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Por Leonardo Lenin
Equipe blog Povos Isolados
No ultimo dia 20 de abril, foi publicada a Portaria 481 do Ministério da Justiça, declarando a Terra Indígena (TI) Kawahiva do Rio Pardo de usufruto exclusivo de um povo indígena isolado de língua kawahiva. Representou um novo passo para o processo de regularização fundiária[1] do território dos isolados kawahiva, processo esse que se arrasta há mais de 17 anos. Trata-se de 411 mil hectares de território indígena localizado no noroeste do estado do Mato Grosso, cenário de intensos conflitos fundiários, desmatamento alarmante e forte mobilização de políticos regionais contrários ao processo de regularização fundiária dessa TI.
Os indígenas isolados que habitam nesse território são provavelmente sobreviventes de um povo falante da língua kawahiva, da família linguística Tupi Guarani, como outros tantos povos que se identificam como kawahiva no interflúvio Madeira-Tapajós, tais como amondawa, parintintin, tenharim, karipuna, juma entre outros. No entanto, ao contrário destes outros povos, os kawahiva do Rio Pardo são caçadores e coletores. Especula-se que deixaram de exercer a agricultura em função das estratégia de constante fuga que adotaram por conta do histórico de ataques sofridos em seu território. O nome kawahiva do Rio Pardo, se deve à existência de um rio com esse nome na região, diferenciando esse grupo isolado dos restantes povos de língua kawahiva.
Histórico de um processo moroso
Embora a possível presença de índios isolados no noroeste do estado do Mato Grosso conste nos primeiros levantamentos da Funai, quando da criação do Departamento de Índios Isolados em 1987, foi somente em 1999 que se confirmou a presença do grupo Kawahiva em situação de isolamento.
Em maio daquele ano, no interflúvio dos rios Guariba e Aripuanã, município de Colniza (MT), dois madeireiros realizavam levantamento de árvores na região para posterior extração. Certa noite, os indígenas isolados, ocultos na floresta, começaram a arremessar galhos e ouriços de castanha no acampamento dos madeireiros, com intuito de intimidá-los. Os dois madeireiros, assustados, fugiram do local e relataram o ocorrido no município de Colniza. A notícia chegou até o antropólogo João Dal Poz Neto, que notificou a Funai e o Ministério Publico do Mato Grosso (MPF-MT), resultando na realização de expedição de localização em junho de 1999. Jair Candor,atualmente coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha Juruena (FPEMJ), da Funai, liderou essa expedição que coletou indícios irrefutáveis da presença dos isolados, confirmando oficialmente a existência desse povo indígena.
No início dos anos 2000, o território dos kawahiva isolados fazia parte da região conhecida como Arco do Desmatamento e o município de Colniza liderava o ranking dos municípios mais violentos do país, segundo pesquisa realizada pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), em 2004. A pesquisa apontava Colniza com o maior índice de homicídios do país, sendo o principal motivo o conflito agrário e ambiental. O cenário, indicador da extrema vulnerabilidade do povo indígena isolado, foi agravado pela batalha jurídica que impedia o andamento do processo de regularização fundiária.
Enquanto os levantamentos da equipe de campo da Funai registravam uma série de acampamentos dos kawahiva isolados – seus vestígios, locais de coleta e e caça, pretensos proprietários e madeireiros da região, com apoio de lideranças políticas locais e estaduais, conseguiam derrubar portarias que Restrição de Uso[2], desacreditavam os trabalhos da Funai e questionavam a real existência dos indígenas. Declaravam que as evidencias encontradas pela equipe da Funai eram encenadas. Além do mais, argumentavam que os acampamentos e outros vestígios localizados e documentados eram de regionais não-indígenas, como castanheiros e coletores de copaíba.
Mesmo com a confirmação de existência dos kawahiva isolados, em 1999, a primeira Portaria de Restrição de Uso (interdição de área) só foi publicada em 2001. No mesmo ano, a decisão da 17o Vara da Justiça Federal do Distrito Federal derrubou a portaria de interdição da Funai, acatando a ação proposta pela Sul Amazônia Madeireiras e Agropecuária LTDA. Uma nova restrição de uso só iria ser publicada em 2003. Neste período, o acampamento da equipe da Funai foi queimado por madeireiros e a equipe de campo, por decisão da 17o Vara da JF-DF, impedida de entrar no território indígena. Os kawahiva isolados estavam expostos ao mais alto grau de vulnerabilidade.
Em 2005, os sertanistas Jair Candor e Rieli Franciscato constataram processo de grilagem no interior da área restrita e aberturas de picadas e estradas para extração de madeira, organizado pela Associação dos Proprietários Rurais de Colniza. Os sertanistas denunciaram a invasão ao MPF-MT, que instaurou uma Ação Civil Pública, resultando na Operação Rio Pardo e obrigando a Funai a instituir Grupo Técnico para realizar estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo. Na ocasião, o Ministério Público caracterizou a ação dos madeireiros e grileiros como genocídio, por entender que as invasões tinham como objetivo afugentar os indígenas isolados da região, bem como exterminá-los. Esse fato foi comprovado pelos sertanistas que, durante ação de fiscalização no acampamento dos invasores, encontraram bombas caseiras.
Operação Rio Pardo e Identificação e Delimitação da Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo
A Operação Rio Pardo, com objetivo de impedir ação madeireira e grilagem no território indígena e garantir a proteção dos kawahiva isolados, foi a primeira ação de fiscalização dos órgãos de segurança pública e ambiental na região noroeste do estado do Mato Grosso. Mais de 20 pessoas foram presas e foi comprovado um esquema ilegal de licenciamento de Planos de Manejo pela Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEMA-MT), que tinha o objetivo de legalizar ações de grilagem, operacionalizado pela contratação de pistoleiros. Era urgente que se agilizasse o processo de regularização fundiária da TI.
Em setembro de 2006 foi instituído Grupo Técnico para realizar os estudos de identificação e delimitação e, em março de 2007, foi publicada a Portaria 170/Funai, reconhecendo os estudos (RCID) de identificação da Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo. Os limites da Terra Indígena definidos pelos estudos apontaram uma área maior do que a previamente indicada na Portaria de Restrição de Uso (interdição), passando de 116 mil para 411 mil hectares. O aumento da compreensão sobre as dinâmicas territoriais dos kawahiva isolados, por meio da sistematização de mais de 40 acampamentos no período entre 1999 2006; e da constatação dos processos de uso dos recursos naturais; justificaram a ampliação da área, garantindo assim a reprodução física e cultural dos kawahiva isolados, conforme determina o Art. 231 da CF/88.
Contudo, a definição de uma área maior acarretou em nova ofensiva contra as atividades da Funai e a decorrente judicialização do processo de regularização fundiária em curso. Durante os trabalhos de notificação da Portaria 170, servidores da Funai foram ameaçados e intimidados por um funcionário da Madeireira Tupinambá, posteriormente preso em ação da Funai e da Polícia Federal.
As empresas madeireiras e os pretensos proprietários entraram com ação judicial e conseguiram paralisar o processo até que se apresentassem laudos periciais feitos por antropólogos nomeados pela Justiça Federal do Mato Grosso. Os principais autores das judicializações foram os proprietários de terras Alécio Jaruche e Renato Pinto, ambos presos na operação Rio Pardo. A ação proposta pelos pretensos proprietários se apoiava no argumento “muita terra para pouco índio”, bem como contestavam a existência do povo isolado. Continuavam a afirmar que os acampamentos e vestígios eram de regionais. Foram realizadas duas perícias antropológicas, sendo que ambas corroboraram com o RCID, bem como registraram a pressão madeireira e grilagem no território indígena.
As imagens dos Kawahiva e a pressão política
Durante uma das expedições rotineiras de monitoramento do povo kawahiva, o sertanista Jair Candor filmou parte do grupo isolado, quando os indígenas se deslocavam pelo território[3]. Se as evidências apresentadas pelos trabalhos de campo da Funai suscitavam desconfiança quanto à veracidade da presença dos indígenas na região, por pessoas contrárias à regularização da terra indígena, as imagens em vídeo dos kawahiva surgiu como prova irrefutável da sua existência. Ainda assim, o procedimento de regularização fundiária permaneceu paralisado, até a recente publicação da portaria declaratória pelo Ministro da Justiça.
Em 2011 a Funai recebeu ofício do Vice Presidente da República, Sr. Michel Temer, solicitando manifestação diante do parecer de advogado dos pretensos proprietários que negavam a existência dos indígenas. Ainda em 2011, o então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, reuniu-se com representantes do legislativo e do governo do estado do Mato Grosso para discutir a possibilidade de instaurar um Grupo Técnico para discutir os processos de regularização fundiária de terras indígenas do estado, sendo a Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo uma delas .
Entre os anos de 2012 e 2015, as invasões no território dos kawahiva foram intensificadas, tendo a morosidade na publicação da portaria pelo Ministério da Justiça contribuído para essa situação. Concomitante a essa investida, exerceu-se uma forte pressão política, sendo um dos expoentes o então presidente da Assembléia Legislativa do Mato Grosso, o ex-deputado José Riva (PSD). Riva afirmava que não existiam indígenas na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo. Durante o período, correram rumores de que o então deputado estaria adquirindo terras das madeireiras que incidem ou são limítrofes à Terra indígena Kawahiva do Rio Pardo. Também foi constatado que a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA) licenciou planos de manejos em regiões limítrofes à terra indígena para familiares do ex-deputado Riva, que ficou conhecido nacionalmente por ser o parlamentar que mais responde processos na justiça. Uma das principais acusações diz respeito ao desvio de mais de 10 milhões de reais da Assembléia Legislativa do Mato Grosso.
A Funai concluiu seu parecer final sobre o RCID da TI Kawahiva do Rio Pardo – conforme determina o Decreto 1775/96 – após analisar e responder às inúmeras contestações de proprietários de terras da região, e encaminhou-o para apreciação do Ministério da Justiça – em 24 de abril de 2013 – com vistas à publicação da portaria declaratória.
Em agosto de 2013, a juíza Vanessa Curti Perenha Gasques, da 2o Vara da Justiça Federal de Mato Grosso, emite uma sentença determinando à União retomar o processo de regularização fundiária da TI Kawahiva do Rio Pardo, cabendo ao Ministro da Justiça assinar e publicar a portaria declaratória e retirar os ocupantes não indígenas do interior da TI. Mesmo estando o processo em conformidade legal e sob decisão da justiça federal em favor da regularização fundiária, a portaria de declaração da TI Kawahiva do Rio Pardo aguardou ainda alguns anos a assinatura do então ministro Eduardo Cardozo.
A declaração da terra indígena fortalece as ações de proteção da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena, bem como as ações de fiscalização realizadas em conjunto com órgãos de segurança e ambientais. Também possibilitará a retirada de ocupantes não-indígenas. Atualmente, há fazendeiros no interior da área que insistem na exploração sobretudo da pecuária, em pleno território dos kawahiva isolados. A publicação da portaria de declaração é um vitória importante na história de resistência do povo indígena isolado Kawahiva do Rio Pardo.
Para que não se repita o histórico de outras Terras Indígenas, onde o povo indígena assistiu ao esbulho de seu território durante a morosidade da regularização de seus territórios – tal como ocorreu com os Awá da Terra Indígena Awá, no Maranhão, que no decorrer do processo de regularização fundiária tiveram mais de 30% do seu território desmatado – é necessário que o Estado brasileiro tenha condições de celeridade na continuidade do processo de regularização fundiária da TI Kawahiva do Rio Pardo.
Foto em destaque: Tapiri dos kawahiva isolados, Jair Candor/Funai, 2015. Fonte:http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/3727-mj-declara-as-terras-indigenas-estacao-parecis-mt-kawahiva-do-rio-pardo-mt-sissaima-am-e-murutinga-tracaja-am
[1] O procedimento de regularização fundiária de terras indígenas é determinado pelo Decerto 1775 de 8 de janeiro de 1996 ( http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1775.htm)
[2] Restrição de Uso é uma ferramenta administrativa que determina a paralização de atividades econômicas na região para proteção de indigenas isolados e realização de estudos de campo por equipe de indigenistas das Frentes de Proteção Etnoambiental. A Restrição de Uso é amparada pelo inciso VII do art 1º da Lei 5361, de 5 de dezembro de 1967, e Decreto 7.778, de 27 de julho de 2012, estando em conformidade com o artigo 231 da Constituição Federal de 1988, com o inciso I do artigo 4º da Lei 6.001/73, e com o artigo 7º do Decreto 1775, de 8 de janeiro de 1996,
[3] Em agosto de 2013, reportagem foi exibida com as imagens obtidas pelo sertanista Jair Candor e situação de pressão do território dos kawahiva isolados (http://globoplay.globo.com/v/2754692/, http://globoplay.globo.com/v/2757398/). Também entrevista feita com o indigenista Elias Bigio, então coordenador substituto da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena contextualizava os trabalhos da Funai. Na matéria também é possível ver o discurso dos políticos locais alegando a não existência dos kawahiva isolados (http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2013/08/apos-cenas-de-tribo-isolada-vereador-nega-que-haja-indios-em-cidade-de-mt.html )
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