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Seis horas de debate para definir as candidaturas negras na eleição da OAB para vaga de desembargador

Para decidir quem tem direito a cota racial, comissão eleitoral havia descartado decisão da comissão de heteroidentificação

Giovanna Carneiro / 10/10/2024
A imagem mostra um ambiente interno onde está acontecendo uma reunião ou conferência profissional. Há várias fileiras de pessoas sentadas, todas voltadas para a frente da sala. Na frente, há uma mesa longa com indivíduos também sentados, de frente para o público. A sala está bem iluminada e possui dois grandes telões nas laterais, exibindo o que parece ser uma apresentação ou texto de um documento. O teto tem padrões circulares que podem ser para acústica ou iluminação. A atmosfera sugere um evento formal, possivelmente relacionado a assuntos jurídicos ou corporativos, indicado pelo logotipo “OAB - Ordem dos Advogados do Brasil” nos telões.

Crédito: Giovanna Carneiro/Marco Zero

Em decisões históricas, a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco levou seis horas para garantir a paridade de gênero e cotas raciais no processo de eleição para o Quinto Constitucional, que define os advogados e advogadas que disputarão uma vaga vitalícia de desembargador/a do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).

Em reunião tensa nesta quarta-feira, 9 de outubro, a plenária da entidade decidiu que a lista sêxtupla com os nomes que disputam o pleito e será encaminhada à governadora Raquel Lyra para escolha final, deve ser formada por três homens e três mulheres, destes, sendo um homem negro e uma mulher negra.

A decisão precisou ser tomada pelo pleno depois que a comissão eleitoral que coordena o pleito ignorou decisões da comissão de heteroidentificação que definiu quais candidatos seriam considerados negros e negras para efeitos da disputa. A OAB-PE havia firmado um convênio com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) para que a instituição fosse responsável para analisar quem estaria apto a concorrer as vagas de cotas raciais a partir da autodeclaração no momento de inscrição. Essa é a primeira vez que a OAB fez uso da banca de heteroidentificação na eleição para o quinto constitucional.

A banca da UFPE definiu que apenas três dos oito advogados foram reconhecidos como negros/as pela banca: Ana Paula da Silva Azevêdo, Paulo Artur dos Anjos Monteiro da Silva e Bethane Karlise Ramos Cavalcanti Martins.

Montagem com fotos de três pessoas negras. À esquerda, Ana Paula Azevedo, mulher negra, jovem, de longos cabelos encaracolados cortados abaixo dos ombros, usando óculos de armação preta, blusa branca e saia colorida. Ela está sorrinfo para a câmera; ao centro, Paulo Arthur Monteiro, homem negro, cabelos curtos, calva pronunciada, testa alta, usando óculos de armação redonda preta. Ele sorri discretamente em direção à câmera e está usando paletó azul escuro, camisa azul clara e gravata bordô. À direita, Bethane Karlise Ramos Cavalcanti Martins, mulher de cabelos lisos pretos, usando blazer preto de listas brancas sobre blusa verde escura. Ela está com a mão esquerda sob o queixo e a direita cruzada na altura do abdomen.

Ana Paula Azevêdo, Paulo Artur Monteiro e Bethane Karlise Ramos Martins.

Crédito: Reprodução / Francisco Silva/DP Foto e Acervo Pessoal

Inconformados com a decisão da comissão de análise da UFPE, os demais candidatos reprovados pela banca entraram com um recurso administrativo na Comissão Eleitoral para anular o resultado da heteroidentificação.

Atualmente, o TJPE tem 51 desembargadores empossados, destes apenas duas são mulheres. A pesquisa do Censo Poder Judiciário, divulgada em 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revelou que só 11,3% de todos magistrados no TJPE eram pretos ou pardos.

A Comissão Eleitoral, formada por cinco advogados escolhidos pelos conselheiros da OAB, decidiu acatar o recurso e resolveu, por unanimidade, “acolher como meras irresignações os recursos apresentados pelos candidatos e, afastando o parecer da Comissão de Heteroidentificação da UFPE, reconhecer a autodeclaração dos candidatos Diana Patrícia Lopes Câmara, Luciana da Fonseca Lima Brasileiro, Luzia Helena de Valois Correia, Frederico Preuss Duarte e Pedro Avelino de Andrade, que passam a concorrer às vagas destinadas aos negros (pardos) nesta seleção de lista sêxtupla do Quinto Constitucional da OAB/PE (vaga destinada ao TJPE)”.

Isso incendiou o clima na advocacia do estado.

Debate quente

Assim que tomou conhecimento da decisão, o advogado Paulo Artur dos Anjos Monteiro da Silva entrou com um recurso administrativo no Conselho Pleno da OAB, solicitando a anulação da decisão da comissão eleitoral e exigindo que o parecer da banca de heteroidentificação da UFPE fosse respeitado. A pauta da reunião de quarta-feira previa que o tema fosse o primeiro a ser discutido, mas o presidente da Ordem, Fernando Jardim Ribeiro Lins, achou melhor inverter a sequência, deixando o debate mais acalorado para o final.

Às 15h, pouco menos de uma hora depois do início da plenária, o debate sobre o resultado da heteroidentificação começou, só terminando depois das 20h. Antes disso, houve uma votação para rever a paridade de gênero, que foi mantida por maioria dos participantes.

A sessão estava lotada, foi preciso colocar mais cadeiras na sala para comportar o público, formado majoritariamente por advogados e advogadas brancas. Estavam presentes os três aprovados pela banca de heteroidentificação e os advogados Pedro Avelino, Diana Câmara e Luciana Brasileiro, três dos cinco candidatos que recorreram da decisão que não os reconheceu como pessoas negras.

Antes mesmo de iniciar a discussão sobre o processo, Pedro Avelino solicitou que a sessão fosse remarcada, justificando que só teve conhecimento sobre o julgamento do recurso um dia antes e por isso não teve tempo hábil para preparar suas alegações. Fernando Ribeiro Lins foi enfático ao afirmar que todos foram comunicados com mais de 24 horas de antecedência, reforçando que, no julgamento realizado pela Comissão Eleitoral que anulou o resultado da banca de heteroidentificação, os três advogados negros que eram partes interessadas no processo sequer foram notificados. Foi um “julgamento na calada da noite”, como afirmou Bethane Karlise em seu pronunciamento.

Iniciado o julgamento, Paulo Artur dos Anjos frisou que o recurso apresentado por ele não tinha como finalidade apontar erros pessoais nem indicar quais advogados e advogadas são negros ou não, mas sim defender o rigor científico da banca de heteroidentificação da UFPE em contraposição à decisão da Comissão Eleitoral, afinal que o edital do Quinto Constitucional determinou que não haveria probabilidade recursal após o resultado apresentado pela instituição federal. Ou seja, em caso de desacordo com o resultado, o candidato deveria judicializar o processo e não buscar uma solução através de um recurso administrativo junto a comissão.

“As pessoas que assim se autodeclararam negras-pardas e negras-pretas, elas se sujeitaram no primeiro momento a um vídeo, seguindo um procedimento que é regular da comissão de heteroidentificação da UFPE, uma das mais respeitadas no país, com pouquíssimos questionamentos e reformas em relação às suas identificações”, declarou Paulo Artur dos Anjos.

Montagem com foto de cinco pessoas: Luciana Brasileiro e Pedro Avelino, no alto, da esquerda para a direta; Diana Câmara, Frederico Preuss e Luzia Valois, na fileira de baixo, em ordem da esquerda para a direita.

Na imagem, em ordem: Luciana Brasileiro; Pedro Avelino; Diana Câmara; Frederico Preuss; Luzia Helena Valois. Crédito: Reprodução / Instagram

Crédito: Reprodução/Instagram

Em seguida, o conselheiro da OAB e diretor-geral da Escola Nacional de Advocacia, Ronnie Preuss Duarte defendeu a seriedade do trabalho da banca de heteroidentificação da UFPE e afirmou que, mesmo que o processo tenha um parente seu como uma das partes interessadas, não poderia deixar que a decisão da comissão eleitoral “composta só por pessoas brancas” anulasse o parecer da instituição federal. Ronnie é irmão do candidato ao Quinto Constitucional Frederico Preuss Duarte.

A Comissão Eleitoral é composta por Delmiro Dantas Campos Neto, Ana Luiza Mousinho da Motta e Silva, Fernanda Caldas Menezes de Moraes, Leonardo Sales de Aguiar e Silvio Pessoa de Carvalho Junior.

Também fizeram defesa oral outras pessoas diretamente envolvidos no caso: Pedro Avelino, Ana Paula Azevêdo, Luciana Brasileiro, Bethane Karlise e Diana Câmara.

A advogada Diana Câmara defendeu a anulação da decisão da banca de heteroidentificação e afirmou veementemente que não é uma mulher branca. “Eu nunca vi uma mulher branca quando me olhei no espelho”, disse a advogada ao afirmar que o processo de avaliação da banca de heteroidentificação lhe causou angústia e constrangimento. Em sua defesa, a candidata ao Quinto Constitucional chegou a apresentar laudo de um dermatologista médico que, segundo ela, comprovaria geneticamente sua identidade parda e registros na Polícia Federal que a identificam como tal.

A advogada falou ainda sobre o princípio da dúvida razoável prevista no edital e declarou que se encaixaria neste recurso, uma vez que na banca de heteroidentificação composto por cinco pessoas, duas delas a reconheceram como parda e as outras três não, portanto, “o parecer não é soberano”.

O processo de heteroidentificação da UFPE ocorre da seguinte maneira: os candidatos/as devem gravar um vídeo deles mesmos em diferentes ângulos e lendo um texto indicado pela banca.  No momento da gravação não devem usar maquiagem e/ou adereços. A comissão é composta por cinco pessoas. Caso não concorde com o resultado desta primeira análise, o candidato/a pode recorrer. Com isso, passa uma nova etapa de análise. Esta nova etapa acontece presencialmente diante de uma comissão formada por outras cinco pessoas. A UFPE reforça que a comissão considera características fenotípicas, como coloração da pele, formato de nariz e boca e tipo de cabelo.

A candidata Bethane Karlise, assim como Diana Câmara, não foi considerada parda na primeira análise, mas entrou com pedido de revisão à própria banca de heteroidentificação e passou pela análise presencial, que determinou que ela era, sim, uma mulher parda. Já Diana Câmara foi reprovada na análise duas vezes, por duas bancas diferentes.

O caso de Diana Câmara abriu uma longa discussão entre os conselheiros e conselheiras da OAB, sendo necessário que o presidente Fernando Lins alterasse a forma como o tema seria votado pelo pleno. Os conselheiros/as passaram a ter três opções:

  • votar em favor do recurso que anulava a decisão da Comissão Eleitoral e portanto desclassificava os cinco candidatos desaprovados pela banca de heteroidentificação;
  • votar contra o recurso e manter a decisão da Comissão Eleitoral determinando que os cinco candidatos poderiam concorrer as vagas destinadas à pessoas negras;
  • votar na revisão do caso da advogada Diana Câmara utilizando do recurso da “dúvida razoável”.

A primeira opção ganhou por maioria dos votos, as demais receberam seis votos cada. Com a decisão, os candidatos reprovados pela banca de heteroidentificação ainda concorrem no processo, mas nas vagas de ampla concorrência.

Durante todo o processo de discussão uma coisa chamou a atenção: muitos conselheiros e conselheiras da OAB não tiveram nenhum incômodo em afirmar que não possuíam letramento racial e que não dominavam o assunto. No entanto, minutos depois, alguns desses mesmos conselheiros sentiram-se à vontade para votar pela anulação total ou parcial o resultado da banca de heteroidentificação de uma instituição federal de reconhecimento nacional.

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O termo “negro” engloba tanto indivíduos pardos quanto pretos, abrangendo uma categoria mais ampla que corresponde à combinação de pessoas afrodescendentes, é o que determina o Estatuto da Igualdade Racial.

Em algumas das colocações mais esdrúxulas testemunhadas pela reportagem, o conselheiro da OAB-PE Felipe Bezerra, fez uma fala em defesa da ampla concorrência e afirmou: “sempre vejo homens e mulheres, independente de cor”. Durante a sua fala, Bezerra demonstrou não saber que pretos e pardos são considerados negros e defendeu que negros e pardos devem ter chances nas cotas.

Ainda na sessão, outro conselheiro que defendeu o respeito a decisão da banca de heteroidentificação da UFPE, disse não ter capacidade nenhuma de opinar sobre questões raciais e ainda se autodeclarou amarelo. Em seguida, ele foi corrigido por outra conselheira presente, que reforçou que pessoas amarelas são descendentes asiáticos e portanto ele não poderia se autodeclarar dessa forma.

A opinião da repórter

Como mulher negra, foi medonho notar também que muitos conselheiros e conselheiras não têm conhecimento ou preferem não respeitar o processo de heteroidentificação, uma vez que insistiram em utilizar documentos e até relatos de apelidos de infância – como “neguinho”, utilizado pelo advogado Pedro Avelino – para justificar a desaprovação da decisão da banca da UFPE. Logo lembrei de uma amiga que possui um pai negro e uma mãe branca e que fenotipicamente é uma mulher negra, mas de acordo com um teste de análise genética tem mais de 80% de sua ascendência de países europeus.

Utilizar da miscigenação para dar base aos questionamentos contra o processo de heteroidentificação, como muitos conselheiros fizeram, também é um golpe baixo tendo em vista que foi justamente esta mesma justificativa que resultou em anos de violência, silenciamento e apagamento da luta da população negra no Brasil por equidade e justiça racial. Mas nós estamos na cidade da “democracia racial” de Gilberto Freyre, afinal, e a fala do advogado Felipe Bezerra é a prova de que este mito que é basilar para o racismo até hoje segue operando fortemente na sociedade brasileira, inclusive nos espaços institucionais de poder.

Durante suas falas, os advogados e advogadas negras presentes na sessão reforçaram a importância da Lei 12.990/2014 que assegurou a reserva de cotas para candidatos/as negras e defenderam o trabalho da banca de heteroidentificação da UFPE e de seus componentes.

Antes do início da votação do recurso e do fim da sessão plenária, a secretária-geral adjunta da OAB-PE e presidenta do Instituto Enegrecer, Manoela Alves, fez uma fala emocionada sobre a luta das pessoas negras para conseguir ações afirmativas, como as cotas raciais, e a importância de assegurar o cumprimento da lei.

“Tomei de fato para dentro desse espaço a pauta da equidade racial, entendendo que essa é a pauta que faz com que a gente consiga colocar essa OAB na vanguarda […] Essa é a minha luta de vida e eu não abriria nem para um trem para chegar aqui e falar, de fato, de um lugar de representatividade, de um lugar de respeito e de um lugar de quem nunca hesitou em se insurgir diante de injustiças. E, neste momento, nós estamos diante de uma das maiores injustiças que eu vi nesses últimos três anos, que é o nosso período de gestão”, disse a advogada sobre a decisão da Comissão Eleitoral.

De todos os momentos da sessão plenária, aqueles em que me senti fortalecida pelas falas de pessoas negras, em outros em que quis sair da sala por não acreditar no que estava ouvindo de tão absurdo que era ou nos momentos em que me segurei para não rir de nervoso, o momento mais triste, sem dúvidas, foi ouvir alguns advogados e advogadas – brancos, claro – zombando da fala de Manoela Alves, chamando-a de parcial, por defender a pauta da justiça racial no processo que vai definir o próximo ou a próxima desembargadora do TJPE.

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.