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“Segurança privada não dá conta de conter violência nos estádios de futebol”, alerta Irlan Simões

Marco Zero Conteúdo / 25/06/2023
Arena Pernambuco: estádio de futebol com cadeiras vermelhas nas arquibancadas, fotografado junto de uma das traves, com o gramado verde em primeiro plano.

Crédito: Divulgação/Arena Pernambuco

por George Lucas*

O grito de gol pode parecer igual em muitas partes do mundo. Os torcedores que celebram a vitória ou lamentam a derrota  carregam consigo grandes diferenças culturais e sociais, que refletem nas arquibancadas características próprias de cada região. 

Torcer por um time de futebol faz parte da vida de milhões de brasileiros e brasileiras desde a infância. Mesmo quem não se envolve com o esporte, é impactado pela cultura do futebol e das suas torcidas. Mesmo assim, há poucos especialistas dedicados a pesquisar o que é torcer por um clube em um país que, ao mesmo tempo que dá os primeiros passos no processo de elitização de estádios, convive com a violência alimentada pela crônica incompetência das autoridades e forças policiais. 

Uma dessas pessoas é o jornalista baiano Irlan Simões, doutor em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autor do livro Clientes versus Rebeldes – Novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno e organizador de outro, Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol, além de ser criador do podcast e canal de YouTube Na Bancada.

Dez anos depois da inauguração das primeiras arenas para a Copa do Mundo de 2014, conversamos com Irlan para entender melhor as conexões e particularidades das torcidas organizadas e a relação entre o futebol e a indústria cultural:

Após 10 anos da inauguração das primeiras arenas, é possível constatar mudanças na cultura torcedora do Brasil?

Irlan Simões – Com certeza, mudou bastante. Não à toa, mas tem muita relação. O processo de esvaziamento de organizada, de perseguição e criminalização, acabou também mudando um pouco essa cultura de arquibancada, ainda que com algumas renovações desses movimentos mais recentes.  

Tem uma questão geracional também, existia uma procura maior por estádio, que está sendo retomada agora por uma nova geração. Nos anos 2010, a sensação era de que o estádio deixou de ser uma coisa importante, mas agora tem uma geração mais jovem que vê no estádio muito mais do que o jogo, né, integrando a ideia de que estádio é o momento de tempo livre, de diversão de e socialização. Isso é muito bacana porque, se depender apenas do dentro de campo, a gente não consegue atrair tanto o torcedor, isso é fato. Muito melhor o cara ficar em casa vendo na TV os timaços da Europa.

Em termos de cultura de arquibancada, é claro que o jogo é uma coisa importante e a situação do time também, mas o fato de a pessoa se sentir integrada e envolvida é diferente. Então, estou notando uma revestida numa tendência com que a gente estava se preocupando, ali nos anos 2010. Do ponto de vista da cultura do torcedor, claro que o próprio equipamento impõe também um pouco um padrão de comportamento que vai de sentido contrário do que a gente era acostumado a ver, como a maior festividade nos tempos anteriores, hoje o torcedor não pode nem tomar chuva no estádio. Há uma ideia de estádio cada vez mais shopping center, exigindo o tempo todo um ambiente super limpinho. De fato, é curioso como as arenas transformaram os torcedores, principalmente aqueles que frequentam muito a arena. Os torcedores que frequentam mais estádios (não arenizados) são mais tranquilos com relação a isso.

O efeito de arenização da Europa possui semelhança com o do Brasil?

Esse é um processo um pouco diferente, porque a arenização no Brasil se deve só por causa de uma Copa do Mundo. Acho que o futebol europeu tem capacidade financeira para ter estádios desse padrão, no Brasil não. Alguns clubes conseguiram. O Grêmio, por exemplo, até hoje está pagando a sua arena. O Athletico Paranaense nunca colocou em questão as dívidas da Baixada. O do Palmeiras foi um caso mais à parte, mas também está em São Paulo, a capacidade financeira é de outra ordem. 

A ideia de arena é basicamente uma imposição de um padrão de consumo. Um equipamento que você não comercializa só o espetáculo esportivo, mas vários outros produtos, e por isso você precisa de um público com maior capacidade financeira. Eu não gosto de comparar o Brasil com a Europa diretamente porque aqui não tem um fator que lá tem em grande proporção, que é o público turístico. Todo mundo conhece os jogadores do Barcelona, do Real Madrid, do Bayern, do United, do City, etc. Então se você está numa cidade dessa como turista, um dos seus passeios com certeza vai ser visitar um estádio. Pode vim até turista que queira vim conhecer o Maracanã, mas não vai pelos times que estão dentro de campo. Então a gente não tem esse público turista pra encher o estádio. No Brasil, a gente tem uma elitização porque os ingressos são caríssimos e os planos de sócio-torcedor não são acessíveis, só dão desconto nos ingressos. Então o torcedor fica dependendo da flutuação do preço de acordo com o humor do clube.

É bom lembrar que as políticas de elitização do Brasil são bem anteriores às arenas da copa. As arenas são de 2013. A gente pode falar que mais ou menos no final dos anos 90, a gente começa a ter uma série de políticas que vão prejudicar muito o torcedor de baixa renda que não é violento. O torcedor que não é violento está pagando a conta por uma incompetência do Estado de prover segurança.

Em relação à violência no futebol, você acredita ser possível reduzir os poderes da Polícia Militar nos estádios sem comprometer o combate à violência entre grupos organizados? Ou será que a PM alimenta a violência?

Se entrou em uma ilusão recente de que segurança privada ia dar conta de conter a violência que explode por algum tipo de desorganização na logística, na localização, no posicionamento das torcidas no estádio. A segurança privada não dá conta, até porque não tem nem treinamento para tal. A polícia é muito importante quando esses fatos acontecem, de confronto entre torcidas em grande volume, com muitas pessoas. Sem dúvida só uma força como o Choque para conseguir evitar de fato que a coisa piore, uma intervenção mais agressiva, uma bomba de efeito moral, um caso extremo. Nem é tão comum ter confronto de torcida em estádio, muito mais comum na rua, muitas vezes até bem longe do estádio, e aí é até difícil de prever.

O grande problema é quando se aplica a força policial, que é basicamente de combate, como solução em situações onde ela não tem preparo , a exemplo do acesso desorganizado dos torcedores em estádio. Obviamente esse não é o caso de ter Polícia Militar, né? É o caso de ter profissionais treinados para organizar o público e gerir aquela multidão para que as coisas ocorram melhor. 

Outra questão, eu uso como exemplo Pernambuco, onde as torcidas organizadas são banidas e querem evitar que as pessoas entrem com instrumentos musicais e bandeiras alusivas aplicando-se a força da Polícia Militar em situações onde não há confronto, ficando só a violência desmedida e desnecessária. Então, tem um pouco dessa questão aí. Onde aplicar a força policial e por quê? Sem dúvida em casos mais graves que só ela que dá conta mesmo. Essa questão de segurança privada já é provada como erro em muitas situações.

Por que temos a sensação de que na Europa os estádios têm segurança e não acontecem brigas?

Eu acho que existem duas questões, primeiro a ignorância. E dessa ignorância também parte um pouco da incapacidade de entender que existem fenômenos próprios da Europa com relação a violência de torcedores, talvez até bem piores que o nosso porque o volume é muito maior, são muitos grupos, e mesmo os clubes pequenos tem presença de agrupamentos. E essa ignorância também vem um pouco de uma posição de vira-latismo cultural, de certa forma. 

A diferença é grande entre o sensacionalismo na abordagem midiática lá e cá. Lá você não tem uma circulação de imagens de circuitos grandes de TV levando isso ao público. É raro você ter isso (vídeos de confrontos) em uma TV grande, principalmente quando é dentro do estádio. Quando é fora, às vezes, eles noticiam. Mas as imagens que chegam a circular nesses grupos não alcançam um público mais amplo. Existem muitas páginas hoje que postam esses vídeos, inclusive é um fator problemático da atualidade para se pensar: como essas páginas retroalimentam essa cultura da violência e estimulam muito e, de certa forma, lucram com isso tudo. Afinal, tudo é audiência hoje em dia.

Homem jovem, negro, de pele clara, cabelos curtos, usando camisa preta de mangas curtas e segurando duas canetas. uma em cada mão, sorri para interlocutor à sua direita que não aparece na foto.

Simões não acredita que mercado brasileiro sustente a arenização. Crédito: Acervo pessoal

O que as torcidas organizadas brasileiras têm em comum com ultras e hooligans?

Irlan Simões – Tanto torcida organizada, quanto ultra, quanto hooligan, quanto barra brava, são coletivos organizados de torcedores, geralmente jovens e homens. Têm características e estéticas muito distintas. São formas organizadas, porém não são torcidas organizadas, que acaba sendo um conceito brasileiro, que basicamente só existe aqui, apesar de ter influenciado outros lugares. 

Por outro lado, a ideia de hooligan não é necessariamente um coletivo organizado de torcedores, é basicamente um coletivo de homens e que se juntam para a prática da violência. O hooliganismo foi um termo que começou a ser adotado na Inglaterra para identificar esses grupos, vamos dizer assim, que tinham basicamente o objetivo de entrar em confronto físico. Não faziam grande diferença dentro do estádio, não faziam coreografias, música, não levavam bandeira, não se identificam por um nome específico, são poucos os casos os que tinham uma identidade própria. São essa subcultura de gangue de rua das grandes cidades. 

É uma grande confusão que se faz na Europa, porque a depender do país, a ideia de ultra e hooligan tem forma diferente. Por exemplo, na Alemanha usam aqueles coletivos organizados, até institucionalizados e reconhecidos pelo clube, e existe um tipo de hooliganismo alemão, que passa por fora dos ultras, muitas vezes não tem nem envolvimento com esses grupos, pelo contrário, são até combatidos pelos ultras. Então é bom diferenciar essa ideia. O hooliganismo em si seria basicamente a definição de cultura de violência na arquibancada. Como se a gente dissesse que aqui no Brasil também existe uma espécie de hooliganismo que está dentro das forças organizadas, mas é, ao mesmo tempo, independente.

Por que da proximidade de alguns desses grupos (ultras e hooligans) com a extrema-direita?

Com relação à proximidade com a extrema-direita, se a gente pegar ali uma outra geração, dos anos 80, por exemplo, você vai ter na França, na Inglaterra, na Itália, de certa forma também, grupos que eram de alguma forma mobilizados por partidos de extrema-direita. Partidos neofacistas que estavam se formando, muitos deles já deixaram de existir, foram banidos, dissolvidos, e agitavam essa juventude, principalmente a juventude branca, que vivia um momento de precariedade.

Uma vez que você está falando ali dos anos 1980, havia um desmantelamento do Estado de bem-estar social, no processo de crescimento do neoliberalismo na Europa e regulamentação financeira, privatização, desmantelamento do serviço público. Dessa estrutura se criou dos anos 1960, 70, no pós-guerra. Então você vai ter uma geração de jovens que não tinham mais os mesmos privilégios e a mesma estrutura de assistência social que as gerações anteriores. Não tinham bons empregos, não tinham bons salários, não tinham acesso ao serviço público de qualidade. Isso levava ao desalento e combinava, por exemplo, com uma ideia de globalização, que começava-se a se fortalecer nesse contexto. Além também do processo de imigração, com muitos trabalhadores vindos da África, da Ásia, da América do Sul, um choque cultural muito forte que vai ser capitalizado por essa extrema direita pra mobilizar a juventude branca local predominantemente masculina. 

No futebol já tem essa ideia do confronto físico, da virilidade, da masculinidade. Então, esse discurso chegava com muita facilidade. Esses jovens, organizados, buscavam juntar as duas coisas: uma revolta social e o prazer pelo confronto físico. Então, a de se entender como esses grupos conseguiram se proliferar na arquibancada. Existia um contexto histórico que motivava.

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