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Relato de uma cidade invisível, cheia de lutas, resistência e amor

Marco Zero Conteúdo / 09/04/2020

Crédito: Ricardo Labastie

Por Sarah Marques*

Me chamo Sarah Marques, nascida e criada em Caranguejo Tabaiares. Tenho 39 anos, sou filha de Siraquitan e Norma, que se conheceram e casaram na comunidade. Mãe solo de Juliana e Rafael, gêmeos de 13 anos. Meu pai era liderança “votada ” na comunidade defendida com unhas e dentes. Minha mãe, liderança “reconhecida” pela simpatia, articulações fora da comunidade, possibilitando arrumar empregos e fazer alguns vezes essa intermediação com a cidade branca.

Desde de bem pequena comecei a fazer a pergunta que se faz quando se nasce na favela: “por que estou aqui?” em um barraco de madeira que enche quando chove, em um lugar que não tem praça, o esgoto é o povo que faz… Essa pergunta vai se perpetuando por toda nossa história.

É tão forte que tem uma hora que deixa de ser pergunta e começa a ser uma afirmação: eu só mereço estar aqui!! Sem água encanada, sem saúde digna, a beira de um canal por onde passam as águas tão importantes da nossa cidade, mas que não é tratado assim, sendo o veículo do esgoto e do lixo e passando na frente da sua casa com um cheiro que a visita sente de longe.

O questionamento fica cada vez mais forte. Com raízes fincadas no território é preciso entender nossa história para ver beleza na favela. Não romantizar (essa palavra da moda), mas ver a beleza da resistência das que vieram antes, das que aterraram esse chão e nos deram teto quando fomos jogadas à própria sorte.

Caranguejo Tabaiares surge há mais de 100 anos, lá pela libertação dos escravos, sendo um Território Tradicional Pesqueiro que hoje luta para manter várias tradições.

Muita bola foi jogada em Caranguejo Tabaiares. Meu pai (era assim que o chamava) era um craque. O nome Tabaiares tem origem indígena, mas a gente só destacava a origem do campo de futebol que foi ocupado e deu origem a metade da comunidade. Caranguejo é por causa do mangue e porque, quando estava ocupando a favela, o povo passava na avenida e dizia que estava “sujo de lama de caranguejo”.

Quando se é adolescente os porquês aumentam e, no meu caso, fui a fundo. Entrei em um censo que estava sendo feito na comunidade e não parei mais… entrei, formei grupo jovem, participei de cursos dentro e fora da comunidade e saí muito da comunidade para procurar a resposta do porquê estar nesse lugar e sentir orgulho dele.

Foi preciso a ameaça de saída dos meus pais para me trazer as lembranças das rezas de Santo Antônio, das “despescas” dos viveros, das histórias das mais velhas sobre a porca luminosa, para tomarmos cuidado nos becos e vielas da favela. Nessa ameaça a gente começa a entender que moramos no centro da cidade, que o que está em jogo é que para os poderosos a terra que era só mangue e foi aterrada com suor e sangue é valiosa e se é boa não deve ser desse povo.

Sarah Marques. Crédito: Ricardo Labastie

E as perguntas começam a ter respostas. Nosso canal tão sujo, nossas ruas sem infraestrutura, sem lazer. Prédios e grandes empresas nos cercando… Tudo isso orquestrado para que não nos déssemos conta que a resposta estava na gente. E ainda bem que há tempo conseguimos resgatar nossa história de luta e resistência, que não vem de agora e, sim, desde quando nossos avós faziam o barraco à noite e a polícia derrubava pela manhã.

Resistimos, criamos o coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste, que conseguiu organizar um movimento que, em meio a uma ameaça clara da prefeitura junto com o poder imobiliário que começaria tirando 76 famílias e, sabe se lá, quantas depois, podíamos mostrar nossa história para o mundo e resistir.

Mostrar que fazemos parte dessa cidade, que temos cultura. Fizemos cine debates com filmes produzidos na própria comunidade, músicas com os jovens, fomos parar no cinema São Luiz com o brega protesto, criamos uma rede de articulação que mostrou para a sociedade que a pergunta que inclusive ela faz com nojo tem reposta: estamos aqui por que somos os donos e donas da terra e exigimos ser tratados como parte da cidade que precisa de serviços e paga caro por eles.

* Sarah é liderança comunitária, integrante do coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste e do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH). Também é bolsista do Fundo Baobá.

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.