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Quilombolas temem impacto do coronavírus e sofrem com descaso

Débora Britto / 15/04/2020

Arte: Thiko

Em meio à pandemia do coronavírus, as comunidades quilombolas veem aumentar ainda mais o grau de vulnerabilidade em que vivem. Pernambuco é o quinto estado brasileiro com mais comunidades remanescentes de quilombo, com 195 territórios reconhecidos pela Fundação Palmares, mas lideranças quilombolas afirmam que não estão recebendo auxílio do Estado.

A realidade das comunidades quilombolas, em grande parte rurais, já era, antes mesmo da pandemia do covid-19, de extrema dificuldade ao acesso à saúde e outras políticas públicas. Além do perigo que o vírus representa para as pessoas mais velhas, guardiãs do legado e ensinamentos ancestrais, a impossibilidade de comercializar a produção agrícola é outro problema.

A Coordenação Estadual de Articulação de Comunidades Quilombolas de Pernambuco (CEACQ) tem orientado lideranças a restringirem o acesso de não moradores às comunidades. Eles próprios têm evitado ir nas comunidades. O esforço para proteger as pessoas mais vulneráveis, no entanto, não será suficiente sem apoio do governo. Apesar de no Brasil não existirem dados estatísticos oficiais sobre a população quilombola, a CEACQ estima que o estado tem cerca de de 250 mil pessoas identificadas como quilombolas.

De acordo com Antonio Crioulo, liderança quilombola de Conceição das Crioulas e integrante da CEACQ, a condição de isolamento territorial e de desamparo de políticas públicas não mudou, mesmo diante da ameaça do coronavírus às comunidades. “Apesar do discurso de Pernambuco ter um governo inclusivo e ter tentado incluir as comunidades tradicionais, infelizmente não há nenhuma iniciativa por parte do Governo do Estado de dar qualquer tipo de assistência seja por meio de prevenção, seja por meio de políticas específicas, ou acesso à cesta básica”, denuncia.

Sem assistência do governo do estado e municípios

Diferente dos povos indígenas, que conquistaram a construção do sistema de saúde indígena, quilombolas lidam diariamente com o esquecimento de prefeituras, governos estaduais e União.

Em Pernambuco, o Plano Estadual Pernambuco Quilombola estabelece diretrizes e tem como objetivo promover a igualdade e a proteção dos direitos das comunidades quilombolas, mas sua vigência encerrou em 2019. A renovação do plano deveria acontecer no início de 2020, mas lideranças denunciam que a nova gestão da Coordenadoria de Igualdade Racial tem negligenciado a questão.

A Marco Zero Conteúdo procurou a Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, pasta onde está localizada a Coordenadoria de Igualdade Racial, para saber que ações foram tomadas especificamente para as comunidades quilombolas na política de prevenção ao coronavírus, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem. No site da secretaria não há nenhuma menção aos quilombolas nas ações de prevenção ao coronavírus e assistência às populações vulneráveis.

Sem ações diretas do Governo do Estado, as comunidades quilombolas têm se organizado como podem para reunir doações para quem mais precisa. “A gente está montando pontos de referência nas cidades, mas sem ir às comunidades. A gente tem arrecadado doações e mandado alimento, além de articular e informar as pessoas”, conta Antonio Crioulo. Em alguns lugares, há pessoas fazendo compras, indo ao banco e farmácias para que os mais velhos não deixem as suas casas.

Para os quilombolas, as pessoas mais velhas, muitas vezes chamado de griôs, são a base da organização e da identidade ancestral que buscam preservar. “Nossos griôs têm esse papel de acalentar a gente na hora das dificuldades e também trazer paz interior”, conta Antonio. Com o risco de poder transmitir o vírus a um dos mais velhos, o sentimento de angústia e preocupação só aumenta.

Articulados por conta própria

A cidade de Mirandiba, no Sertão Central pernambucano, é o município com mais comunidades quilombolas no estado. No entanto, as únicas ajudas que a população mais pobre e vulnerável tem recebido vêm de organizações, movimentos sociais e universidades parceiras.

Angela Maria, quilombola e liderança local, relata que o sentimento de muitos é de extrema angústia e incerteza. “A nossa comunidade não é diferente do restante do mundo nesse processo de quarentena, mas particularmente somos mais vulneráveis. Temos muitos idosos com doenças como hipertensão, diabetes, asma, anemia falciforme. Temos um grupo muito grande e em comunidades isoladas a 30 quilômetros da sede do município”, explica.

Em isolamento há cerca de um mês, Angela chama atenção para os maiores medos das comunidades: a fome e a falta de água e, por fim, a chegada do coronavírus. “Seria a destruição das nossas comunidades”, diz.

“A gente não recebe quase nenhum benefício do governo. A gente vem de uma realidade de esquecimento a vida inteira, invisibilizados. A gente não existe, não consta na história do município que existem tantos negros, apesar de sermos o município com maior quantidade de comunidades quilombolas. Mas, em termos de qualidade, nós sofremos com a falta de atenção à saúde, não temos nenhuma política hoje destinada à saúde quilombola”, denuncia Angela.

Segundo ela, as pessoas estão com receio do contato com gente de fora das comunidades, mas que estão buscando meios de levar doações. “As pessoas podem entrar em contato diretamente com lideranças (entre em contato por aqui). Precisamos estar conectados com o mundo para que o mundo saiba como estamos, para que não se torne um extermínio das comunidades e que o governo possa fazer o seu papel, que é dar assistência básica”, diz.

No município de Betânia, no Sertão do Moxotó de Pernambuco, as quatro comunidades quilombolas existentes também enfrentam a ausência de auxílio dos poderes executivos estadual e municipal. Espedita Quilombola, vereadora pelo PSB e liderança quilombola, conta que até o momento não houve nenhuma ação concreta do estado. Do município, a vacinação contra a gripe foi feita diretamente na casa de idosos, para evitar que fossem às ruas.

Segundo a vereadora, o único auxílio que de fato está chegando às pessoas é o recurso da renda básica emergencial. A associação das comunidades quilombolas da cidade está ajudando que não tem acesso à internet a fazer a solicitação.

“Estamos orientado as famílias que caso apresentem algum sintoma procurem o hospital ou entrem em contato com a liderança para que possamos articular com a equipe de saúde”, conta.

Outra orientação dada é que as pessoas utilizem as plantas medicinais cultivadas nas comunidades para evitar a ida ao centro da cidade, por exemplo. Além disso, é a associação quem tem orientado as pessoas a ficarem em casa, usar máscaras e álcool em gel, quando disponível. Espedita estima que 70% das famílias quilombolas do município estão cumprindo a quarentena.

Segundo ela conta, as pessoas estão preocupadas e com medo pelo que pode acontecer. “É um momento tenso, desafiador, e assustador para lidar com as necessidades existentes, tanto na saúde, como na questão de sobrevivência econômica. Nos quilombos temos bastante famílias em vulnerabilidade social e já temos dificuldades de acompanhar e dar cobertura e, nesse momento, as dificuldades aumentaram”, lamenta.

Pauta nacional ampliada

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) tem defendido no Congresso Nacional uma pauta extensa de proteção aos direitos dos quilombolas no contexto da crise econômica agravada pela epidemia do coronavírus. A organização pede a isenção das contas de água e luz até o final do ano, para aliviar o peso financeiro. Por outro lado, também demanda a ampliação das compras diretas pelo governo da produção agrícola quilombola, assim como a distribuição para quem não produz, além da criação de uma estrutura de escoamento e da extensão das políticas da reforma agrária para todas as comunidades quilombolas, inclusive aquelas em processo de reconhecimento.

A pesquisadora quilombola na área da educação e integrante da Conaq, Givânia Silva, lembra que, para os quilombolas, o coronavírus agrava um cenário já bastante difícil.“As medidas são pensadas com olhar universal, mas na verdade esse olhar universal está mais do que provado que não atende as necessidades de grupos com processos históricos específicos, e com alto grau de informalidade”, critica.

É preciso fazer chegar nos quilombos os auxílios para as pessoas vulneráveis, mais essa não é uma tarefa tão simples assim. “Mandam fazer um cadastro, mas há lugares sem energia, sem internet. Você automaticamente já gera uma questão de deslocamento, o que aumenta os riscos”, diz.

Na mobilização de associações e comunidades, uma das prioridades tem sido orientar as pessoas a acessarem os recursos emergenciais. “A gente está bem preocupado e, apesar de todo o isolamento social, também estamos tentando colocar essas questões em pauta, não do governo, porque com esse governo ninguém consegue dialogar, mas pelo menos para tentar acionar as redes de apoio às comunidades”, conta a pesquisadora. Vale lembrar que Bolsonaro, em 2017, antes de ser eleito presidente, afirmou que se eleito não teria “um centímetro demarcado” para indígenas e quilombolas.

Enquanto isso, a apreensão do dia a dia não deixa de existir. “Estamos bastante preocupados, já há um caso na minha comunidade, em Pernambuco, em Conceição das Crioulas. Não se sabe ainda se a pessoa se contaminou na cidade de Salgueiro ou se foi na comunidade mesmo”, conta Givânia Silva.

Outra preocupação da Conaq é a continuidade dos trabalhos no Congresso, apesar da necessidade de isolamento social. Por isso, no dia 30 de março, a Conaq solicitou a suspensão da tramitação de processos que envolvem comunidades quilombolas. Segundo Givânia, a maioria dos processos tem como objetivo a retirada de direitos dos quilombolas, mais um perigo para a população. Até o momento, não houve retorno sobre a demanda.

Para ela, por tudo isso, os quilombolas estão mais desassistidos pelos governos. “Com todas as fragilidades que temos na Funai, com os povos indígenas, mas ainda temos um órgão dedicado a isso. Esse trabalho é o que a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) tinha começado e já não existe mais. É muito mais deliciada a situação das comunidades quilombolas”, alerta.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.