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por Carol Almeida*
Gurinhém. Palavra que parece ter nascido cantada. Talvez seja. Segundo o geógrafo Teodoro Sampaio, no Vocabulário geográfico brasileiro, existem duas possíveis etimologias para explicá-la: pode vir do tupi gurí-nhé e significar “o rumor dos bagres” ou de guirá-nhë, que significa “o canto dos pássaros”. Gurinhém é o nome do rio paraibano por onde os automóveis precisam passar – sem ponte, quando não chove muito – para chegar ao Memorial das Ligas e Lutas Camponesas e, pouco mais adiante, à comunidade de Barra das Antas. Gurinhém é também o rio que separa essa comunidade da Fazenda das Antas, onde capangas dos latifundiários, por décadas, costumavam (e ainda costumam) atirar primeiro sem perguntar depois.
Estamos no terraço de uma casa de uma família de acampados, diante do Gurinhém, olhando para as margens onde do lado de lá sobe o mato da concentração fundiária do Brasil. A conversa é com os moradores da casa João Victor Oliveira, 65 anos, e Josefa Dias da Silva Oliveira (dona Zefinha), também com 65, mas também com Joseano Idalino Pereira, 54 anos, e Alane Lima, 31 anos, que, até o começo de 2025, vinha na presidência do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, cargo em que esteve por seis anos, mas que ainda se mantém como uma grande força atuante no espaço, não só na organização de um vasto material de pesquisa sobre as Ligas Camponesas, mas em ações formativas que vêm, nos últimos anos, criando articulações importantes com escolas da região.
Alane Lima com a bandeira das Ligas Camponesas
Crédito: Luara Olívia
Na cozinha exatamente colada a esse terraço, bem ao lado da geladeira, um cartaz na parede demarca o estatuto de fé que reúne essas quatro pessoas: “2025: centenário de Elizabeth Teixeira, uma vida inteira de luta pela reforma agrária”. Na foto, a homenageada veste um boné do Movimento dos Sem Terra (MST) e, no colo, carrega também uma bandeira do mesmo grupo. Uma mulher de 100 anos reúne muita gente.
O rio que escuta João Victor, Zefinha, Joseano e Alane conversando sobre luta, reforma agrária, plantações de milho, feijão, macaxeira e fava, infâncias marcadas por violência e fome, carrega a tessitura de natureza mutante e fluxo constante da História. O rio do “canto dos pássaros” cujos voos desconhecem fronteiras é, ele mesmo, um limiar que divide um acampamento de camponeses de uma fazenda onde essas pessoas e seus familiares sempre trabalharam e onde Elizabeth Teixeira nasceu, em 13 de fevereiro de 1925. Mas, como tudo que é da ordem da História é ambivalente, o rio que separa é simultaneamente um ponto de encontro, encruzilhada entre distintos tempos vividos nesse território. Portanto, nas próximas linhas, ele servirá muitas vezes como elo e testemunha de narrações de épocas distintas, porém de processos que se repetem na formação disso que hoje chamamos de Brasil.
João Victor Oliveira, 65 anos, e Josefa Dias da Silva Oliveira, a dona Zefinha
Crédito: Luara Olívia
Perseguido por capangas dos fazendeiros, mas também pela polícia que atendia aos interesses da oligarquia local, João Pedro Teixeira carrega na pele marcas das pancadas que leva e sabe exatamente o que lhe aguarda quando é pego por esses sujeitos. Em uma dessas ocasiões, ele consegue se desvencilhar de um grupo de policiais e se joga “nas águas barrentas do rio Gurinhém. No outro dia, João Pedro voltou à noite, todo machucado. Sua preocupação maior não era pela dor que estava sentindo, mas sim pelo prosseguimento da luta. Com o rosto trancado, João Pedro, olhando bem para mim, disse: — Ah! Elizabeth, essa repressão violenta não vai ter fim. Só vai acabar quando conseguirmos quebrar a espinha do latifúndio”. O relato está no livro Elizabeth Teixeira: mulher da terra, de Ayala Rocha, que tenta biografar a vida de Elizabeth na primeira pessoa da personagem-título.
João Pedro Teixeira, líder da primeira Liga Camponesa na Paraíba, fundada no município de Sapé, em 1958, sempre perguntava à sua companheira Elizabeth se ela continuaria sua luta no dia que ele morresse. Ela jamais foi capaz de respondê-lo quando vivo ele ainda estava.
No entanto, logo após João Pedro ser assassinado no começo de 1962 por policiais, numa emboscada que deixou cravados em seu corpo cinco tiros (segundo o relatório Direito à memória e à verdade), Elizabeth assumiu o compromisso que, até então, ela não tinha sido capaz de verbalizar em voz alta – mesmo porque isso implicaria ela reconhecer a iminente morte do marido e pai de seus 11 filhos. Se tornaria, após o assassinato do marido, uma liderança inequívoca das Ligas Camponesas no Brasil – “eu marcharei na tua luta”, ela diria mais tarde –, advogando por uma radical reforma agrária no país. Mas essa história só seria nacionalmente conhecida com o lançamento de certo filme brasileiro em 1984.
Antes de chegarmos lá, é importante permanecer nesse tempo que precede à morte de João Pedro, cujo assassinato foi versado em famosos poemas de Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna. As Ligas Camponesas começaram a se consolidar no país em meados dos anos 1950, resultado direto tanto de diálogos com o naquele momento já criminalizado Partido Comunista do Brasil (PCB) quanto de um processo de industrialização dos anos Juscelino Kubitschek, que havia mecanizado uma boa parte do trabalho agrícola no país, precarizando vertiginosamente um ofício já extremamente precarizado.
Com forte atuação em Pernambuco (na região de Vitória de Santo Antão, onde João Pedro também esteve presente) e na Paraíba (tanto na região de Sapé como nos arredores da zona da mata paraibana), as Ligas irradiaram energia de luta pela reforma agrária no Brasil a ponto de, em 1961, surgir o primeiro Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas em Belo Horizonte, que reuniu mais de 1,5 mil camponeses e aprovou o primeiro Estatuto do Trabalhador Rural no Brasil. O símbolo da capa desse estatuto: uma mão se livrando de correntes de ferro.
“Era escravidão”, diz Joseano, quando lembra que, ainda criança, trabalhava no canavial e, quando recebia alguma coisa, era um pedaço de papel que só podia ser trocado por alimentos no barracão da própria fazenda. Mas, durante muito tempo, nem o papel ele ganhava. “Botava um punhado de farinha no bolso, forrava um plástico no chão, machucava a cana e jogava a farinha em cima pra comer”. Trabalhava desde muito pequeno porque tinha irmãos menores e sua mãe ficou viúva cedo. O pai que, segundo ele, não gostava de trabalhar, morreu afogado no Gurinhém.
Quando pronuncia a palavra “escravidão”, Joseano tem plena consciência do que diz. O termo volta todas as vezes que ele lembra na conversa desse esquema de pagamento em bilhetes trocados por mantimentos dentro da própria fazenda. A não possibilidade de remuneração e o encarceramento da vida em função apenas de um trabalho braçal extenuante lhe conta de ecos de uma História não muito distante. “Eu não sabia de nada antes de entrar na luta. Agora eu sei de um bocado de coisa. A luta é uma escola.” E como a humanidade existe muitas vezes em não intencionais ambiguidades, não deixo de notar que Joseano, no momento de nosso encontro, veste uma camisa da seleção de Portugal.
Centro de formação homenageia Elizabeth Teixeira
Crédito: Luara Olívia
Exercício fabulativo: uma família de indígenas potiguara que habita o território onde hoje existe o município de Sapé se banha no Gurinhém quando um trovão anuncia uma abrupta mudança no tempo: a pouco mais de 65 quilômetros dali, no litoral, seus parentes potiguaras avistam a chegada da primeira nau portuguesa àquele território. Hoje, ainda existe uma pequena comunidade potiguara no litoral norte paraibano. Mas desde que a monocultura da cana-de-açúcar tomou a paisagem da zona da mata daquela região, não existem mais famílias potiguaras em Sapé.
“O rio Gurinhém passava o ano quase todo seco. Estreitinho, somente aqui e ali deixava vestígios de sua passagem, em pequenas faixas d’água empoçadas. Na areia fina ficavam em baixo-relevo os pés dos viandantes, por muitos dias.” Esse é um trecho do primeiro romance de Permínio Asfora, cujo título coloca em relevo o território de onde se fala: Sapé. O livro foi escrito no período em que Permínio, vindo do Piauí, morava num casebre ao lado da linha férrea que cortava a cidade levando cana e algodão para o litoral. A linha era um empreendimento da Great Western Railway no Brasil, uma empresa inglesa que servia, claro, aos interesses do império britânico.
Pouco depois de seu lançamento, Sapé foi retirado das prateleiras a mando do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Getúlio Vargas. Entra nessa história o famoso Grupo da Várzea, um conjunto de famílias herdeiras de engenhos escravocratas que, até hoje, manda e desmanda na Paraíba. É por influência dessa oligarquia e seus contatos com o governo Vargas que o livro de Asfora é, por várias décadas, completamente apagado da História.
Mas o escritor insiste. Passa os próximos anos elaborando seu próximo romance, Noite grande, um livro que ficcionaliza a chegada de seu pai ao Brasil, vindo da Palestina. O realismo social permanece: “[Jorge] não tinha pátria nenhuma, pois a terra onde nascera vivia sempre dominada. Um dia com a Turquia e agora com a Inglaterra. […] Quando seria que cada país, por pequeno que fosse, seria senhor de suas ventas?”. Pouco depois de concluir Noite grande, em 1947, o império britânico, que por alguns anos se manifestava concretamente no apito de trem em Sapé, traía o povo palestino fazendo um acordo com um projeto sionista colonial de tomar o território para criar Israel em 1948.
A cúpula do Senado Federal, na Praça dos Três Poderes, é iluminada com a projeção da bandeira de Israel em resposta aos ataques que o país sofrera no dia anterior, vindos do grupo político que controla a Faixa de Gaza, o Hamas, numa reação aos 75 anos de ocupação de Israel no território palestino. A senadora Daniella Ribeiro, da Paraíba, declara: “um massacre sem precedentes que nos deixa em alerta com a escalada de violência no Oriente Médio. O mundo pede paz!”
Na página 55 do documento Direito à memória e à verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos do Governo Federal, lê-se: “Os nomes dos mandantes da emboscada que vitimou João Pedro Teixeira, segundo escritura declaratória feita por Francisco de Assis Lemos Souza, foram Aguinaldo Veloso Borges (usineiro), Pedro Ramos Coutinho e Antônio José Tavares, o ‘Antônio Vitor’, conforme decisão do Juiz Walter Rabelo, dada em 27/03/1963.”
Aguinaldo Veloso Borges, um dos nomes mais fortes do chamado Grupo da Várzea, morreu em 1990 sem ser julgado por esse crime. Dois de seus netos são hoje grandes forças políticas da Paraíba: o deputado federal Aguinaldo Ribeiro e sua irmã… Daniella Ribeiro, senadora.
A bandeira das Ligas Camponesas
Crédito: Luara Olívia
Cauã, 7 anos, gosta de pescar no Gurinhém. Mas hoje ele está acompanhado de sua irmã, Dandara, de três, e os dois estão naquela dinâmica típica de brincar e brigar e chamar atenção dos adultos. Seus pais, Alane e Weverton, tentam administrar a euforia dos dois enquanto preparam o espaço do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, antiga casa de Elizabeth Teixeira e João Pedro, para receber uma semana de atividades intensas na 6ª edição da Semana das Ligas Camponesas. Alane Lima, que tinha entregado na madrugada daquele mesmo dia o texto para qualificação de mestrado em Geografia Agrária na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) sobre mulheres camponesas, ia atrás das bandeiras das Ligas e de outras para decorar o ambiente, como as do MST, uma bandeira LGBT e uma da Articulação da Juventude Camponesa (AJC). Pergunto pela bandeira palestina e ela me diz que ficou com alguém no dia do centenário de Elizabeth Teixeira e que ainda não devolveram ao Memorial.
Uma das grandes funções do Memorial, no gesto de preservação da memória de luta e simultaneamente de transformação dessa memória em material de educação de base, “é desmitificar o entendimento subjetivo das pessoas sobre o assistencialismo”. Estamos numa área em que os donos de grandes propriedades ainda são “padrinhos” de casamento ou de batismo de crianças camponesas, conseguem remédios e consultas médicas para algumas famílias, fazem pequenos favores em troca de uma obediência servil.
O próprio termo “camponês”, Alane lembra, é ainda um tabu: “pergunte aqui por perto quem se considera camponês e quem se considera agricultor? As pessoas têm medo ainda de assumir a identidade camponesa porque a palavra está ligada a uma demanda por direitos básicos, enquanto agricultor não tem implicações políticas”. Penso imediatamente que se “o agro é pop”, a consciência política pelo direito à agricultura é somente perigosa para o slogan da concentração de renda e destruição ambiental no país. Alane, que tem pavor desse “agro”, não se abala. Filha de pais hoje assentados num território ali perto, e nascida em Barra de Antas, ela faz questão de dizer que foi “formada e forjada na luta”.
Weverton Elias Santos Rodrigues, 37 anos, marido de Alane e também pesquisador e membro da equipe do Memorial, estava responsável naquela semana por ser o guia da exposição sobre o centenário de Elizabeth Teixeira para alunos e professores de escolas da região. Escolas, vale dizer, que com frequência estão localizadas em territórios de usinas de cana para onde uma boa parte dos pais e avós dessas crianças trabalharam e trabalham.
O nome de Elizabeth Teixeira entre esses adultos cruza com frequência as duas margens de um mesmo rio: de um lado, respeito pela trajetória de vida e luta, do outro, medo por toda a violência oligárquica que se desdobra dessa luta. Entre eles, o fluxo da História que se produz em um emaranhado de violências, mas também de processos de resistência. Uma mulher de 100 anos que assusta muita gente.
Memorial recebe visitas de professores e alunos da região
Crédito: Luara Olívia
Em 2024, Weverton concluiu sua dissertação de mestrado em Direitos Humanos na UFPB justamente sobre a disputa da memória com a criação do espaço que existe desde 2006 e foi tombado pelo Governo do Estado da Paraíba em 2018. Hoje, pensa em um projeto de doutorado na área de literatura que envolve não somente os romances de Permínio Asfora e a presença de forças de colisão política no território, como também o cruzamento disso com obras do chamado Ciclo da Cana de José Lins do Rego, e seus momentos de nostalgia de um período no começo do século XX da zona da mata paraibana em que os engenhos, boa parte deles ainda movidos à água, viviam seus últimos dias de glória.
Alguns quilômetros para cima de onde o Gurinhém cruza a comunidade de Barra de Antas, ainda no município de Sapé, a família do poeta Augusto dos Anjos assiste ao processo de alienação do Engenho Pau-d’Arco, em Sapé, que era de propriedade da família até então. A decadência de alguns desses engenhos está ligada a um contexto histórico de transferência de poder que, se antes estava totalmente concentrado com os senhores de engenho, agora via o fluxo da exportação da cana-de-açúcar ser tomado por empresas estrangeiras. Tais como aquela empresa inglesa que havia construído uma ferrovia perto de onde moraria, anos mais tarde, Permínio Asfora. 1910 era o ano em que, com sua família financeiramente falida, Augusto dos Anjos chega ao Rio de Janeiro ao lado da esposa. Tudo ao redor assume um tom sombrio, pessimista, funesto, quase um pressentimento de sua morte prematura aos 30 anos.
“Acostuma-te à lama que te espera!/ O Homem, que, nesta terra miserável,/ Mora entre feras, sente inevitável/ Necessidade de também ser fera”, diz um verso de seu mais famoso poema, Versos íntimos. Por esses caprichos da História, a biblioteca municipal de Sapé, que leva o nome de Augusto dos Anjos em sua fachada, fica exatamente do outro lado da rua de uma escola pública de ensino médio chamada Gentil Lins, que foi a primeira sede das Ligas Camponesas de Sapé fundada por João Pedro Teixeira, no fim dos anos 1950, e onde hoje, no seu quadro de professores, tem a historiadora Juliana Elizabeth Teixeira, neta de dona Elizabeth, e atual presidenta do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas.
Estamos no tempo que se desenrola um ano depois do assassinato da líder camponesa e sindicalista Margarida Maria Alves. Executada em 12 de agosto de 1983 com um tiro no rosto na presença de seu marido e de seu filho, sua morte também foi investigada e, entre os mandantes do crime, segundo ação do Ministério Público em 1995, está novamente Aguinaldo Veloso Borges, avô da senadora Daniella Ribeiro e patriarca parente de vários outros políticos do estado. Margarida movia mais de 70 ações contra proprietários de terra no brejo paraibano quando foi morta.
Casa onde Elizabeth Teixeira morava é hoje o Memorial das Ligas e Lutas Camponesas
Crédito: Luara Olívia
É nesse contexto que, em 1984, é lançado no Brasil o filme Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Algumas das primeiras imagens do documentário, filmadas em 1962, são feitas diante da casa onde Elizabeth Teixeira morava com João Pedro e seus filhos, onde hoje funciona o Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, ali bem próximo ao Gurinhém.
O filme, um marco na história de nosso cinema, relata não somente a frustração de um projeto de um outro filme que nunca existiu em função da ditadura militar no Brasil, que confiscou quase todo o material – a ideal inicial era reencenar os dias que antecederam a morte de João Pedro com os próprios camponeses e com Elizabeth como protagonista –, como efetivamente projeta para o Brasil o nome de Elizabeth Teixeira. Com o reencontro entre Coutinho e Elizabeth anos depois daquelas primeiras filmagens nos anos 1960, descobrimos um histórico de liderança dela na luta camponesa, o trabalho como professora de crianças no campo e os 17 anos em que precisou desaparecer do mapa com o nome fictício de Marta Maria da Costa, no Rio Grande do Norte, em função da perseguição da ditadura militar.
Na época, o crítico literário Roberto Schwarz faz um texto emocionado sobre o filme e escreve: “a constância triunfa sobre a opressão e o esquecimento. Metaforicamente, a heroína enfim reconhecida e o filme enfim realizado restabelecem a continuidade com o movimento popular anterior a 64, e desmentem a eternidade da ditadura, que não será o capítulo final.”
Gente do Brasil inteiro cruza o rio Gurinhém para chegar ao Memorial da Ligas e Lutas Camponesas, onde estão sendo celebrados os 100 anos de Elizabeth Teixeira, marcados por uma ilustração do artista paraibano Shiko, em que a vemos cercadas dos pássaros que cantam para além das fronteiras. Chapéus e bandeiras dispostos no chão em reverência a ela. Elizabeth sorri, recebe presentes e cumprimenta autoridades. Entre elas, o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, que anunciava na ocasião o processo de desapropriação de 130 hectares (de um total de mais de 1000 hectares) da Fazenda Antas, onde Elizabeth nasceu e para onde, depois do rio, está virado o quintal de dona Zefinha e seu João Victor, presentes nas celebrações desse dia e felizes de reencontrar dona Elizabeth, cujo nome vai batizar o prometido assentamento a 30 famílias da região.
César Aldrighi, presidente do Incra, que também estava na cerimônia dos 100 anos, afirma que “o dinheiro foi empenhado em dezembro (de 2024) e o processo está em tramitação no cartório para que possamos criar o assentamento”. Na região, em função das lutas organizadas dos camponeses, existem alguns outros assentamentos – poucos – já regularizados em antigos latifúndios que não cumpriam com sua função social.
“A gente tem que correr atrás, não adianta ficar aqui esperando só o papel sair do cartório, não pode ficar de cabeça baixa esperando pelo Incra”, diz seu Joseano na conversa sobre esse anúncio do futuro e tão esperado assentamento Elizabeth Teixeira. Curiosamente, e quem lembra disso é Alane, o Incra começava naquele dia a ser ocupado, em quase todas as suas sedes nas capitais do país, pelo MST, numa demanda por um plano concreto de reforma agrária. A pontuar que, nessa região da Paraíba, a força mais atuante politicamente pelo direito à terra – e herdeira direta das Ligas Camponesas, não é o MST, mas sim a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
João Victor, ao lado de seu Joseano, lembra que está há 28 anos lutando nessa batalha pelo assentamento – trata-se do mais demorado no processo histórico da reforma agrária no estado da Paraíba. Ambos estão cientes de todas as tensões presentes no território há muitos anos. Um dos motivos de preocupação, durante alguns anos, foi a ameaça de “afogar” (o verbo, com todo o peso que carrega, é usado por Alane) todo esse território – que geograficamente se encontra em um vale – com um projeto de barragem na região que só não foi para frente porque o Memorial das Ligas e Lutas Camponesas foi tombado em 2018 pela prefeitura (e ainda existe uma campanha pelo tombamento da mesma casa endereçada ao Iphan) e porque a comunidade de Barra de Antas foi também reconhecida há pouco tempo como comunidade tradicional ribeirinha e, portanto, precisa ser consultada previamente.
Sapé (PB) celebrou os 100 anos de nascimento de Elizabeth Teixeira
Crédito: Luara Olívia
Entre os presentes que Elizabeth recebe em seu 100º aniversário está um buquê de flores, dado pela primeira-dama da cidade de Sapé, Denise Ribeiro, que postou sua visita ao local em suas redes sociais. O encontro não foi muito bem visto pelos aliados políticos do Grupo da Várzea. A imprensa local de Sapé, ao contrário da imprensa nacional, decidiu não comentar muito sobre o evento. Uma mulher de 100 anos incomoda muita gente.
Pouco depois do lançamento de Cabra marcado para morrer, Elizabeth começa a ser convidada para eventos importantes no Brasil. É chamada para receber uma homenagem do Dia Internacional da Mulher, em São Paulo. Na visita à cidade, se encontra com outra paraibana: Luíza Erundina, então prefeita da capital paulista.
Quarenta anos depois daquele primeiro contato, Erundina, agora aos 90 anos, reencontra Elizabeth na casa desta, em João Pessoa. Casa que foi comprada e dada a Elizabeth com o dinheiro que Eduardo Coutinho recebeu do retorno do filme no Brasil e fora dele. As duas posam para a foto sorrindo. Ambas tinham acabado de receber da UFPB o título de Doutoras Honoris Causa, cuja tradução do latim não poderia ser mais direta: “por causa de honra”.
Depois que saio da casa de João Victor e dona Zefinha, reencontro um grupo de mulheres e homens debulhando feijão perto do campo de futebol que fica ao lado do Memorial. Uma dessas pessoas é Maria da Conceição, ou melhor, Ceça, 43 anos. Fala bastante sobre os anos em que passou trabalhando em casa de famílias em João Pessoa (desde os 14), e dos anos que conseguiu juntar um dinheiro para comprar uma casa em Barra de Antas, “daqui não saio mais”. Debulha o feijão que come e que a comunidade vende. Mas não quer ser fotografada porque está acostumada com dinâmicas extrativistas de gente de fora que chega lá e “faz ouro” no estrangeiro “com imagens de nossas mãos”.
João Pedro Teixeira tem 10 anos de idade e veste um chapéu de camponês. Escuta atentamente ao discurso de sua mãe, Juliana Elizabeth Teixeira, numa cerimônia na UFPB que está dando o título de Doutora Honoris Causa a dona Elizabeth Teixeira, avó de Juliana, e bisavó de João Pedro. Quando o discurso termina, o menino tira o chapéu e faz uma reverência à sua mãe e avó. Juliana me diz que ficou emocionada. Ela e a geração de netos de dona Elizabeth hoje têm plena consciência do que simbolicamente sua avó produz no campo da luta política pelo direito à terra no Brasil. Mas nem sempre foi assim.
Juliana Elizabeth Teixeira, neta de dona Elizabeth e atual presidenta do Memorial
Crédito: Luara Olívia
Ela me fala que a geração dos filhos de Elizabeth foi muito marcada pela violência e perseguição que sua mãe e seu pai viveram. E que, por isso, criou-se por muito tempo um tabu de não falar sobre as Ligas Camponesas dentro de casa. Foi somente com a projeção de Cabra Marcado para Morrer, já num contexto de redemocratização do Brasil, que algumas palavras puderam voltar a ser pronunciadas em voz alta.
Tanto Juliana, que acaba de assumir a presidência do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, quanto Alane me falam que dona Elizabeth não costuma mais conversar tanto, mas que existem algumas palavras que despertam sua atenção e sobre a qual ela insiste em não esquecer. Se chegar perto dela e perguntar da “reforma agrária” e de “João Pedro”, ela começa a conversar. Uma mulher de 100 anos lembra somente do que é preciso lembrar.
Carol Almeida é pesquisadora, professora e curadora de cinema. Formada em Jornalismo, trabalhou durante mais de 15 anos em meios impressos e online, com especialidade em jornalismo cultural. Possui um prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos. Doutora no programa de pós-graduação em Comunicação na UFPE, com pesquisa centrada no cinema contemporâneo brasileiro. Faz parte da equipe curatorial do Festival Olhar de Cinema/Curitiba, da Mostra de Cinema Árabe Feminino e da Mostra que Desejo, além de ter participado da equipe curatorial de festivais em todo o país. Ministra aulas sobre curadoria, cinema brasileiro, cinema palestino e representação de mulheres no cinema. Membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema (Socine).
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.