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Foto: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
São alarmantes os dados do boletim Pele alvo: a cor da violência policial, divulgado hoje, 14 de dezembro, pela Rede de Observatórios da Segurança. Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a Rede coletou dados do ano de 2020 de sete estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Maranhão, Piauí e Ceará. Os números mostram que, a cada quatro horas, uma pessoa negra é morta em ações policiais em, pelo menos, seis dos sete estados. Ao todo, foram 2.653 mortes provocadas pela polícia nos sete estados do estudo. No Brasil, 6.416 pessoas foram vítimas, oficialmente, da letalidade policial em 2020.
Apesar de ter um governo progressista, o estado do Maranhão não coloca nos boletins policiais a informação racial das vítimas da violência – o que a Rede considera uma outra forma de racismo institucional. Nos outros seis estados, 82,7% das vítimas são pessoas negras.
Em Pernambuco, foram 113 pessoas mortas pela polícia em 2020, um aumento de 53% em relação a 2019. Dessas 113 mortes, 109 eram pessoas negras (97%), três brancas, e em um caso não foi possível identificar a cor da pele. Em 2019, o total de pessoas mortas pela polícia em Pernambuco foi de 74, das quais 93% eram negras.
Assim como em anos anteriores, o Rio de Janeiro foi o estado em que a polícia mais matou. Foram 1.245 mortes no ano de 2020, uma redução de 31% em comparação com o ano de 2019. No entanto, o boletim frisa que o valor do ano passado é o terceiro maior registro de toda a série histórica. Em segundo lugar ficou São Paulo, o estado mais populoso do Brasil, onde 814 pessoas foram mortas pela polícia.
Pela primeira vez, o estudo também colheu os números das sete capitais onde a Rede atua. No Recife, todas as 14 pessoas mortas pela polícia em 2020 são negras. Além da capital pernambucana, os policiais de Fortaleza e Salvador também só mataram pessoas negras. Teresina e Rio de Janeiro tiveram percentuais altíssimos, registrando respectivamente 94% e 90% de negros mortos pelas polícias, respectivamente.
A coordenadora do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), Edna Jatobá, aponta que esses números escancaram o racismo na sociedade brasileira. “Sempre vemos o mesmo perfil de mortos pela polícia, seja em operações, nas situações em que há o chamado excludente de ilicitude, ou em contextos que apontam que a morte poderia ter sido evitada. Sabemos que o racismo estrutural e institucional permeia essa situação. O que tem sido feito com a polícia? Como essa polícia é treinada? Porque me parece que existe uma orientação para se ter um número tão expressivo. Como são feitas as abordagens que terminam dessa maneira?”, questiona.
“A Secretaria de Defesa Social fala o quanto Pernambuco está bem posicionado na letalidade policial, em relação a outros estados. Como se isso servisse de consolo para as famílias das vítimas! Porém, o que estamos vendo é uma escalada da violência letal policial em Pernambuco, ano a ano. Em 2015, esse número não chegava a 40 e hoje ultrapassa 100”, afirma a coordenadora do Gajop, que não acredita que o treinamento policial, sozinho, possa melhorar essas estatísticas.
Ela cita o caso de São Paulo, que adotou câmeras nos uniformes dos policiais, e, inicialmente obteve bons resultados, com queda de 40% na letalidade policial, em dois meses de uso. “Vamos acompanhar como vai ser isso. Mas problemas complexos têm soluções complexas. Nenhum estado brasileiro é exemplo. Vai servir para o quê [as imagens das câmeras]? Fico reticente se esse é mesmo o caminho. Precisamos entender que há uma série de caminhos, que passa sim pela formação das polícias, mas também por entender os processos internos e disciplinares, as corregedorias, a morosidade da Justiça em dar uma resposta a esses casos, e uma resposta contundente. O Ministério Público, por exemplo, está se esvaziando da função de controle externo das policias. Não é só o policial que aperta o gatilho, mas toda uma estrutura que aperta o gatilho com ele”, diz.
A sociedade, claro, também faz parte do problema. E da solução. “Temos que disputar a narrativa de que a polícia está fazendo “justiça” e trazer luz sobre os casos absolutamente suspeitos de ação policial. E isso envolve também a sociedade, que deve se sentar e ouvir os relatos, não só da polícia. A sociedade aderiu muito ao discurso de que a polícia está fazendo justiça. Há uma descrença nas instituições, mas também um ambiente permissivo do governo, É preciso agir em cadeia. Não que mudar a formação dos policiais não funcione, mas é preciso agir em toda a estrutura”, diz.
Em parceria com a Marco Zero, o Gajop lançou o site Quando a morte veste farda, que traz reportagens e um documentário sobre a letalidade da polícia no Recife. E adiantou alguns dos números levantados pelo estudo. Confira aqui o hotsite.
Questionada pela reportagem do “Quando a morte veste farda”, a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco disse realizar uma política interna de treinamento, capacitação e reciclagem para garantir “uma atuação técnica e dentro da legalidade” das polícias no estado. Em nota enviada à reportagem, defendeu a “apuração rigorosa e isenta das infrações disciplinares”.
Segundo a SDS, a Corregedoria Geral registrou 57 casos decorrentes de intervenção policial que necessitaram de investigação do órgão em 2020. Até outubro de 2021, houve outros 58 registros. “Quando há indícios de imprudência, imperícia ou intencionalidade, não há condescendência por parte da Corregedoria da SDS”, assinalou.
A nota traz números de investigações realizadas e punições aplicadas pela corregedoria “considerando todas as motivações e natureza das denúncias” nos últimos três anos. Diz que 65 policiais, entre militares e civis, foram excluídos da corporação entre 2019 e 2020 sem, no entanto, apontar se essas exclusões estão diretamente relacionadas a apurações de mortes por intervenção policial.
Com o objetivo de monitorar e difundir informações sobre segurança pública, violência e direitos humanos, a Rede de Observatórios é um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), com apoio da Fundação Ford, e reúne a Rede de Estudos Periféricos, da UFMA e IFMA, o Núcleo de Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes e Jovens, da UFPI, a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD); Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop); Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC) e o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP).
A imagem de abertura desta reportagem foi produzida com apoio do Report for the World, uma iniciativa do The GroundTruth Project.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org