Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Madrugada de quarta-feira, 11 de agosto. Uma profissional de saúde aproveita alguns minutos de respiro no plantão do setor de traumatologia do Hospital da Restauração (HR), no bairro do Derby, e vai à janela com um celular na mão para registrar a cena que a incomoda desde o início da noite: castigados pelo temporal que cai há horas sobre o Recife, pacientes tentam dormir em macas deixadas num corredor aberto, em torno de um pátio interno do maior hospital público de Pernambuco.
Os quatro vídeos gravados pela profissional de saúde chegaram à equipe da Marco Zero com um apelo: “Veja o que vocês podem fazer para publicar este absurdo”. Os vídeos mostram pacientes no corredor onde estão o posto bancário, laboratório e o banco de sangue do hospital. Durante o dia, o movimento de funcionários é intenso. À noite, a chuva e o frio do mais duradouro e intenso inverno das últimas décadas não deixam que os doentes – vários deles com AVC transitório ou mesmo hemorrágico – e seus acompanhantes tenham algum conforto. AVC é a sigla para Acidente Vascular Cerebral, o temido derrame.
“Eram duas da madrugada quando filmei. O tempo todo se levanta impacientes com a frieza, a chuva de vento bate neles. Tem uma acompanhante deitada no chão no papelão e o sanitário é no outro prédio”, relatou em mensagens a pessoa que fez os vídeos.
Ao receber as gravações, pedimos a outra enfermeira que trabalha no HR há 17 anos que nos confirmasse se o local filmado era mesmo no hospital. A resposta positiva foi imediata: “Sim, são do HR, da Emergência Clínica. Saiu na TV na terça-feira a [reportagem da] superlotação da emergência, mas o trauma também está lotado”.
Para essa profissional, “é um problema de gestão, a SES [Secretaria Estadual de Saúde] não resolveu, o problema foi maquiado escondendo os pacientes nos andares”. Segundo ela, após a TV Guararapes levar ao ar uma matéria com imagens da emergência superlotada, gravadas por uma acompanhante, alguns pacientes foram colocados nos corredores externos.
A assessoria de Comunicação do HR, no entanto, não tentou ocultar o problema e também confirmou a veracidade das imagens, ratificando que trata-se de um corredor de passagem para vários serviços da unidade.
A explicação oficial da direção do hospital é que “a maior parte dos pacientes vem do interior, pois o HR é praticamente o único serviço de emergência neurológica funcionando em Pernambuco. Além disso, os leitos de retaguarda com que podíamos contar nos hospitais Alfa e Tricentenário foram destinados à Covid-19. Agora, estamos aguardando que a SES disponibilize esses leitos novamente”. Um dos motivos da superlotação está no fato de que a direção do HR tomou a decisão de nunca fechar plantões, ou seja, não pára de atender os pacientes que chegam porque, segundo a assessoria, “a administração entende que mesmo essas condições precárias ainda é melhor do deixar pacientes na rua ou fazendo uma viagem de volta sem serem acolhidos”.
A administração do hospital informou que a Emergência Clínica dispõe de 102 leitos. Todos estão ocupados. E há pelo menos 60 pessoas nos corredores externos e internos. Entre esses pacientes, segundo informou a assessoria, realmente alguns sofreram AVC isquêmicos transitórios ou mesmo hemorrágicos, bem mais graves.
Por que cenas como essas acontecem? Dois especialistas deram respostas que se complementam. Doutor em Saúde Pública pelo Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/Fiocruz, professor de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ex-secretário-executivo de Regulação em Saúde de Pernambuco, Tiago Feitosa de Oliveira, acredita que os hospitais estão sobrecarregados por causa da falta de investimentos na Atenção Básica.
“O paciente não é tratado a tempo em seu lugar de origem, numa Atenção Básica com capacidade de resolver problemas, ou seja, com estrutura para diagnóstico, com remédio, com exames e com ambulatórios especializados. Então, isso acaba repercutindo na rede hospitalar, pois a pessoa chega com a doença em estado mais grave”, explica o médico.
Tiago Oliveira também lamenta que, nos últimos anos, o Governo do Estado ter investido tanto em unidades de pronto atendimento: “As UPAs não resolvem os problemas crônicos, estes precisam de Atenção Básica e de ambulatórios. Quando só tem UPA para oferecer, resolve sintoma e episódios agudos, aí o paciente volta várias vezes, acaba gravando e parando nos hospitais. Isso é o que temos visto em Pernambuco”.
Os pacientes com AVC que aparecem no vídeo seriam, de acordo com Oliveira, característicos do cenário descrito por ele. “É uma doença potencialmente grave, consequência muitas vezes da hipertensão não tratada. Se a gente tem a Atenção Primária acompanhando a hipertensão, seria possível evitar que uma parte desses pacientes chegassem ao hospital”, explicou o médico.
A médica sanitarista e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Bernadete Perez, fez coro com Tiago Oliveira ao enfatizar o desprezo à Atenção Básica por parte dos municípios pernambucanos e também do governo estadual, mas acrescentou outro tópico que ajuda a explicar os pacientes espalhados por corredores de hospitais:
“Pacientes em maca, na chuva, é um efeito da política de isolamento dos hospitais de Pernambuco, que são pouco integrados em rede, que não dialogam com ambulatórios nem com outros hospitais. Cada hospital tem uma administração que é uma ilha, quase uma autogestão”.
Bernadete, no entanto, assegura que o principal fator é mesmo a ausência de investimento do estado na Atenção Primária, cuja cobertura na Região Metropolitana dl Recife, mal chega a 50% da população. “O que nós precisamos é atenção primária, com retaguarda de uma rede especializada, universalizada, nos quatro cantos deste Brasil”.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.