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Rios, pontes e desigualdades na Zona Sul do Recife

Marco Zero Conteúdo / 02/02/2022

Canal do Jordão, Zona Sul do Recife. Crédito: Karinne Costa

Por Karinne Costa*

Territórios são construídos também por suas memórias, histórias e sonhos. Assim, quem vive nas periferias de Recife tem seus vínculos afetivos atravessados pela trajetória repleta de desigualdades desde o seu nascimento e ao longo de toda a sua formação. A “cidade anfíbia”, como diz João Cabral de Melo Neto, tem em seu retrato a marca de um Recife desigual, já em 1953, quando o poeta publicou seu poema O Rio.  

Ao percorrer o caminho das águas que cortam e conectam a capital, João Cabral desenha, neste mesmo caminho, as paisagens provocadas pelas explorações e contrastes entre sobrados e mocambos, campo e cidade, asfalto e alagados, trazendo, inclusive, o tipo de visibilidade com a qual os territórios periféricos que (re)existem na cidade podem contar: as estatísticas de morte.

Hoje, 68 anos depois da publicação do poema, Recife continua fazendo jus às palavras do poeta, sustentando o título que nenhuma cidade se orgulha: capital brasileira da desigualdade. E isso não é novidade para Recife, afinal, nos censos demográficos do IBGE de 1991, 2000 e 2010, a cidade já ocupava o primeiro lugar no ranking de capitais mais desiguais.

À beira do mar e cenário de um dos cartões postais mais conhecidos da capital, a praia de Boa Viagem, os bairros da Zona Sul recifense não são diferentes do resto da cidade em relação a este fenômeno. Levantamento dos casos de adolescentes baleados na Zona Sul, realizado pelo Instituto Fogo Cruzado de 2018 a 2021 demonstra que a desigualdade se reflete nos números da violência. 

De acordo com o Fogo Cruzado, os bairros da Cohab, Pina e Ibura são os três primeiros no ranking de violência contra adolescentes concentrando juntos 69% das ocorrências. Já Boa Viagem, o mais rico dos bairros da região, apresenta 5% dos casos. Foram 38 adolescentes baleados, 95% dos atingidos eram do sexo masculino. A maior parte dos incidentes foram registrados onde o índice de vulnerabilidade social é maior, ou seja, nas comunidades.

No entanto, nas comunidades da Zona Sul, o poeta João Cabral é contrariado: não há apenas estatísticas de morte nesses bairros marcados pela violência, pois há muito o que contar da vida da população desses locais. 

Muitos Recifes fazem o Recife

O contraste se reflete na própria paisagem urbana do Recife e, em particular, da Zona Sul: arranha-céus e escadarias, prédios luxuosos e barracões, vias movimentadas, mangues e pontes não muito longe de becos e ruelas. Essa proximidade das diferenças é parte da estrutura socioespacial do Recife. 

Parte deste contraste se intensifica após os desastres das enchentes ocorridas nas décadas de 1960 e 1970, quando as construções de habitações verticais voltadas para a classe média se acentuaram, sob o redirecionamento de interesse do mercado imobiliário para a Zona Sul livre das inundações do rio Capibaribe (Boa Viagem, Setúbal e Pina). Enquanto isso, a população pobre seguia instalando-se em áreas de morro do Ibura e Jordão Alto, planícies alagáveis e margens de rios e canais, sobretudo, às margens do rio Jordão e bacia do Pina.

Estima-se que 53% da população total do Recife vive em Comunidades de Interesse Social (CIS) – áreas predominantemente ocupadas por populações de baixa renda e com precariedade de infraestrutura urbana – , muitas destas CIS estão localizadas dentro do perímetro de 74 Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS); mas pelo menos 304 comunidades estão fora da proteção das ZEIS, segundo dados do Plano Local de Interesse Social (2018).

No Recife, as ZEIS foram previstas na Lei Municipal de Uso e Ocupação do Solo em 1983. Na mesma década, por iniciativa de setores do movimento popular e da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, ocorreu a instituição da Lei do Plano de Regularização Fundiária das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis), em 1987. Experiência pioneira no Brasil, a nova lei, além de proteger as áreas contra a especulação imobiliária e garantir que os assentamentos habitacionais populares tenham acesso à terra e à urbanização, contribuiu para promover a participação direta da população nas etapas de planejamento e implantação da urbanização e regulamentação fundiária das Zeis.

Entretanto, comunidades que não estão inseridas no perímetro da ZEIS são territórios onde não existe a perspectiva de regularização fundiária e urbanística que o instrumento permite. Na Zona Sul da cidade do Recife, composta por oito bairros, há 114 CIS, mas apenas 15 são ZEIS. Vamos conhecer a realidade de três dessas comunidades cujos moradores trabalham, lutam e continuam a sonhar para não serem apenas estatísticas de morte.

Sonhos em Coqueiral

Uma dessas comunidades sob proteção da ZEIS é Coqueiral. Localizada às margens da Rua Dom João VI/Canal do Jordão, na altura de Boa Viagem, está nos limites do bairro da Imbiribeira e é rodeada por grandes terrenos e galpões comerciais. Os moradores contam com um posto de saúde e uma creche municipal, porém não há escolas públicas, nem na sua vizinhança imediata. A presença da creche no território é recente, após a insistência das mulheres da comunidade. O acesso a equipamentos de educação pública no local sempre foi uma dificuldade. “A gente sempre teve que sair daqui para levar as crianças longe”, conta Janaína Salustiano, que tem dois filhos em idade escolar.

Segundo Janaína, há anos a comunidade reivindica o acesso à educação e lazer no local. “A gente sempre questionou sobre isso, uma escola aqui dentro, que não tem. Uma praça, um lazer para as crianças brincarem não tem. No domingo as crianças não tem onde brincar. O espaço é muito curto. O terreno que hoje é dessa escola grande, era aberto e as crianças tinham acesso, jogavam, mas a escola comprou e saiu botando muro.” Seu filho, Pedro Vinícius, caminha em média seis quilômetros por dia para se locomover de casa para a escola Santos Dumont. Já Maria Clara estuda na escola Sargento Camargo, chega a caminhar três quilômetros no percurso até a escola, na rua Antônio Falcão, bem perto da praia.

“Nós somos uma comunidade meio esquecida. Geralmente só em tempo de eleição que os políticos passam, mas nada melhora, continua do mesmo jeito. E quando chove é muito sofrimento, tem que pendurar as coisas em cima dos móveis pra não perder os objetos… As crianças por dentro da água, rato passando… Fazer o quê? É a rotina da gente.” lamenta Janaína.

Maria Clara (E) e Pedro Vinícius precisam caminhar alguns quilômetros para frequentar escolas públicas e a mãe deles, Janaína Salustiano, se queixa da falta de espaços de educação e lazer na comunidade. Crédito: Karinne Costa.

Vivendo na comunidade desde 2002, ela nasceu em Barreiros, na Zona da Mata, veio para a capital para trabalhar como empregada doméstica no apartamento de uma família na avenida Engenheiro Domingos Ferreira, em Boa Viagem. Após algum tempo vivendo no lugar em que trabalhava, Janaína foi apresentada à comunidade do Coqueiral por uma amiga, lá ela conheceu o rapaz que mais tarde se tornou o seu marido, com quem teve filhos.

Hoje, com três filhos, Janaína conta histórias que circulam no território, de como a ocupação começou: “a comunidade era uma vala, um mangue, as pessoas começaram a invadir porque não tinham um lugar melhor pra morar. Então, foram fazendo aterro e cada um construiu sua casa. O canal era um braço do rio Jordão. Os antigos contam que passavam de um lado para o outro se equilibrando pela tubulação de água. Quando eu vim morar aqui, já existia essa ponte. Nessa época, a maioria das casas era de alvenaria, tinha poucas casas que eram de tábua.”

Seu filho, Pedro Vinícius, mora em Coqueiral desde que nasceu. Ele fala com muita esperança nas possibilidades de futuro e, com brilho no olhar, sobre “recuperar a alma da favela”. Aos 17 anos, como muitos jovens rapazes, seu sonho é ser jogador de futebol. Ele treina na Escolinha do Arsenal Futebol e Talentos, que acolhe adolescentes e jovens de várias comunidades da zona sul, e compartilha seus planos, caso a carreira no futebol não engate como esperado: “eu sei que é não é fácil, então, se não der certo, eu quero entrar nas Forças Armadas. E também ver uma terceira opção. Tem muita gente que chega até na quinta, sexta opção, né? Então, eu tô tentando terminar o ensino médio, quando terminar, eu vou tentar o Exército, ou a área de designer gráfico, que eu gosto bastante também.”

O jovem comenta sobre os cenários difíceis das comunidades e expõe algumas das necessidades que são comuns a territórios periféricos: “a gente precisa de uma favela mais organizada. Ter mais ruas calçadas, ter iluminação melhor, porque aqui nos becos é tudo muito escuro. Precisa também de alguma área de lazer, alguma coisa para a comunidade”.

Entra Apulso, símbolo de resistência

Em comparação a outras comunidades do entorno, a comunidade Entra Apulso é uma região diferenciada em relação a acesso a serviços, pois tem duas escolas – uma municipal e outra estadual -, mais uma creche comunitária, que acolhe cerca de 100 crianças. Há também um posto de saúde e uma quadra de uso comunitário.

Recentemente a comunidade recebeu obras de pavimentação, drenagem e esgotamento sanitário, uma reivindicação antiga dos moradores, que, até 2020, conviviam com esgoto a céu aberto. A obra entregue pela Prefeitura do Recife foi parte da medida mitigadora do vizinho Shopping Center Recife. Hoje, caminhar em Entra Apulso é encontrar, em seus becos e vielas pavimentados, crianças brincando de bicicletas, skates, patins.

Outra iniciativa importante, que potencializa a melhoria e a convivência comunitária no local, é o projeto Pulsa Bairro, do Instituto Shopping Recife, que constrói em conjunto a revitalização em pontos espalhados pela comunidade, através de pinturas homenageando personagens e elementos importantes da história do local, mutirões de limpeza, implementação de micro áreas de lazer, instalação de lixeiras, educação ambiental, entre outras ações, buscando incentivar as boas práticas coletivas.

Dona Luzinete Alves, moradora há mais de 50 anos, é uma das homenageadas do projeto, como representação de parte da história viva do local. Ela viu Entra Apulso se estabelecer, tendo vivenciado a sua ocupação. Luzinete conta que veio de Nossa Senhora do Ó, no Litoral Sul, para morar no Pina, aos 5 anos de idade, junto com sua tia, que a criava. Aos 9 anos foi morar em Boa Viagem, num território conhecido por Mata Sete. Luzinete explica que um braço de Maré separava Mata Sete de Entra Apulso. Ela lembra que atravessava uma ponte para transitar e descreve exatamente a localização: “do canal pra lá era Mata Sete, do canal pra cá era Entra Apulso ”.

Homenageada em pintura nas ruas de Entra Apulso, Luzinete Alves foi uma das primeiras moradoras da comunidade, onde vive há mais de 50 anos, e traz na lembrança as primeiras histórias de resistência da ocupação. Crédito: Marlon Diego

Com as remoções que estavam ocorrendo na região em função da especulação imobiliária e obras de impermeabilização do canal, a área em que se encontrava Entra Apulso, um imenso alagado, foi sendo ocupada, além das famílias vindas do interior, pelas famílias que estavam sendo removidas nas redondezas. Mas, a conquista do espaço em Entra Apulso também não foi fácil, “a gente construía de noite e era expulso de dia”, conta Luzinete, “foi justamente essa insistência que deu nome ao lugar”.

Histórias do Encanta Moça

À beira do manguezal do Pina, o “Encanta”, como chamam seus moradores, está a pouco menos de quatro quilômetros do centro do Recife, e forma junto com o Bode, Areinha e Beira Rio a área da ZEIS desde 1983. O bairro tem 30 mil habitantes, mas apenas 2.650 estão prestes a receber os títulos de posse. 

Seus moradores têm acesso a dois postos de saúde, escolas municipais e uma creche na localidade. A escola estadual mais próxima fica em Brasília Teimosa, comunidade vizinha. Moradores também contam com uma policlínica, que fica nas imediações da ZEIS. Entre as avenidas Domingos Ferreira e Antônio de Góes, a mobilidade é o ponto forte do lugar, o que atrai o interesse das grandes construtoras e imobiliárias do Recife.

Alagamentos são comuns no bairro, o que tem consequências graves, pois o esgotamento sanitário é precário. Nélson de Lima convive com esses problemas desde que nasceu. Hoje, ele representa o bairro na Comissão de Urbanização e Legalização da Posse da Terra (Comul), eleito pelos moradores. 

Vista das palafitas da comunidade Encanta Moça. Crédito: Karinne Costa.

A maior preocupação do líder comunitário tem a ver com os alagamentos e o manguezal: a questão das moradias em palafitas. “Tem gente que mora há 18, 20 anos por não ter pra onde ir”, conta. Há uma expectativa de que as pessoas que moram nas palafitas do Bode sejam realocadas para os 600 apartamentos dos Habitacionais Encanta Moça I e II, que estão sendo construídos no terreno do antigo Aeroclube, com previsão de entrega para este ano. 

Moradores reclamam da falta de transparência do poder público. A proposta prevê a entrega de 600 apartamentos em 2022, mais um projeto de urbanização com centro comunitário, parque infantil, quadra e outros equipamentos. No entanto, além da indefinição por parte da prefeitura sobre as famílias que serão beneficiadas, o volume de palafitas supera o número de apartamentos ofertados. No último levantamento, havia mais de 800 famílias vivendo em situação de vulnerabilidade no Bode. E ainda, das 600 residências previstas, espera-se que 163 unidades sejam entregues para os moradores que foram desapropriadas para a construção da Via Mangue e hoje recebem auxílio moradia.

Segundo Nelson, até então não houve discussões conjuntas com a comunidade local. “São 11,9 hectares. É uma área muito grande, caberia muito mais residências, essa proposta não vai atender a demanda que existe”. Outro alerta sobre o projeto é a proposta de urbanização das margens do Rio Pina, que têm deixado os habitantes inquietos com a possibilidade de mais remoções para a construção de uma “orla” no Bode. Um conselho de moradores foi criado para acompanhar os desdobramentos e insistir no diálogo com o poder público. 

* Karinne Costa, 27 anos, é formada em comunicação social pela FBV com especialização em arte-educação pela PUC. Há 6 anos, desenvolve projetos sociais nas áreas de educação, cultura e esportes na comunidade de Entra Apulso, em Recife-PE, e integra o Coletivo Resistir é Pulsar, que atua com foco na valorização da história oral e amplificação das narrativas locais sob a ótica de quem vive no território (Instagram: @resistirepulsar).

Esta reportagem é resultado da bolsa para o laboratório-escola Dados em Narrativas Jornalísticas, realizado em parceria pela Marco Zero Conteúdo, Instituto Fogo Cruzado, Escola de Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco e Fundação Friedrich Ebert.

AUTOR
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Marco Zero Conteúdo

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