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Entrevista exclusiva com o professor de História e YouTuber Flávio Muniz
“Você é uma mulher negra entrevistando um homem negro, em que momento histórico isso seria possível?”. O comentário feito pelo mestre em História e criador do canal do Youtube “Caçador de Histórias”, Flávio Muniz, durante a entrevista cedida a Marco Zero, reflete o que inspirou e o que motiva o intelectual a produzir conteúdo para a plataforma de streaming.
Natural de Uberlândia, em Minas Gerais, Muniz sempre se interessou por produções audiovisuais que contavam histórias de grandes personalidades negras e, a partir disso, sentiu necessidade de buscar mais conhecimento sobre a trajetória da população negra e africana no mundo. Isso o levou a idealizar o canal de vídeos que alcançou 149 mil inscritos. Professor – e, agora, estudante de Direito – iniciou seus estudos em História em 2010 aos 34 anos. Logo, o Youtube tornou-se sua ferramenta para compartilhar conhecimentos.
A produção dos vídeos era uma atividade secundária na vida de Flávio Muniz, que se dedicava a dar aula. No entanto, assim como bilhões de pessoas pelo mundo, o professor viu sua vida mudar completamente na pandemia da covid-19. Após passar 17 dias entubado, Muniz enfrentou a morte do seu filho mais velho, vítima da covid aos 24 anos. A dor deu origem ao livro O Diário de um Navegante na Covid-19.
Com o trauma, seguido da descoberta de uma fibrose pulmonar, Muniz decidiu se dedicar integralmente à produção de conteúdo no YouTube por sentir a necessidade de deixar como legado seus conhecimentos sobre a História da África e da população negra no mundo.
No canal Caçador de Histórias é possível encontrar os vídeos divididos em cinco categorias: Sociedade; África; História da África; Povo Africano; e Religião. Os conteúdos dos vídeos são escolhidos por Muniz de acordo com a sua especialização como pesquisador de História da África e também atendem a uma demanda do próprio público do canal que enviam questões e sugerem temas.
Ao contrário do que mostram algumas tendências do mercado digital, ao afirmar que a população tem consumido vídeos cada vez mais curtos nas redes sociais, o objetivo do “Caçador de Histórias” é fazer do Youtube uma sala de aula que ensina as pessoas como não serem racistas através de evidências históricas que explicam preconceitos enraizados na sociedade. Afinal, para Flávio Muniz, “se as pessoas aprendem a ser racistas, elas podem aprender a não ser racistas”, e isso requer a produção e o consumo de conteúdos densos, realizados através de longas pesquisas de materiais cientificamente embasados.
Em entrevista a Marco Zero, o professor de história falou sobre as produções audiovisuais, a trajetória acadêmica e as estratégias que utiliza para garantir o crescimento de inscritos e visualizações e inscritos em seu canal.
Marco Zero – Lembra quando e como começou a se interessar por estudar História, sobretudo a História da África?
Flávio Muniz – É uma demanda que já vinha desde a minha infância, desde a minha adolescência, devido ao desconhecimento das nossas próprias histórias. Eu sou um homem da década de 1970, então eu nasci em um Brasil onde todos os estereótipos racistas possíveis nos afetavam e nos atravessavam de diversas formas. A gente cresceu dentro do imaginário da população negra excluída, nós olhávamos para os imaginários nas televisões, nas mídias, e normalmente não nos enxergávamos ali, porque a presença do negro e da negra ou era como doméstica, trabalhadores domésticos, ou eram papéis subservientes, serviçais, ou novelas com muitos escravizados. Então essas coisas já me afetavam desde a infância.
No início dos anos 1990 eu tive contato com um filme muito bom do Spike Lee, que é Malcom X, e também um outro filme que foi Sarafina, com a Whoopi Goldberg, onde se conta a resistência dos jovens negros no período do apartheid na África do Sul, na década de 1970. Esses dois filmes me impressionaram bastante sobre a luta das pessoas negras, tanto na África do Sul segregada quanto nos Estados Unidos, com o Malcom, então essas personalidades começaram a me atrair, me chamar a atenção. E eu percebi que as grandes referências negras que eu tinha na televisão e no cinema vinham de fora e não de dentro do Brasil. Essa presença do negro nas mídias televisivas como protagonista normalmente vinha de fora, ainda que sejam em lutas, vinha de fora e não de dentro do Brasil.
Então, o motivo pelo qual estou no YouTube vem lá de trás, acho que vem desde a minha infância, da minha história de vida. Mas o motivo pelo qual eu engajei e foquei nisso está nos últimos três anos da minha vida, com a pandemia da covid-19, e tem a ver com o que aconteceu com a população negra no país durante este período. Desde então, acho que a gente precisa entender que o racismo mata mesmo, literalmente, e por isso nós precisamos tratar dos nossos problemas.O nosso papel é falar de questões raciais e ele é urgente, e agora eu tenho uma história de uma morte em minha casa, e essa questão racial teve um impacto grande para que isso acontecesse.
Como você decidiu iniciar o trabalho no Youtube?
Em 2016, eu já tinha me formado em História, e já estava me preparando para o mestrado quando eu me interessei pelo YouTube, porque para mim é uma das maiores revoluções tecnológicas. O YouTube não é uma rede social, é uma ferramenta de busca. Um dos primeiros vídeos que eu fiz no canal, lá em 2016, foi justamente falando sobre ter poucos negros no YouTube. Só que eu mesmo não tinha noção que eu estava fazendo parte dessa história, desse processo. Eu analisei naquela época justamente sobre por que tinham poucos negros na TV, e também no YouTube, pensando o Youtube como uma nova mídia, e eu estava refletindo essa exclusão social. Foi aí que eu comecei a pensar sobre isso.
Hoje você tem uma produção semanal no Caçador de Histórias, como você escolhe os temas dos vídeos e qual é o objetivo das produções?
Se as pessoas aprendem a ser racistas, elas podem aprender a não ser racistas. E esse é um projeto que a gente tem: ensinar as pessoas como não serem racistas. Só que em vez de ficar dando às pessoas respostas, ensinando as pessoas fórmulas mágicas, o que eu entrego é uma história, um fundamento, e essas pessoas vão decidir como usá-las.
Como a gente desarticula o racismo e os estereótipos racistas? Mostrando de onde que isso veio, mostrando que isso é errado. Então, nosso formato de vídeo foi adaptado para falar de forma profunda. Eu não estou interessado em ficar enrolando as pessoas, eu quero realmente que fique profundo, eu tento pensar sempre em cada vídeo o seguinte: ‘será que eu terei uma segunda oportunidade para falar sobre isso aqui?’ Talvez não, talvez a gente nunca mais tenha uma segunda oportunidade para causar uma primeira impressão, porque a primeira impressão é aquela que fica, então eu tento dar isso em cada vídeo. Pelo menos esse foi o meu impulso no meio do ano passado, quando eu decidi trabalhar firmemente no YouTube.
E sobre as escolhas dos temas, como pessoa negra, eu, você, nós vivemos e vivenciamos muitas coisas, e aí, de repente, do nada, a gente chega e pensa assim, “por que isso acontece com a gente?” E isso é o gatilho dos meus interesses. Eu não me deixo pautar pelo hype do momento. O momento pode levar a gente a tirar conclusões precipitadas de coisas que a gente não sabe. Além disso, eu recebo muitas mensagens e escuto muitas pessoas e tiro algumas ideias dessas interações também.
“Em vez de ficar dando respostas às pessoas, ensinando fórmulas mágicas, o que eu entrego é uma história, um fundamento, e essas pessoas vão decidir como usá-las”
Hoje em dia o Youtube tem sido bastante utilizado também por pessoas preconceituosas e conservadoras, que utilizam a plataforma para disseminar discursos de ódio. Como o senhor analisa o espaço de disputa que se dá no Youtube e a importância de ter pessoas negras também fazendo o enfrentamento?
Tem uma coisa que eu percebi dentro da academia, que é o seguinte: mesmo as pessoas muito bem intencionadas, brancas, acadêmicas, elas estão distantes da nossa realidade. Elas falam de coisas que elas sabem de ouvir falar, mas elas não vivem isso, elas não entendem que é viver isso. Muitos deles moram em seus luxuosos condomínios fechados, vão fazer suas férias de final de ano, vão para Paris, vão para Roma. Até que dentro do país mesmo, eles são uma elite acadêmica.
E eu percebi que existe, infelizmente, ou por desconhecimento, má vontade, ou porque também é uma forma de racismo, uma maneira que eles também se ocupam dessa posição para simplesmente não se importar de estar em determinados lugares. E o que aconteceu? O espaço onde mais se divulgou notícias falsas foi justamente o espaço ignorado pela elite acadêmica, que é consciente politicamente, mas que se acha, muitas vezes, boa demais para estar nesses lugares. A extrema direita entendeu isso muito bem, que precisava ocupar esses lugares. Se nós tivéssemos ocupado esse lugar de igual forma, essa disputa estaria equilibrada, mas eles estavam aqui vencendo de 7 a 1, e por isso nós testemunhamos as consequências do que é a ausência nesses espaços como o Youtube.
Contra a desinformação, você precisa trazer informações concretas, e você vai perceber que uma coisa que eu sempre tento trazer nos meus vídeos são referências, de onde tirei essa ideia? De onde fui buscar?
Por exemplo, a comunidade negra não vota em pessoas negras, isso é um fato. Não tem nada a ver com inteligência, tem a ver com toda uma articulação histórica que foi feita para que nós fôssemos desarticulados como comunidade, por isso nós não conseguimos pensar coletivamente. Então, estamos lutando contra quem, na verdade? Estamos lutando contra uma ideia, contra uma ideia que foi criada sobre nós. Uma ideia que diz que nós não somos bons, uma ideia que diz que nós somos inferiores, uma ideia que diz que nós não nos entendemos, e de onde vem esse nosso desentendimento?
Tem um vídeo no canal que eu falo, por exemplo, do racismo internalizado. Eu fui buscar lá onde vêm as primeiras pesquisas e de que forma que a gente absorve esse racismo e muitas vezes coloca ele para fora, sabe? Isso foi internalizado e isso tem análise, tem estudos que demonstram isso. Então, quando nós começarmos a entender isso, aí nós vamos ver que não é um espaço que nós estamos disputando só com pessoas brancas, não, nós estamos disputando inclusive com uma ideia que é internalizada dentro de nós mesmos, muitas vezes, pessoas negras. Então, é um espaço de disputa que, na verdade, é um espaço de construção de identidades. Por isso eu acho que, sim, nós devemos ampliar nosso espaço de conhecimento e estamos ali disputando ideias, eu estou ali como professor e eu faço questão de dizer sempre isso, eu coloco os meus títulos em tela, está sempre lá, historiador, mestre em história social, jurista, doutorando, eu faço questão de frisar isso porque eu sei a dificuldade que foi chegar até aqui, a dificuldade que é estar aqui.
E tem uma outra questão, que é como o algoritmo coloca as coisas, porque as pessoas, às vezes, se preocupam muito com o racismo em 20 de novembro e 13 de maio, ou então quando acontece alguma morte, aliás, morte de pretos só importa quando é nos Estados Unidos, como foi a do George Floyd, e que realmente deve importar mesmo, nós temos que sentir isso. Mas saiu uma notícia que a polícia de São Paulo aumentou o número de mortes em 78% só em 2024, e dois terços desses mortos são pessoas negras. Não tem ninguém se manifestando, ninguém dizendo ‘vidas negras importam’, não tem nenhum punho para cima, não tem nada, silêncio, até que chegue em nossa casa, e como chegou na minha. Então, isso me faz entender que esse é um espaço de disputa não só com pessoas brancas, é contra uma ideia.
Existem alguns estudos, sobretudo na área de marketing, que afirmam que a tendência é que as pessoas consumam cada vez mais conteúdos audiovisuais curtos e seu canal parece ser um ponto fora da curva em relação a isso, já que tem crescido bastante produzido um conteúdo mais extenso. Como você explica isso?
Tem uma questão que é a revolução tecnológica. Com o aumento do uso das TVs, de smart TVs, muito conteúdo da internet está sendo consumido na TV. Então, nós temos um exemplo, o caso dos streamings, você tem Disney, você tem vários outros, HBO Max, Netflix, Prime, e sabe o que é interessante? É que o YouTube percebeu isso. E o YouTube hoje já tem um grande número de pessoas que consomem o YouTube pela televisão. E quem consome na televisão, normalmente, consome um conteúdo mais denso, maior. Eu recebo depoimentos de muitos dos nossos inscritos que falam que deixam a TV ligada e ficam ouvindo o conteúdo como se fosse um podcast, outros são famílias que se reúnem para assistir o programa.
Além disso, eu adaptei o visual para dar um novo conceito, que eu prefiro chamar de aula, tanto que eu tento sempre reforçar isso e falo ‘na aula de hoje’, por que a aula? Porque numa aula, você consegue justificar a extensão dela, até pela necessidade do conteúdo. Então, a minha ideia é de estar dando aulas online e não necessariamente produzindo vídeos aleatoriamente online. Eu tenho um objetivo muito claro em minha mente, que é fazer um acervo de conteúdos da História da África e relacionado aos povos afrodiaspóricos.
Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.