Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
por Wilfred Gadelha*
Em meio à devastação causada pelo novo coronavírus desde março, os números ganharam dos nomes. Muito pela capacidade de medir o tamanho da tragédia. Afinal, desde 12 de março, o Brasil perdeu mais de 115 mil vidas. Pernambuco contabilizou, até a quarta-feira, 26 de agosto, 7.425 mortes. Essas cifras, apesar de alarmantes, não traduzem exatamente quem eram essas pessoas, alvos da pandemia. Em especial, as de uma categoria que, por trás de máscaras, jalecos e notas de pesar, tem suas histórias camufladas, esquecidas, não contadas: os profissionais de saúde da linha de frente do combate à covid-19.
São essas memórias e sonhos interrompidos que a Marco Zero foi resgatar para mostrar que a frieza das estatísticas não combina com os exemplos deixados por auxiliares e técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, biomédicos e tantos outros trabalhadores da área que enfrentaram a morte em uma batalha desigual – muitas vezes sem proteção, conhecimento adequado ou auxílio apropriado por parte dos governos – contra um inimigo invisível.
Antes, porém, vamos precisar dos números para contextualizar. Segundo a Secretaria de Saúde de Pernambuco, responsável pela contabilização dos dados, 20.225 dos 119.140 casos confirmados da doença no Estado são de profissionais de saúde, ou seja: 17% das pessoas que adoeceram de covid-19 no estado trabalham nessa área. Mortes, elas são 63. O que equivale a 0,3% do total de 7.390. Um número pequeno. Mas que é mínimo também para refletir a dor por que passaram as vítimas e a que fustiga familiares e amigos.
Ainda segundo o Governo do Estado, a categoria mais atingida pela covid-19 são os que atuam na área de enfermagem. Ao todo, 5.793 técnicos e auxiliares (28,6% do total de acometidos pela doença entre os profissionais de saúde) e 2.382 (11,8%) enfermeiros adoeceram, o que equivale a 40,4% do pessoal da linha de frente.
Aí existe um problema: nem o governo nem as entidades de classe, sindicatos e conselhos sabem exatamente quem estava na linha de frente. Mais: como os atestados de óbito não são repassados às entidades, esse número provavelmente pode ser maior. De acordo com a apuração da Marco Zero, pelo menos 30 profissionais de enfermagem (entre auxiliares, técnicos e enfermeiros) morreram. Médicos, foram ao menos 19. Psicólogos, quatro. Isso sem contabilizar categorias como fisioterapeutas, assistentes sociais, condutores de ambulância, pessoal administrativo, gestores, agentes comunitários de saúde, agentes de combate a endemias e demais profissões que integram a complexa rede de suporte da linha de frente. A conta não fecha. Mas, por ora, deixemos os números um pouco de lado e vamos aos nomes. Ou melhor: aos seres humanos.
Primeiro, vamos conhecer duas profissionais que morreram de covid-19. Em seguida, dois sobreviventes.
Diminuir a dor das pessoas: esse era o propósito de vida de Rosa Maria Papaléo, anestesiologista e acupunturista de 65 anos, a primeira médica da linha de frente no combate à pandemia a morrer da doença em Pernambuco, no dia 30 de abril. “Ela casou-se com a profissão. Vivia em função disso. Sempre procurando se especializar. Não casou, não teve filhos. Era muito querida, muito alegre, vivia sorrindo”, conta a psicóloga Regina Papaléo, 58 anos, irmã de Rosa.
Rosa era a mais velha de quatro irmãos e a única a trilhar o caminho da medicina. Talvez, na opinião de Regina, por influência do tio Giovanni, médico dos mais conceituados do Recife. “A gente convivia muito com tio Giovanni e ela era muito próxima dele. Também tínhamos um amigo da família que era anestesiologista, Enio Laprovítera. Acredito que essa convivência pode ter influenciado Rosa.”
A trajetória de Rosa até a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, onde se formou, passou por escolas tradicionais do Recife, como o Colégio Nossa Senhora do Carmo e o Esuda. “Depois da faculdade, ela fez residência no Rio de Janeiro, no Instituto de Assistência Social dos Servidores do Estado (Iaserj).”
Segundo o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), Rosa era pioneira no tratamento da dor em Pernambuco. E foi buscar na medicina oriental mais ferramentas para tratar melhor os pacientes, se especializando em acupuntura. “Ela passou um mês na China se aperfeiçoando. Fazia tudo com muito afinco”, conta a irmã.
Rosa trabalhava nos Hospitais Real Português – na sala de recuperação – e São Marcos, além de um consultório particular e da Unimed. “Ela aprendeu muito com o médico Marcos Brioschi, especialista em dor, e todo mês ia para São Paulo para se especializar. Eles assinavam laudos juntos, depois ela começou a fazer sozinha”, continua Regina.
Quando a pandemia começou e os médicos foram convocados para tratar os pacientes, Rosa foi perguntada se preferia ficar fora da linha de frente. Afinal, ela pertencia ao grupo de risco pela idade e por doenças pré-existentes, como a hipertensão. “E ela era obesa também. Mas não diabética, como saiu em alguns veículos de imprensa”, corrige a irmã.
Se quisesse, Rosa poderia ter abdicado de trabalhar no atendimento a pacientes. Mas ela preferiu ajudar. “Nós nem sabíamos que ela havia sido convocada e tinha aceitado. Ainda mais intubando pacientes com covid. Foi uma surpresa para nós”, completa Regina Papaléo. E o que se temia aconteceu: Rosa foi contaminada. “Toda família pegou. Eu, minha mãe, meu irmão Vincenzo…”
A médica sentiu os primeiros sintomas numa segunda, 14 de abril. Mas achou que era apenas uma sinusite. No dia seguinte, ela piorou. “Nossa mãe morava com Rosa. Fui lá nessa semana. Achei que ela estava esquisita. Eu falava e, pelos olhos dela, parecia que não ela não compreendia. Achei que estivesse com raiva de mim. Nossa cunhada, que é enfermeira, mediu a saturação ela e estava bem baixa.“
Daí, no dia 17, Rosa já estava internada no próprio hospital São Marcos, no Paysandu. “Foi no mesmo dia em que nossa mãe, Palmira, de 89 anos, começou a sentir os sintomas. Mamãe morreu em 22 de abril, na mesma data que Rosa foi para a UTI, pois o quadro dela não apresentava melhoras. Ela nem chegou a saber da morte de mamãe”, relembra Regina, que naqueles dias também estava lutando contra a covid, em casa, isolada e se tratando. “Eu não a vi mais depois que foi intubada.”
Regina foi diagnosticada dia 27 do mesmo mês. “Eu tive infiltrações nos pulmões, mas me tratei em casa e consegui. Nesse tempo, a situação de Rosa só piorava. Os colegas tiveram que convencê-la a ser intubada, pois ela não queria. No dia 30, ela não resistiu.”
A irmã de Rosa lembra que, no sepultamento da mãe, a família seguiu o carro funerário até o cemitério. “Mas ficamos na sala da administração. Não pudemos nos despedir”, lamenta. No enterro de Rosa, Regina não pôde sequer ficar na sala de administração, pois era a época do pico da doença. “Uma flor, um abraço… Não pudemos fazer nenhum desses rituais que nos ajudam com o luto. Fizemos apenas uma missa online. Ainda estamos digerindo.”
O consultório de Rosa ficava na Ilha do Leite, em uma casa ampla, onde ocupava três salas. Lá também funciona o consultório de Regina. “Está tudo lá como estava. Não fui mais lá”.
“Minha felicidade é viver. Essa era a frase do status do whatsapp de Jaciara Silvéria da Silva, 54 anos. Há 27 anos, ela atuava como psicóloga no ambulatório da policlínica Agamenon Magalhães, em Afogados, unidade de saúde da Prefeitura do Recife que foi transformada em uma espécie de hospital de campanha para atendimento às vítimas da covid, e dava plantão na maternidade Bandeira Filho, também municipal e no mesmo bairro.
A felicidade de Jaciara se traduzia no seu ofício “Ela adorava fazer relatórios, trabalhava no apoio à direção. Então, conhecia todo mundo e todo mundo gostava dela”, conta Wania Machado Silva Leite, 53, colega de profissão e amiga. “Entramos juntas, no mesmo concurso. Ela, em julho de 1993, eu em setembro e a nossa outra colega, em novembro. Eu a conheci grávida de Edvan.”
Edvan Silvério é um dos dois filhos de Jaciara. “Ela era atenciosa, sempre preocupada com todo mundo. Gostava de ajudar o próximo, era espírita kardecista. Acredito que ela escolheu a profissão certa, pois conseguiu ajudar muitas pessoas”, conta o designer gráfico de 26 anos, morador de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, a mesma cidade em que a mãe nasceu.
Jaciara era a “mulher da cota”, brinca Wania. “Ela organizava bazares. Nós doávamos objetos e roupas para arrecadar recursos e comprar livros para os profissionais. Ela também nos mobilizava para os aniversários do mês. Sempre passava pedindo a cotinha”, continua a psicóloga. “Somos três, quer dizer, agora somos duas no ambulatório. Mas tem muito de Jaciara no nosso trabalho. A letra dela, os documentos que ela fazia.”
“Antes de iniciar o bazar ao público, minha mãe chamava as moças da limpeza para que elas pudessem adquirir roupinhas melhores. Uma dessas moças me disse que ela falava ‘primeiro as pessoas da limpeza, pois são essenciais’. Isso resume o que era a minha mãe”, completa Edvan.
Em 18 de março, o ambulatório de psicologia da policlínica foi desativado para ceder lugar aos doentes de covid-19. “Ficamos dez dias em casa e depois nós fomos convocadas para atuar no suporte da equipe de linha de frente. Jaciara, que tinha muitas comorbidades, pediu para ficar no setor de recursos humanos. Acreditamos que ela ficaria mais protegida”, conta Wania.
A psicóloga contraiu a doença em junho. Ela já havia feito o teste rápido e o resultado foi negativo. Mas um dia faltou a uma reunião. “Mandei mensagem e ela disse que não estava se sentindo bem. Como o teste havia dado negativo, nem pensamos em corona”, explica a amiga. “Eu temia pelas doenças pré-existentes que ela tinha: diabetes, coração e pressão alta. Ela sempre trazia máscaras para a gente, ficava muito preocupada com minha filha, que há quatro anos minha filha se internou com crise de asma e chegou a ficar intubada”, relembra o filho de Jaciara.
Na metade do mês, Jaciara começou a pedir à amiga para trocar plantões na maternidade. “Um dia, ela me disse que estava cansada, ‘aquele dia que você não quer sair de casa’.” Mas, segundo Wania, não se suspeitava de covid. “Achávamos que não iria chegar nela. Embaixo do nosso nariz, ela adoeceu. Ela relatava dores no corpo, mas isso ela sempre teve. Tinha hérnia de disco, uma vez caiu da moto, fez cirurgia no joelho. Então, não pensamos em covid”, enfatiza Wania.
Na segunda 22 de junho, a amiga a encontrou na sala da direção. “Parece que estou vendo: ela estava extremamente abatida, os olhos de quem tinha chorado”, relembra a amiga: “No dia 25, ela testou positivo. No dia seguinte, veio para ser internada, chegou de cadeira de rodas com um dos filhos. Já foi para o oxigênio. De lá para o Hospital dos Servidores e depois, para o Parque das Flores”.
O filho Edvan relata o dia da morte da mãe: “Fomos de encontro à assistente social que nos atendeu e chamou o médico. O meu irmão não percebeu, mas eu li os lábios da assistente que cochichou ao médico: ‘É óbito’. Até então não havia caído a ficha. Entramos na sala e o médico nos deu a notícia que o respirador chegou ao limite de potência e que ela não havia resistido. Eu e meu irmão, no primeiro momento, choramos. Sentamos ao lado da capela. Lá havia um santuário, não sei se é esse o nome ao certo. Ficamos abraçados e choramos a morte da nossa mãe”.
Ele continua: “No caminho para casa, acabei parando em uma farmácia e pedi à moça qualquer remédio para dor, pois havia perdido minha mãe. Ela me deu os sentimentos e fui pra casa tomar um banho. Fui com meu padrasto de carro ao hospital para liberação do corpo. Uma cena que nunca vou esquecer foi o momento de reconhecer o corpo: minha mãe enrolada no lençol do hospital dentro de três sacos a 2 metros de distância. O rapaz abriu somente a parte do rosto para que pudéssemos reconhecer o corpo”.
Um detalhe chama a atenção: Jaciara estava prestes a se aposentar. “Descobrimos que faltavam apenas 30 dias para a aposentadoria dela”, conta Edvan. “Apesar de termos entrado juntas, ela tinha mais tempo de serviço. E me disse: ‘Queridinha, vou me aposentar no ano que vem’,” complementa Wania.
Aos 68 anos, Fernando Inácio de Jesus sempre teve uma fala mansa, pausada, que acalma. Formado em enfermagem pela Universidade de Pernambuco (UPE) em 1974, é um dos profissionais mais respeitados da área em Pernambuco, atuando nos principais hospitais públicos e privados do Estado. Atualmente, além de dar aulas na Faculdade Nossa Senhora das Graças e atuar no Saúde Residência, responde pela supervisão da UTI do Hospital da Restauração.
Na entrevista à Marco Zero, no último dia 18, a sua voz estava mais lenta do que o usual. Sequelas de uma doença que ele ainda ajuda a combater, mesmo tendo sentido os primeiros sintomas de covid-19 em 9 de abril, diagnosticado no dia 15 e permanecido internado quase um mês, entre 19 de abril e 17 de maio.
Durante os momentos mais difíceis, ficou na UTI do HR por 24 dias, 14 dos quais intubado. “Tive alucinações, presenciava coisas que não existiam. Vi um aparelho ‘fumaçando’ e avisei ao pessoal, mas não havia nada disso, Visualizava o prédio do HR caindo e meus genros morrendo. Eu ouvi o médico dizendo que eu tinha tido uma parada respiratória de 10 minutos e que iam desligar os aparelhos. Eu só pensava: ‘Nossa Senhora, me leva’. E ouvi uma voz feminina que dizia: “Que covardia, tanta gente orando e você querendo ir’.”
Ele não tem dúvida de que contraiu o coronavírus no trabalho. “No início, não havia EPI adequado. Só liberavam a máscara N95 a cada 15 dias. Nós botávamos um capote por cima. A gente não tinha roupa adequada no hospital. Hoje não, nós temos os equipamentos, a roupa do hospital, se paramenta todo, com viseira e tudo. Depois, deixa tudo lá para o hospital lavar”, conta ele, que ajudou a organizar uma UTI apenas para pacientes com covid-19 na maior unidade de saúde da rede estadual.
Experiente, Fernando de Jesus relembra os primeiros dias do combate à pandemia. “Primeiro, eu não tinha ideia da gravidade. Era tudo muito novo. Todo dia havia uma coisa diferente, um protocolo. O que mais me incomodou foi aprender enquanto fazia. Era como trocar o pneu com o carro andando. Eu ficava abismado como o Brasil ficou dependente de outros países. Com a indústria têxtil que nós temos, podíamos produzir capotes e máscaras”, complementa.
Depois de todo o sofrimento – e de uma emocionante visita da sua mulher Marlene, que também teve covid -, Fernando ainda se recupera das sequelas. Fez fisioterapia pulmonar e motora. “Eu não conseguia nem ficar de pé. Fui também à otorrinolaringologista para recuperar minha fala.”
Ainda sem atuar no HR – “peguei licença médica, férias e licença prêmio . Só volto em novembro” -, Fernando retornou ao trabalho no Saúde Residência. Mas, as memórias enevoadas dos dias de alucinação dão lugar à lembrança com a equipe do dia a dia. “Perdi um amigo nosso para a covid, Evandro. Ele era um cara animado, brincava com todo mundo. Estava se recuperando da doença e teve um infarto. O coração fica muito comprometido com as altas doses de corticóides e outros medicamentos.”
O que ficou da doença, além das sequelas e das lembranças doloridas, foi a certeza de que ele renasceu. “Agora eu tenho duas datas de aniversário: o dia em que eu nasci, 24 de janeiro, e o que eu fui extubado, 4 de maio.”
A segunda data de “nascimento” do enfermeiro Fernando é o dia em que, 43 anos atrás, nasceu Aglaia Bianca da Silva Cunha. E no 4 de maio deste ano, o aniversário da técnica de enfermagem foi marcado por um sopro de esperança em meio à pandemia: internada com covid-19 no Hospital dos Servidores, no bairro do Espinheiro, ela abriu os olhos pela primeira vez desde que os médicos retiraram os sedativos que a deixaram inconsciente depois de 42 dias intubada.
Aglaia trabalha na emergência cardiológica do hospital Agamenon Magalhães, na Tamarineira. No início da pandemia, ela conta que a unidade começou a se organizar para receber os pacientes com covid-19. “Ainda não estava tendo a transmissão comunitária. Estávamos nos preparando. Começamos a receber equipamentos e pacientes, não tão equipados como hoje. A gente usava máscara e luva, mas não capote. Não tínhamos ideia de muita coisa”, explica ela, mãe de uma filha de 26 anos e dois filhos de 19 e 8 anos.
No dia 22 de março, após largar do plantão, Aglaia foi pela manhã para a casa de sua companheira. “Tomei banho, fui descansar e senti o corpo quente. No outro dia, a febre não cedia. Como sou asmática crônica e diabética, fui para o HSE em 24 de março. Fui indicada para o isolamento em um anexo que foi montado. Contraí pneumonia. Ainda não tinha o resultado do teste, demorava pra saber. Fui para a oxigenação, depois para a UTI”, relata.
A técnica em enfermagem conta que, quando os médicos anunciaram a intenção de intubá-la, no início de abril, ela resistiu. “Eu não queria. Achei que poderia não voltar. Mas, eu tenho muita amigas lá e me convenceram. Então, depois de quase 20 dias, foi feita a traqueostomia. Foram 56 dias na UTI”, salienta.
“Tiraram as sedações, mas eu não reagia. Só no dia 4 de maio, meu aniversário, eu acordei. No início, apenas piscando os olhos. Só via e ouvia. Não falava. Do pescoço pra baixo, não conseguia me mover.”
“Eu tive duas paradas cardíacas, uma de cinco e outra de três minutos. Tive convulsões. Os médicos estavam desistindo de mim. Iam fazer uma ressonância para averiguar se havia lesões no cérebro no dia do meu aniversário. Que presente…”, ela prossegue. Aglaia só foi ter alta em 2 de junho.
O pós-covid-19 também não está sendo nada fácil. “A luta é diária. Eu não me mexia, não fazia nada. Fiquei inerte e eu sou uma pessoa independente. Era muito difícil. Mas eu não perdi o suporte da família, da minha companheira, dos amigos. Muitos pacientes tiveram suas famílias se afastando.”
Aglaia está passando por dificuldades financeiras. “Estou de licença médica por 90 dias. É para eu voltar agora em setembro, mas eu não me sinto preparada. Meu benefício foi indeferido duas vezes. Tive que colocar na Justiça. Muitos profissionais de saúde estão tendo problemas com o INSS”, continua. “Eu moro de aluguel. Meu filho vive de bicos. Me sinto bem porque estou viva, mas as dificuldades são grandes. Preciso de uma alimentação diferenciada. Para fazer a fisioterapia, pelo plano de saúde, eu não posso ir de ônibus. Então, tem um custo com transporte. Sem falar nos medicamentos. Somente um custa R$ 170”, contabiliza. No final, do salário de pouco mais de R$ 1.157,18, somados a uma gratificação de desempenho de 153,57, sobram pouco mais de R$ 400 para o sustento.
Ainda assim, a técnica em enfermagem vê o futuro com otimismo. Apesar das mortes de amigos colegas e conhecidos. “Conheço umas dez pessoas que morreram: amigos meus, pais de amigos, dois amigos do meu ex-marido. Mas estou aqui viva e vou conseguir. Queria dizer que as pessoas não perdessem a fé. Que tenham perseverança. Mesmo com tudo que pode passar, a gente pode vencer.”
O Conselho Regional de Enfermagem (Coren-PE) salientou que os profissionais da área são os mais expostos à contaminação. “É o profissional que está com o paciente 24 horas. O médico vai, prescreve e sai. O técnico, não: fica o tempo inteiro”, diz a chefe do setor de fiscalização do órgão, Ivana Andrade. “A questão trabalhista não compete a nós, mas não poderíamos ficar omissos. Então, acolhemos várias denúncias, via WhatsApp, ouvidoria e e-mail.” Ao todo, contabilizando as redes pública e privada, foram 625, encaminhadas ao Ministério Púbico, que solicitou fiscalizações in loco. Foram feitas 269 inspeções, que se transformaram em encaminhamentos para que as irregularidades fossem solucionadas.
“Os profissionais estavam muito temerosos. Isso incluía o desconhecimento do uso da máscara (N95), que é para uso em UTI ou em procedimentos mais invasivos, como para aspirar ou intubar os pacientes. Todos queriam essa máscara, mas houve racionamento e déficit”, relata Ivana. “Além disso, constatamos ausência de planos de contingência, de fluxos e de treinamentos. Muitos profissionais se contaminaram durante a paramentação, no momento de colocar e retirar os EPIs. Os hospitais não tinham locais específicos para isso. Não tinham locais para o descarte dos materiais. Isso facilitava a contaminação.”
Outra preocupação do Coren-PE é a sobrecarga de trabalho. Nas UTIs, o recomendado é um técnico para cada dois pacientes. Com o afastamento de muitos profissionais, seja por contraírem a doença, seja por serem do grupo de risco, muitas vezes um técnico ficava responsável por quatro pacientes. “A situação no Recife e na Região Metropolitana já melhorou. Estamos mais preocupados agora com o interior”, enfatiza a conselheira.
Já com relação aos médicos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) realizou pesquisa, finalizada em 6 de maio, com denúncias feitas pelos profissionais por meio de uma plataforma disponibilizada nos sites dos conselhos regionais. A queixa mais comum, mais uma vez, foi a falta de EPI, material de higienização e insumos. Em Pernambuco, 115 denúncias foram feitas, entre as quais 39 apenas no Recife. Em todo o estado, instituições de 34 municípios, entre públicas e privadas, foram alvo das queixas dos profissionais.
De acordo com o presidente do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), Mário Lins, a entidade procurou agir em parceria com as autoridades e com a rede privada para oferecer o máximo possível de proteção aos profissionais. “Para se ter uma ideia, o primeiro caso no mundo foi diagnosticado na China em dezembro do ano passado. Em janeiro, sabíamos que a doença iria se espalhar. No Brasil, o primeiro caso foi em 26 de fevereiro, a quarta-feira de cinzas, um dia após o Carnaval. Seguramente o vírus já estava circulando aqui”, explica Lins. “Nós realizamos uma mesa redonda sobre o coronavírus ainda em 10 de fevereiro para alertar a comunidade médica.”
“Nosso foco no início foi garantir EPI para os médicos. Tendo a pandemia como foco, emitimos nove recomendações, seis resoluções, dois pareceres e uma nota técnica. Infelizmente, 19 médicos morreram de covid-19 desde então”, lamenta o presidente do Cremepe.
Segundo Lins, o Cremepe criou uma ferramenta para os diretores técnicos de unidades de saúde para que alimentassem diariamente com informações sobre a situação dos equipamentos e do fluxo de atendimento aos pacientes de covid-19. “Com esses dados, nós informávamos à SES e à rede privada sobre o que estava faltando nas unidades.”
Sobre o elevado número de médicos contaminados, Mário Lins reforça que a natureza do trabalho deixa os profissionais expostos. “Muita contaminação acontece na hora de desparamentar. Nós, quando fazemos o juramento, sabemos que ficaremos expostos. E estamos na linha de frente. Mas é preciso tomar as providências. Nós sabemos proteger e nos proteger, mas não pode faltar proteção para os profissionais.”
Mário Lins aproveita para salientar outro aspecto: “A pandemia não acabou. Precisamos manter o distanciamento social, só sair se for necessário. Continuar com as regras de higiene, lavar as mãos sempre, usar o álcool em gel. Porque essa pandemia pode virar uma endemia. Está aí a dengue há 40 anos…”, finaliza.
O Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco (CRP-PE) informa que recebeu uma série de denúncias de vários problemas entre os profissionais que estão na linha de frente. “Principalmente por falta de equipamentos de proteção individual. No início, esqueceu-se das necessidades dos psicólogos. Muitos colegas tiveram que comprar suas próprias máscaras. Então, acionamos as autoridades, cobrando que essas normas fossem cumpridas e a situação se normalizou”, explica Alda Roberta Campos, presidente do conselho e psicóloga da secretaria estadual de Saúde. “As pessoas à frente das políticas públicas precisam se responsabilizar pelas vidas dos profissionais. Os gestores devem ficar atentos.”
Alda Campos critica ainda a condução da crise pelos governos, em especial o federal. “A ideia de grupo de risco foi péssima. Passou à sociedade a noção de que só esse grupo se contaminava. Nós todos somos grupos de risco. O risco de contaminação é igual. Muitas mortes seriam evitáveis. O país está sem ministro da Saúde e isso é um absurdo”, continua ela, afirmando ainda que crê que o número de profissionais da linha de frente do combate à pandemia pode ser bem maior. “Há subnotificação. Muitas mortes são enquadradas como infarto ou insuficiência respiratória, mas ocorreram em pessoas que tiveram a doença. É como se uma morte no trânsito fosse classificada como traumatismo craniano e não como morte no trânsito.”
Questionados sobre as providências, denúncias e cuidados com os profissionais de saúde, o governo do Estado e a Prefeitura do Recife responderam com uma enxurrada de números.
A Secretaria Estadual de Saúde reconhece que não sabe exatamente quantos servidores estão na linha de frente. “Não há como delimitar um número específico de profissionais de saúde que estejam à frente do enfrentamento à Covid-19. Todas os equipamentos hospitalares podem receber pessoas que estejam com a doença, por isso, a necessidade constante de proteção e cuidado no contato inicial com os serviços de saúde”, explicou em resposta. “Na rede estadual de saúde, sob gestão direta, são mais de 26 mil servidores.”
Apesar das denúncias e da fiscalização dos órgãos de classe, o governo nega que tenha havido falta de EPI, material de higienização ou insumos. “Não houve falta desses insumos, garantidos por meio de diversas ações para compra de itens, de acordo com as especificações técnicas recomendadas pelos órgãos de controle, visando garantir a segurança do profissional de saúde e dos pacientes. Ao todo, mais de 30 milhões itens foram adquiridos”.
Sobre o apoio às famílias dos profissionais mortos, segue a SES, “ainda no mês de abril, o governador Paulo Câmara sancionou a Lei que garante pensão especial mensal para famílias de servidores da saúde e serviços essenciais, vítimas do novo coronavírus. A lei garante às famílias o salário integral dos servidores vítimas da Covid-19. As pensões deverão ser solicitadas em até 30 dias após o óbito”.
A respeito do suporte psicossocial e de serviços de saúde aos 19.555 profissionais e suas famílias, a assessoria informa que o “Programa Acolhe SES é uma estratégia da SES-PE, por meio da Unidade de Apoio Psicossocial – Uniaps, em parceria com a Escola de Governo em Saúde Pública de Pernambuco e a Gerência de Saúde Mental. Os profissionais de saúde podem ligar através do 0800-081-4100 de segunda a sábado no horário de 7h às 19h para o teleatendimento”.
No Recife, segundo a assessoria da Secretaria Municipal de Saúde, são quase 12 mil profissionais de saúde na rede, dos quais “mais de 3.300 deles contratados como reforço nesta pandemia”. A PCR informa que “antecipou, em mais de um mês, a homologação do concurso público para cargos de níveis médio, técnico e superior” da secretaria e que, no pico da pandemia, em maio, eram “mais de 5 mil profissionais de saúde atuando especificamente na linha de frente. Em função da redução do número de casos e queda nos indicadores, já foi iniciada a rescisão do contrato de alguns trabalhadores temporários”.
Quanto às denúncias de falta de equipamento e a proteção dos profissionais, a assessoria informa que “a Prefeitura do Recife entende que a segurança dos profissionais de saúde é fundamental. Por isso, foram adquiridos mais de 3,5 milhões de itens. A lista inclui máscaras cirúrgicas, luvas, aventais, máscaras N95, toucas, óculos de proteção e protetores faciais. Cada profissional que presta assistência ou precisa entrar em contato a menos de um metro dos pacientes suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus recebe equipamentos de acordo com o tipo de procedimento que realiza no paciente, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”. E que, “ainda em janeiro, começou a capacitar a rede municipal de saúde para enfrentamento ao novo coronavírus, incluindo profissionais dos serviços de pronto atendimento e do Samu”.
O governo municipal ainda informa que, desde abril, “oferece pensão integral para as famílias dos profissionais de saúde efetivos que venham a falecer em decorrência do novo coronavírus”. No caso, são nove profissionais.
Mais números fornecidos pela Secretaria de Saúde do município: “No Recife, 6.453 mil profissionais de saúde das redes municipal, estadual e privada foram diagnosticados com covid-19 – nem todos atuam na linha de frente da pandemia. Desse total, 6.377 se recuperaram da doença”
“Os demais profissionais que se curaram da covid, mas necessitam de acompanhamento ou algum tratamento específico podem buscar atendimento psicológico ou de outras especialidades, como fisioterapia, na própria rede municipal de saúde”, acrescenta a assessoria.
*Especial para Marco Zero Conteúdo
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.