse acúmulo de dados – e de informações. Por exemplo, em um dos vazamentos do Facebook foi revelado que a empresa sabia, pela análise das postagens, se um usuário está deprimido. “Ficando, por isso, mais sensível às compras. E assim a rede social poderia se aproveitar disso para colocar anúncios personalizados e vender mais”, explica Fontanella. O mesmo, por exemplo, poderia acontecer com a publicidade nos painéis dos relógios.

Como o contrato da empresa ganhadora com a Prefeitura do Recife é de 20 anos, é um prazo enorme para se acumular muitos dados e informações. “O software também vai sendo melhorado. Não sabemos o que vai ser feito no futuro com esses dados, se vai ser vendido ou repassado para outra empresa. Por exemplo, esse software pode identificar características no rosto das pessoas monitoradas que revelem algum problema de saúde. E essa informação pode ser cruzada para aumentar o valor do plano de saúde ou diminuir o seguro de vida”, alerta.

Mesmo que haja cláusulas contratuais que impeçam o compartilhamento ou a venda dos dados gerados pelo reconhecimento facial, não há como se prever vazamentos ou hackeamentos. “É um risco para a cidadania. A prefeitura vai ter um retorno financeiro, mas o que o cidadão está cedendo não vale a pena. A própria prefeitura não tem como garantir que o direito a imagem do cidadão está sendo preservado”, diz Fontanella.

Participe da consulta pública

A audiência pública sobre o processo é virtual e acontecerá às 10h30 desta quarta-feira pelo Google Meet: https://meet.google.com/isg-ddid-acq. A audiência começara com uma apresentação do projeto e depois haverá uma sessão para perguntas dos cidadãos participantes e também de quem enviou pelo e-mail da consulta consulta pública.

Para enviar perguntas ou contribuições para a consulta pública, é preciso enviar um e-mail para consulta.reds@recife.pe.gov.br utilizando o formulário disponível no endereço: https://desenvolvimentoeconomico.recife.pe.gov.br/consulta-publica-relogios-eletronicos. As contribuições devem ser enviadas até sexta-feira, 26 de novembro

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com