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Parte da comunidade científica de Pernambuco recebeu com surpresa e certa apreensão a nomeação da professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Flávia Lucena Frédou para a diretoria científica da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe). Não pelo nome escolhido – engenheira de pesca, ela tem ampla experiência tanto acadêmica como em gestão –, mas porque a pesquisadora havia ficado em segundo lugar na lista tríplice entregue à governadora Raquel Lyra (PSD). Até então, o cargo sempre foi ocupado pelo primeiro lugar da lista, que é elaborada após uma consulta aos docentes de pós-graduações do estado.
Principal fonte de bolsas e verbas para pesquisas do Governo do Estado, a Facepe teve um orçamento de mais de R$ 74 milhões para bolsas no ano passado. O cargo mais alto, a presidência, é ocupado por indicação do governo, sem consulta à comunidade científica. A diretoria científica, porém, tem um rito diferente, com a escolha de uma lista tríplice elaborada por meio de uma votação online. É um balanço entre comunidade científica e governo, para evitar que a Facepe fique refém de projetos político-partidários.
Não é uma lei, e nem mesmo uma regra, mas desde 1989, quando a instituição foi fundada, os governadores têm respeitado a decisão da consulta e nomeiam os primeiros colocados da lista tríplice. A diretoria científica tem um papel central em ajudar a presidência da Facepe a elaborar a política científica de Pernambuco, apoiando a Secretaria de Ciências e Tecnologia não só institucionalmente, mas também na própria elaboração da política.
Para concorrer à vaga, pesquisadores e pesquisadoras precisam cumprir as regras do edital, que inclui angariar cartas de recomendação de instituições de Pernambuco. Para ter a inscrição homologada, é necessário ter no mínimo dez apoios. Para esta consulta, quatro pessoas se inscreveram e três tiveram suas inscrições homologadas: Walter Franklin Marques Correia (Centro de Artes e Comunicação da UFPE), Severino Alves Júnior (Centro de Ciências Exatas e da Natureza da UFPE) e a a nomeada, Flávia Lucena Frédou (UFRPE). Na inscrição, Walter saiu bem à frente, colocando 232 cartas de recomendação, enquanto Flávia inscreveu 35 cartas e Severino, 18.
Depois, houve o processo de votação – ou de consulta, como é oficialmente chamado. Dos 2.129 eleitores aptos, 903 votaram eletronicamente – uma abstenção de 57,58%. Também foram contabilizados 11 votos em branco (0,46%) e 4 votos nulos (0,44%). Os resultados foram bem próximos:
1. Prof. Dr. Walter Franklin Marques Correia (UFPE), com 313 indicações válidas (35,25%)
2. Profa. Dra. Flávia Lucena-Frédou (UFRPE), com 289 indicações (32,54%)
3. Prof. Dr. Severino Alves Júnior (UFPE), com 286 indicações (32,21%)
Para a Academia Pernambucana de Ciências (APC) não se trata de comparar currículos. A competência de Flávia Lucena Frédou não está em disputa: é pesquisadora 1D CNPq (nível alto de reconhecimento e experiência na área de pesquisa), doutora em modelagem com formação na Inglaterra e na França, com mais de 140 publicações científicas. Ela também participou da equipe de transição do governo Lula na temática de pesca e foi titular da Secretaria Nacional de Registro, Monitoramento e Pesquisa do Ministério da Pesca e Aquicultura, que é comandado por André de Paula, do mesmo Partido Social Democrático (PSD) da governadora Raquel Lyra.
“A surpresa foi a governadora – que tem um perfil de defesa da democracia – ter escolhido o segundo nome, e não o primeiro. Em hora alguma questionamos a competência da nomeada. Aliás, qualquer um dos três da lista tem competência para o cargo”, afirma o presidente da APC, o professor Anderson Gomes, do Departamento de Física da UFPE. A entidade tampouco pede que haja mudança na nomeação. “É um fato consumado, não estamos pleiteando nenhuma revogação “, diz.
Há ainda outra insatisfação da comunidade científica com o Governo de Pernambuco, que é o sucateamento do Instituto Agronômica de Pernambuco (IPA), que tem sido usado por vários governos como cabide de políticos. “É uma situação totalmente diferente da Facepe”, pondera Gomes. “O IPA é uma instituição eminentemente técnica. Até não tem um problema ser um gestor político com uma equipe extremamente técnica trabalhando, nós não vemos problema”, diz Gomes. “Mas não é isso o que está acontecendo”.
No final de março, o governo nomeou o advogado Miguel Duque para a presidência do órgão. Ele é filho do deputado estadual Luciano Duque (Solidariedade). “O problema é que o IPA tem perdido o protagonismo que ele já teve. Já é a segunda ou terceira vez que a nós, enquanto academia, nos reportamos ao IPA, porque ele está sendo muito mal usado. E essa reclamação é procurando contribuir para o protagonismo que a ciência pode fazer pelo Estado”, diz Gomes.
A APC, contudo, alerta para dois fatores. Um é a abertura de um precedente que pode ser perigoso, com o não cumprimento da vontade da comunidade científica, abrindo brecha para uma futura indicação política para um cargo técnico. Gomes cita como exemplo o que aconteceu durante o governo Bolsonaro, em que listas tríplices de indicações para reitores de universidades federais foram ignoradas, em uma afronta à democracia e à autonomia das universidades.
O outro fator é que, uma vez que há a consulta à comunidade científica, deve haver também a devolutiva, com a indicação da vontade da comunidade. “A escolha é uma prerrogativa da governadora, que poderia ter escolhido qualquer um da lista, ou até nem atendido a lista. Mas é importante ressaltar que ela não quis nomear o primeiro colocado. O fato da comunidade científica ser consultada e indicar uma pessoa não tem mais importância? Como é que vamos nos mobilizar se o governador ou a governadora faz o que quiser?”, questiona Gomes.
Um abaixo-assinado foi lançado online solicitando que “diante da gravidade do ocorrido” e “em favor da democracia, da decisão da comunidade científica e da autonomia institucional da Facepe”, a governadora Raquel Lyra reconsidere a sua posição e emposse o primeiro lugar. O documento já tem 539 assinaturas.
Apesar das críticas, uma carta de apoio à nomeação foi publicada no Jornal do Commercio desconsiderando essas ponderações e colocando a nomeação de Flávia como uma vitória, por ela ser uma mulher. A carta foi assinada por 17 professores, a maioria da UFRPE, incluindo a reitora Maria José de Sena. Foi a primeira vez que um docente da UFRPE foi escolhido pelo governo para o cargo.
“A nomeação da Dra. Frédou corrige uma grave distorção histórica. Em toda a trajetória da Facepe, apenas duas mulheres presidiram a Fundação. No cargo que será ocupado por Frédou, apenas uma outra mulher — e por um curto período de um ano — esteve presente. Sua chegada representa, portanto, um avanço institucional e simbólico incontornável”, diz trecho da carta, que defende também a governadora: “a consulta, como é sabido, tem natureza consultiva e não deliberativa. A decisão cabe, portanto, à governadora, que, ao optar por Flávia Frédou, não apenas respeita as regras institucionais como reafirma sua visão estratégica e de futuro para a ciência no Estado”.
Docente do Departamento de Design da UFPE e professor no Programa de Pós-graduação em Design (PPGDesign), o primeiro colocado da lista, Walter Franklin, já ocupou diversos cargos de gestão, sendo por oito anos o diretor do CAC. Foi a primeira vez em que um docente da área de Ciências Humanas foi o mais votado na lista tríplice.
“Isso [ser da área de humanas] foi algo que pesou muito para os colegas que foram para a consulta”, disse Walter à MZ, lamentando a falta de transparência. “Não houve nenhuma manifestação da Facepe ou da governadora para a comunidade científica sobre qual foi o motivo de não seguir a ordem da lista. A nomeação saiu na véspera do feriadão de primeiro de maio, numa jogada estratégica para não ter nenhuma repercussão”, acredita Walter, que está fazendo um pós-doutorado até novembro na Holanda. “Mas se eu tivesse sido nomeado eu voltaria para o Recife para assumir o cargo”, diz.
Em nota para a Marco Zero, o governo reiterou o resultado apertado da consulta, falou da carreira exitosa de Flávia Lucena Frédou e que a nomeação dela levou em conta “critérios técnicos, estratégicos e alinhados às diretrizes da atual gestão”. Ao pontuar o currículo da nova diretora, a nota do Governo de Pernambuco destaca a participação dela em organizações nacionais e internacionais, “o que foi considerado um diferencial relevante para o projeto estratégico da Facepe nos próximos anos”, diz a nota.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org