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Quatro meses após assassinato, família de Victor Kawan cobra punição para policiais militares

Maria Carolina Santos / 14/04/2022

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Quando soube da morte da menina Heloysa Gabrielle, em Porto de Galinhas, a manicure Janaína Souza desabou. “Logo veio na mente o meu filho”, contou. Há quatro meses, o filho mais novo dela, Victor Kawan, de 17 anos, foi baleado e morto em uma situação parecida. O jovem estava de carona na moto de um amigo durante uma abordagem da Polícia Militar, no sítio dos Pintos, em Dois Irmãos, zona oeste do Recife. O amigo demorou a parar a moto. A dupla de PM que fez a abordagem – dois cabos, um homem e uma mulher – teria disparado por dez vezes. Uma única bala acertou Victor, de uma costela a outra, passando pelo coração. Ele faleceu no local, a alguns quarteirões de onde a família ainda mora.

Na manhã da quarta-feira, 13 de abril, os pais e a irmã de Victor, acompanhados de amigos, familiares e pessoas que estão ajudando no caso, se reuniram na praia do Pina para um ato simbólico: colocar 100 cruzes com balões brancos na areia. As cruzes representam crianças e adolescentes vítimas de violência em Pernambuco. “Isso não pode mais ficar acontecendo. Essa violência da polícia tem que acabar. É preciso justiça”, pede.

Victor Kawan morava com o pai, a mãe e a irmã. Estava terminando o terceiro ano do Ensino Médio e trabalhava em um lava jato e em uma hamburgueria. As horas livres passava na casa da namorada. “Ele era um menino que gostava de ajudar as pessoas”, lembra a mãe. No dia em que foi abordado pela pela polícia, ele havia ido comprar um lanche para a mãe. Depois, foi capinar parte de um terreno com um amigo.

Foi na volta dessa tarefa que, de moto, os dois foram passados por uma viatura da PM. Era por volta de 16h30 de um sábado, 11 de dezembro de 2021. A partir daí, os depoimentos divergem. Em um primeiro momento, a Polícia Militar informou que houve troca de tiros e uma arma foi encontrada com Victor. Família, testemunhas e moradores da área negam.

O que as testemunhas contaram à polícia e à família é de que o piloto da moto, Wendel Alves, de 18 anos, não tinha carteira de motorista e, por isso, teria hesitado em parar. Então, a dupla de policiais começou a atirar. Ao todo, foram dez tiros.

Os PMs teriam até entrado de volta na viatura, quando alguém da comunidade falou que havia um morto. “A policial mulher se desesperou”, conta o pai de Victor Kawan, o servente José Luiz Amâncio. Chamaram reforço. Três viaturas chegaram ao local: uma delas com o revólver que seria colocado na cena do crime, denuncia a família. “A própria policial saiu recolhendo as cápsulas das balas, que estavam no chão”, denuncia a mãe de Victor.

A câmera de uma casa da vizinhança gravou parte da ação, inclusive quando Victor é retirado sem vida por um PM e um morador da área. Em nota na época do crime, a Polícia chegou a afirmar que Victor foi socorrido com vida e morreu na UPA, em decorrência dos ferimentos.

O caso está sendo apurado tanto na corregedoria da Secretaria de Defesa Social quanto pela Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa. Na corregedoria, foi sugerido que a família de Victor se mudasse do Sítio dos Pintos, para evitar represálias. “Não tenho medo, só quero justiça. Meu filho era inocente”, pede José, que conta que não chegou a ser ameaçado.

Janaína diz que sempre perguntam porque a moto não parou rapidamente ao ver a viatura da PM atrás. “Os PMs não chegaram a dar ordem para a moto parar”, diz. “O outro menino pode ter se assustado porque não tinha carteira. Sempre disse para Victor para não entrar em discussão com policial”, diz Janaína.

A família do amigo que estava com ele, que sobreviveu sem ferimentos, participou do protesto na praia, mas não quis falar com a imprensa. Wendel Alves, por cautela, não compareceu ao ato na praia.

Quando foi até a UPA da Caxangá aa procura de informações sobre o irmão, Mickaelly Rayane, de 22 anos, ouviu um PM falar que “atirou para matar mesmo, porque era bandido”. Essa é uma dor de injustiça que a mãe de Victor não admite. Durante a entrevista, ela sai e pega na bolsa um objeto. É um par de havaianas envolto em um saquinho de plástico transparente. Em um pé, um buraco. No outro, um prego segura as tiras. “Me diga, isso é o calçado de um bandido? Um bandido usaria uma sandália assim?”, questiona, com lágrimas nos olhos.

Família e amigos de Victor Kawan protestaram na praia do Pina. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Racismo como modus operandi da PM

No final de fevereiro, dentro da investigação do DHPP, foi feita uma reprodução simulada dos fatos, a chamada reconstituição do crime. “Foi bastante favorável, fortalecendo a narrativa da família de Victor”, diz o advogado Eliel Silva, coordenador do Projeto Oxé, que acompanha juridicamente o caso. O Oxé foi criado em novembro do ano passado, fruto da parceria entre a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) e a Articulação Negra de Pernambuco (Anepe). A atuação do projeto é no oferecimento de serviços jurídicos e psicossociais para vítimas de racismo no estado.

Segundo Eliel, participaram dois peritos junto com dois delegados da 5ª delegacia de homicídios. “Foi um momento para a família entender como aconteceu. A reprodução simulada é um instrumento ainda é pouco utilizado aqui em Pernambuco. E isso dá mais garantia de como ocorreram os fatos. As testemunhas participaram. Só os policiais que estavam na abordagem não participaram”, diz o advogado. Os dois PMs foram afastados das ruas durante as investigações do crime.

O inquérito ainda não foi concluído. “Temos que esperar essa conclusão. Vamos ficar no aguardo da perícia da reprodução simulada para fazer novos encaminhamentos, no sentido também de pedir a prisão preventiva dos policias envolvidos”, explica Eliel.

Eliel vê com preocupação o aumento da violência policial em Pernambuco. “Percebemos que é um modus operandi da polícia, de uma filtragem racial para fazer essas abordagens. Também do local de onde acontecem essas abordagens que resultam em morte, que são as periferias, com a desculpa de um suposto conflito. E a nossa perspectiva é de que estão tentando legitimar essas abordagens afirmando que os danos não são tão grandes em relação ao nível de enfrentamento que a polícia diz fazer contra o tráfico de drogas. É como se regiões periféricas fossem regiões que servissem apenas ao tráfico de drogas”, critica o advogado.

Entre as soluções para o enfrentamento da violência policial, Eliel cita o fortalecimento das instituições de fiscalização, como promotorias de controle externo. “O promotor ou promotora deve se posicionar e ir em busca de respostas ágeis. E precisamos fazer funcionar a ouvidoria da polícia em Pernambuco e tornar os procedimentos da corregedoria mais transparentes”, defende o coordenador do projeto Oxé, que também cita a formação dos policiais e o uso de câmeras nos coletes.

A Marco Zero perguntou à Secretaria de Defesa Social (SDS) o que faltava para o inquérito na DHPP ser concluído, como estava a investigação na corregedoria, se os policiais envolvidos no caso permaneciam afastados das ruas e se a Polícia Militar ainda mantém a nota de que Victor estava armado no momento da abordagem.

Em nota, a SDS respondeu que “as circunstâncias da morte de Victor Kawan continuam em investigação, nas esferas administrativa e criminal. Os dois policiais militares envolvidos no caso foram afastados das atividades operacionais, enquanto durarem as apurações”. A nota termina afirmando que “os esclarecimentos serão dados com a conclusão dos trabalhos”.

Violência policial contra adolescentes aumentou

Relatório produzido no ano passado pela Rede de Observatórios de Segurança apontou que 165 crianças e adolescentes foram vítimas de homicídio em Pernambuco entre junho de 2019 e junho de 2021. Outras 19 foram vítimas de bala perdida, no mesmo período. Entre os estados do Nordeste presentes no estudo, Pernambuco é o que mais registrou violências contra crianças e adolescentes.

Outra pesquisa mostra que tem aumentado a violência policial contra crianças e adolescentes no Brasil. Elaborado pela Unicef, o Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil identificou um total de 34.918 mortes violentas intencionais (MVI) de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos de idade entre 2016 e 2020.

A principal causa de mortes violentas na faixa etária de 10 a 19 anos são os homicídios dolosos. Porém, a participação desses crimes no total de mortes vem sofrendo redução e, ano após ano, as mortes decorrentes de intervenção policial vêm crescendo. Em 2020, representaram mais de 15% das mortes violentas dessa faixa etária no Brasil.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com