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Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil
Gestora de Saúde Pública da Prefeitura do Recife e evangélica, Ladinalva Chagas é avó de Luna, uma mulher trans de 23 anos. Ao saber da reação transfóbica e ataques de ódio desferidos, inclusive, por religiosos, contras as crianças presentes na Parada do Orgulho LGBTI+ de São Paulo, ela sentiu tristeza:
“Eu tenho pena dessas pessoas transfóbicas. Deus é amor em tudo e o gênero é uma escolha de uma pessoa que veio de Deus, você pode ser o que quiser ser. Eu aprendo muito com a minha neta, principalmente sobre o amor, porque ela está disposta a amar as pessoas independente de gênero e sexo e me ensina isso também”. Luna, que mora com Ladinalva, escolheu passar pelo processo de transição aos 16 anos e recebeu todo apoio da avó evangélica.
A mais recente onda de ataques da extrema-direita teve início quando, pelo segundo ano consecutivo, o Bloco Crianças e Adolescentes Trans Existem foi o abre alas da Parada do Orgulho LGBTI+ de São Paulo, no domingo, 11 de junho na avenida Paulista. Acompanhados de seus pais, mães e responsáveis, crianças e adolescentes vivenciaram um momento único de celebração de suas existências e livre de preconceitos.
O que parecia um sonho para os jovens e crianças trans e seus familiares, se transformou em um pesadelo. Nas redes sociais, figuras influentes e políticos de extrema direita, – como os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Nikolas Ferreira (PL-MG) -, utilizaram imagens do evento para destilar ataques transfóbicos contra os participantes do Bloco Crianças e Adolescentes Trans Existem, especialmente direcionadas à presidenta da ONG Minha Criança Trans, Thamirys Nunes.
A entidade também foi alvo de críticas de militantes e intelectuais de esquerda, que usaram o argumento que a presença na Parada teria servido de combustível contra as pautas progressistas e reforçaria o medo dos eleitores evangélicos.
“O que estamos vivendo é uma violência. É revoltante ver que a existência da minha filha, do bem mais precioso da minha vida, é motivo para que os outros se revoltem, se incomodem e nos ataquem”, declarou Thamirys, que é mãe de uma menina trans de oito anos. A presidenta da ONG teve sua imagem e de sua filha divulgadas nas redes sociais junto com ofensas transfóbicas, que questionam o direito de existir de crianças trans.
Não demorou muito para que as redes sociais da ONG Minha Criança Trans também virassem alvo de ataques e comentários violentos contra as crianças trans e seus familiares. Criada em 2020, a organização, que presta apoio psicológico e jurídico para pessoas trans e suas famílias, conta com 580 associados e todos estão sofrendo com as investidas transfóbicas decorrentes da participação na parada.
“Apesar de uma grande parte da sociedade entender que a Parada do Orgulho LGBTI+ de São Paulo é uma grande festa, ela é muito mais que isso, é um ato cívico de manifestação em prol de direitos e reivindicação por políticas públicas […] Infelizmente, há um movimento político conservador que escolheu a temática trans infantojuvenil como pauta de ataque, como “moeda política”, forma de atrair mídia, seguidores e votos e acredito que seja por isso que estão nos atacando desta forma esse ano”, declarou Thamirys Nunes ao relembrar que no ano passado a participação da ONG na parada não teve a mesma repercussão que está tendo agora.
“Eu não entendo como a crueldade humana é capaz de fazer o que estão fazendo com essas famílias porque o que vimos na parada foi muito lindo, uma celebração do direito de existir a sua maneira”. A ativista e presidenta da ONG Mães da Resistência, Gi Carvalho, acompanhou a participação das crianças e de seus familiares no Bloco Crianças e Adolescentes Trans Existem.
Surpresa e revoltada com a proporção que os ataques transfóbicos tomaram, a ativista defendeu a participação das crianças na Parada do Orgulho LGBTI+ de São Paulo: “A gente não levou as crianças pra aparecer, sabe? A gente tem que ocupar esses espaços porque a política que a gente precisa começa assim, dentro desses lugares, e não levamos crianças para levantar bandeiras, nossas crianças não são alegorias. Elas estavam ali para vivenciar a experiência de estar com suas famílias festejando suas existências, era só isso, mais nada e estava tudo lindo”
“Foi emocionante ouvir de uma criança que ela estava no melhor lugar do mundo porque ela estava se sentindo segura, respeitada e acolhida entre os dela. Quantas pessoas trans e LGBTs perderam suas vidas sem nunca poder vivenciar isso?”, concluiu Gi Carvalho, em referência ao depoimento de Theo, compartilhado nas redes sociais da organização, que também virou alvo de ataques.
“A gente precisa reforçar que as crianças estavam acompanhadas de seus pais, sendo assim, todos os direitos dessas crianças estavam garantidos. Portanto, não há nenhuma argumentação para contestar a participação das crianças na parada a não ser transfobia. Não há nada mais comovente do que ouvir de uma criança que nunca tinha visto alguém semelhante a ela, a sociedade está isolando tanto as nossas crianças trans que elas ficam emocionadas em ver outras pessoas iguais a elas, pessoas que compreendem sua existência”, afirmou a professora Thais Carvalho, coordenadora de Comunicação da ONG Mães da Resistência e mãe de Lina, uma adolescente trans.
Um dos argumentos utilizados com frequência por conservadores e transfóbicos de extrema direita que promovem ataques transfóbicos é que as crianças não deveriam receber nenhum tipo de “intervenção”, pois ainda não possuem poder de escolha e são facilmente influenciáveis. De acordo com essas mães e avós, o argumento transfóbico está pautado em uma inverdade amplamente divulgada de forma irresponsável de que as crianças trans realizam tratamentos com hormônio e cirurgias de redesignação sexual.
“Quando se fala em crianças trans, as pessoas já vem com o discurso de que essas crianças tomam hormônios e passam por cirurgias e isso é uma mentira absurda. A transição que ocorre na infância é uma transição social, de cuidados, não é uma transição que envolve procedimentos medicamentosos e cirúrgicos. Essas crianças apenas têm seu direito de existir garantido e sua identidade respeitada. Elas cortam o cabelo ou deixam eles crescerem, trocam as vestimentas e recebem um determinado pronome e nome de sua escolha”, explicou Thais Carvalho.
De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), as cirurgias de redesignação sexual só podem ser realizadas a partir dos 18 anos e a terapia hormonal é prevista a partir dos 16 anos. Vale destacar também que a Organização Mundial de Saúde (OMS) removeu a transexualidade da lista de doenças mentais em 2018.
O Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), dos Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), é referência no acompanhamento psicológico de crianças e adolescentes trans. O ambulatório possui uma equipe ampla de pediatras, psicólogos, psiquiatras e endocrinologistas que oferece apoio a crianças e adolescentes com inconformidade de gênero.
O tratamento realizado no Amtigos segue todas as normas do CFM e há todo um longo processo de escuta dos pacientes e de seus familiares para que seja realmente constatada a disforia de gênero e o desejo de transição. Recentemente, uma CPI foi instalada na Assembleia Legislativa de São Paulo para investigar o tratamento realizado no ambulatório.
No Recife, o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco é reconhecido pelo Ministério da Saúde como referência no tratamento especializado a pessoas trans e conta com o Espaço de Acolhimento e Cuidado Trans. O hospital é o único do Norte-Nordeste que oferece atendimento integral a população trans, com tratamentos que vão desde procedimentos de escuta e partilha de experiências até acompanhamento pós-cirurgia de redesignação sexual.
É no Hospital das Clínicas que a psicóloga Giannini Vasconcelos acompanha a terapia hormonal de seu filho Cais, homem trans de 19 anos. A psicóloga conta que a decisão de iniciar o tratamento ocorreu após muito diálogo e estudo da família junto com os profissionais de saúde e que tem notado os efeitos positivos do procedimento na vida de seu filho. “Faz pouco mais de um ano que meu filho começou a usar os hormônios. Eu precisei conversar muito com a endocrinologista e com meu filho também para entender os prós e contras, mas desde que ele começou o tratamento ele está bem mais feliz, isso mudou a vida dele para melhor”, disse a psicóloga.
Giannini relembra que a transição de Cais, o caçula entre quatro, foi um processo bastante desafiador: “Eu achava que seria muito mais compreensiva, mas a gente cria expectativas sobre os nossos filhos, e eu tinha uma expectativa que foi quebrada. Mas com muita terapia e diálogo a gente consegue se abrir mais. Hoje eu vejo que meu filho me ensinou a ser livre”.
A ONG Mães da Resistência, fundada em Pernambuco em 2021, também virou alvo de ataques nas redes sociais. Coordenadora de Comunicação da instituição, Thais Carvalho acredita que a melhor estratégia a ser adotada para combater a disseminação da transfobia no meio virtual é evitar o conflito.
“A gente tem orientando os familiares a não confrontar os ataques nas redes sociais, mas muitas mães vão lá e respondem porque não aguentam ver tanta violência com suas crianças. Nós orientamos que, ao invés de confrontar, as pessoas façam comentários positivos nas publicações. A gente apaga os comentários, bloqueia as contas porque nossos filhos, filhas e filhes veem aquilo. As crianças e os familiares estão muito sensibilizados por conta desses ataques”, afirmou a coordenadora.
Questionada sobre qual seria o motivo do impulsionamento aos ataques contra as crianças e adolescentes trans, Thais Carvalho declarou que figuras públicas buscam um “capital político” na defesa de uma pauta conservadora: “Eu vejo que nesse momento nós estamos nos aproximando das eleições de 2024 e muita gente está querendo se credenciar para ser candidato. Por isso, estão buscando chamar atenção do público e se destacar como uma figura de direita, que defende pautas fundamentalistas. Eu acredito que os ataques contra as pessoas LGBTs tendem a piorar nos próximos meses e anos, isso é só o começo, então, nós precisamos ter estratégias de comunicação para não dar palco para conservadores”.
Em caso de ataques mais graves, em que as imagens das crianças são expostas e disseminadas em redes sociais alheias, integrantes das ONGs buscam suporte jurídico. “Todas as medidas jurídicas possíveis estão sendo tomadas pelo escritório que nos assessora. Não posso entrar em detalhes sobre os processos, neste momento, para não comprometer o andamento das ações”, disse Thamirys Nunes sobre os ataques direcionados a ela e a ONG Minha Criança Trans após a participação na Parada do Orgulho LGBTI+ de São Paulo.
“Nós apagamos os comentários porque não queremos criar gatilhos para nossos filhos, filhas e filhes, mas também não queremos excluí-los do acesso às nossas redes sociais porque eles amam quando postamos os conteúdos feito por eles, eles querem sim aparecer, querem poder falar, interagir com outras pessoas, isso é algo natural da condição humana, sabe? Quantas crianças a gente vê por aí produzindo vídeo no Tik Tok, por exemplo. A gente quer que eles andem no caminho da naturalidade, da normalidade, como crianças e adolescentes que são”, concluiu a ativista Gi Carvalho.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.