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Pandemia levou o MST para mais perto das cidades

Inácio França / 19/08/2020

Crédito: Ph Reinaux/Comunicação Mãos Solidárias

Desde junho, trabalhadores da Petrobras mobilizados pelo Sindicato dos Petroleiros do Paraná e Santa Catarina, compram botijões de gás que são doados para que 700 famílias de quatro comunidades da periferia de Curitiba possam cozinhar os alimentos doados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

Os entregadores de aplicativos que participaram dos protestos da categoria no Recife receberam centenas de marmitas preparadas na cozinha do Armazém do Campo. Ação parecida aconteceu simultaneamente em Maceió.

A Juventude do MST recolheu em assentamentos e ocupações no interior do Ceará seis toneladas de mamão, banana, melancia, macaxeira, limão, jerimum, batata, farinha e feijão. Todos os alimentos foram distribuídos em espaços mantidos por sete entidades que atendem à população vulnerável e em situação de rua de Fortaleza.

Para dar exemplos da atuação do MST durante a pandemia de Covid-19, não faltam ações como essas realizadas em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe.

Em pelo menos dois estados, Pernambuco e Paraná, a distribuição de marmitas e doação de cestas da reforma agrária acontecem praticamente todos os dias. A iniciativa que desencadeou a estratégia do movimento na pandemia começou no Recife, logo no início da quarentena. Usando como base a loja do Armazém do Campo no centro da capital pernambucana , o MST estabeleceu parceria com a Arquidiocese de Olinda e Recife e passou a distribuir diariamente marmitas para moradores de rua.

Cinco meses depois, já são 280 mil marmitas entregues Recife, Caruaru, Garanhuns e Petrolina. Na esteira das marmitas, foram distribuídas 120 toneladas de legumes e verduras orgânicos.

Conexão pela solidariedade

Integrante da coordenação do MST em Pernambuco, Paulo Mansan arrisca-se a dizer que a pandemia levou o movimento a trilhar um caminho inédito em sua trajetória de 35 anos. “Uma leitura unânime é afirmar que as esquerdas perderam a conexão com as comunidades da periferia. Talvez a gente tenha descoberto que a solidariedade é capaz de gerar essa conexão. É isso que a gente vem percebendo no Ibura, em Peixinhos, na Várzea e Brasília Teimosa”, conta Mansan.

MST distribuiu em Pernambuco 120 ton. de alimentos . Crédito: Ph Reinaux/Mãos Solidárias

Para Mansan, o movimento está entendendo que é possível criar vínculos sem as surradas palavras de ordem nem ostentar bandeiras. “Nosso objetivo é erguer uma bandeira vermelha ou colocar comida no prato dos brasileiros? Com alimento saudável e de qualidade, não disputamos espaço com ninguém. Não somos religião, não competimos com os evangélicos. Também não disputamos eleição, então é preciso trabalhar com a liderança comunitária que também é cabo eleitoral de vereador”.

Na distribuição de quentinhas para os entregadores de aplicativo, citada na abertura desse texto, houve uma resistência inicial por parte de eleitores de Bolsonaro. “No final do protesto – e depois de experimentar a comida – os mesmos rapazes que se diziam de direita, vieram pedir bonés”, relata o dirigente. “Essas pessoas são acostumadas a escutar que os sem-terra são vagabundos, que não trabalham e não produzem. Quando escutam que a gente distribuiu 120 toneladas de comida, a semente da dúvida é plantada”, afirma, com esperança.

Doações em larga escala

No Paraná, onde a Justiça e o governo estadual realizaram ao longo de 2019 e início de 2020 uma série de ações de despejo em ocupações, o MST vem fazendo doações em todas as regiões do estado. São mais de 400 toneladas de arroz, milho, feijão, inhame, batata, frutas, legumes, verduras, mel, ovos, pães, bolachas, queijo e leite produzidos em assentamentos e acampamentos paranaenses. A maior parte dos alimentos é produzida com técnicas da agroecologia.

O exemplo recifense serviu de referência para o movimento distribuir marmitas às pessoas que enfrentam o inverno vivendo nas ruas de Curitiba. Enquanto essa matéria era produzida, o número de quentinhas entregues chegou a 10 mil. Além disso, os militantes estão estimulando a criação de hortas comunitárias em terrenos baldios da capital e de grandes cidades do interior.

A mobilização levou dois bispos católicos do interior do Paraná, dom Sérgio Arthur Braschi, de Ponta Grossa, e dom Manoel João Francisco, de Cornélio Procópio, a abençoar a ação do MST.

Um dos mais experientes dirigentes nacionais do MST, Roberto Baggio, explica que o diálogo com as famílias assentadas nas terras beneficiadas pela reforma agrária e acampadas em terras ainda ocupadas, provocou um “verdadeiro mutirão em todo o Paraná”. Para ele, o volume e a variedade de alimentos doados “revela o potencial da agricultura familiar para abastecer o Brasil, pois os pequenos têm tanta diversidade e fartura a ponto de doar sem que lhes faça falta”.

Todas as semanas há ações de doação de alimentos no Paraná. Crédito: Lia Biachini/MST-PR

Pelas palavras de Baggio, é possível deduzir que a nova estratégia imposta pela pandemia fará parte da rotina do MST nos próximos anos: “A gente só quebra a estrutura de poder com uma grande aliança entre agricultores, trabalhadores da cidade e a sociedade civil organizada”. Um bom exemplo dessa composição de forças está, segundo ele, na iniciativa dos petroleiros de comprar gás para que famílias desempregadas e vulneráveis pudessem cozinhar os alimentos doados pela agricultura familiar.

Desdobramentos inesperados

Em Pernambuco, a doação de alimentos gerou desdobramentos que pegaram de surpresa os dirigentes do movimento. Com quase 500 pessoas voluntárias sem qualquer ligação com o movimento, ideias foram surgindo e sendo postas em prática.

Nos bairros da Região Metropolitana do Recife, o MST contou com ajuda de organizações comunitárias para organizar 21 Bancos Populares de Alimentos e três hortas comunitárias agroecológicas em áreas públicas ou terrenos baldios.

Agentes Populares de Saúde estão atuando em comunidades do Recife. Crédito: Ph Reinaux/Mãos Solidárias

Duas voluntárias eram médicas que iam distribuir marmitas depois de largar os plantões. Logo surgiu a proposta de formar agentes populares de saúde para identificar casos suspeitos de Covid-19 nas comunidades e orientar a população. Hoje, são mais de 200 agentes formados em 18 turmas. Além disso, há dez bicicletas da saúde circulando nos bairros com mensagens informativas sobre prevenção.

“Enquanto a prefeitura do Recife manteve seus agentes comunitários de saúde em casa, a gente fez o contrário”, afirma Paulo Mansan, ironizando o fato das equipes da Atenção Básica não terem atuado em plena pandemia.

Junto aos agentes, outros voluntários orientavam quem não conseguia acessar o auxílio-emergencial. Foram 800 atendimentos da chamada Assessoria Popular e Solidária, que resultou em 200 chips de telefones de celulares comprados para a obtenção dos códigos da Caixa Econômica. Pelo menos 150 pessoas tiveram direito ao auxílio graças a isso.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.