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Sem quarentena obrigatória, 6 mil pernambucanos podem morrer até fim de junho

Maria Carolina Santos / 12/05/2020

Feira de Cavaleiro, no sábado passado (09). Foto: Agência JCMazella

Sem o lockdown ou quarentena obrigatória, como o governo vem chamando, não há projeções matemáticas boas para o estado de Pernambuco na pandemia do coronavírus. Com 1.157 mortes e 14.309 casos (nesta terça-feira, dia 12), com o sistema hospitalar já trabalhando além do limite, o governador Paulo Câmara decretou que a partir do sábado (16) haverá restrições no ir e vir das pessoas. Sem usar o termo lockdown, o decreto não prevê multas, mas cinco cidades do Grande Recife (Olinda, Jaboatão dos Guararapes, Camaragibe e São Lourenço da Mata, além da capital) irão passar por uma série de restrições até pelo menos o fim de maio.Os cinco municípios são responsáveis por 77% das mortes e mais de 70% dos casos de coronavírus em Pernambuco.

São três os pilares da quarentena:

a) uso de máscara deixa de ser recomendado e passa a ser obrigatório;

b) controle de circulação de pessoas: os moradores só poderão sair para atividades essenciais. Prestação de serviços essenciais foi mantido, como supermercados, padarias, farmácias e atendimentos médicos;

c) circulação de veículos: até três pessoas em carros particulares e rodízio, que vai funcionar com placas de números pares circulando em datas pares, e placas com final ímpares circulando nas datas ímpares.

A fiscalização, ponto crucial para que o lockdown ocorra, será feito tanto para pedestres quanto para pessoas em veículos. De acordo com o secretário de Defesa Social, Antônio de Pádua, guardas municipais e policiais poderão abordar os pedestres e solicitar identidade e comprovante de residência. Os moradores terão que justificar a presença na rua – ida a supermercado ou farmácia, por exemplo. “Se não houver motivo, as pessoas serão recomendadas a ir para casa. Nosso intuito não é usar poder de polícia, mas conscientizar a população”, disse em coletiva na segunda-feira (11), acrescentando que, casa haja desacato, pessoas na rua sem motivo poderão ser levadas à delegacia.

Na tarde de ontem, o governo enviou para Assembleia Legislativa de Pernambuco um projeto de lei com a única punição prevista no decreto: apreensão e remoção do veículo para quem desrespeitar o rodízio.

Confira aqui o decreto completo

Coordenador do grupo BRCovid-19 Monitor, que reúne pesquisadores da UFPE e da Unicap, o professor Dalson Figueiredo afirma que é importante que o governo deixe claro que os efeitos da quarentena não serão sentidos imediatamente. “É mais ou menos como treino físico em academia de musculação. Não adianta passar um dia inteiro malhando e esperar ver resultado no mesmo dia. O efeito vem com o tempo. A experiência internacional (EUA, Irã e China) mostra que o lockdown reduz tanto o contágio (novos casos) quanto a mortalidade. A estimativa é que em 12 ou 14 dias já seja possível observar uma desaceleração dessas curvas”, diz.

Para ele, é essencial que a população entenda e tenha adesão à quarentena. “A política de informação do governo deve ser muito transparente e explicar isso com antecedência para evitar que a população fique frustrada. Se a população desacreditar da intervenção, corremos o risco de ter um lockdown “café com leite” e isso vai custar vidas no futuro. Outro problema que o governo vai enfrentar é a pressão de grupos econômicos para minimizar a duração do lockdown. Por isso, é importante também garantir uma articulação institucional com o setor produtivo”, diz.

Na mesma coletiva em que o decreto da quarentena obrigatória foi explicado, o governo anunciou que o Instituto Materno-Infantil de Pernambuco (Imip) vai realizar 200 testes diários para o coronavírus. “A quantidade de testes é um outro elemento importante. Imagine, por exemplo, que durante esses 15 dias de lockdown o governo triplique o número de testes realizados. Pode dar a falsa sensação de que a doença ficou pior do que já estava. Então, o governo tem que investir muito em transparência e dialogar com a população (a Coreia do Sul fez isso)”, afirma Dalson.

O Instituto para Redução de Riscos e Desastres em Pernambuco (IRRD) faz estudos epidemiológicos semanais sobre o coronavírus no estado. Desde o dia 20 de abril os pesquisadores notaram uma tendência de aceleração preocupante.

Membro do Instituto, o pesquisador da UFRPE Jones Albuquerque diz que a quarentena “recomendada” não segurou o vírus. “A curva tá mostrando uma acentuação, indo em direção ao colapso: que é uma pessoa adoecer, precisar de um respirador e não ter. Ela vai morrer asfixiada. Não pela doença em si, mas porque não tem um equipamento que poderia salvá-la”, diz. “E estou falando de falta não só no público, mas também no hospital privado”.

Com a quarentena obrigatória, Pernambuco pode operar no limite do sistema de saúde. “Já estamos indo para o colapso. Com o lockdown, a gente não vai tanto. Se iriam morrer 4 mil, pode ser que morram 1 mil. Fernando de Noronha é um exemplo: entrou em lockdown e os números estabilizaram”, diz.

A taxa de contaminação atual em Pernambuco é de 1.4 – o que significa que dez pessoas transmitem o vírus para outras 14. Para que a curva pare de subir, é necessário que essa taxa fique abaixo de 1. “Dez pra 14 pode parecer baixo, mas é exponencial. É não linear e quando isso acontece pipocam os caos. Não estamos acostumados a trabalhar com matemática não-linear, mas é assim que as epidemias funcionam”, diz.

Só daqui a duas semanas a partir de sábado é que será possível avaliar para qual caminho Pernambuco deverá seguir. “Com as pessoas em casa não significa que as mortes irão cair imediatamente, nem que os novos casos irão baixar logo. Esse tempo é de duas até sete semanas, pelo que se tem observado no mundo. Isso porque pessoas podem estar infectadas sem saber e apresentar sintomas depois de 15 dias. Mas, se em duas semanas já observarmos alguma queda, Pernambuco estará indo por um bom caminho”, diz.

3% dos pernambucanos infectados

Doença imprevisível, sem tratamento específico e altamente transmissível, a única forma eficaz de controle conhecida para a covid-19 é o distanciamento social. Foi só assim que Itália, Alemanha, Espanha e China, entre outros, conseguiram controlar a disseminação e dar um respiro ao sistema de saúde.

Para que as transmissão caia, o isolamento deve atingir cerca de 70% da população. Na Lombardia, região italiana mais atingida, a ida a supermercados caiu em 75% com a quarentena. Isso ajudou para que a taxa média de transmissibilidade (Rt) caísse para 0,58%. Em São Paulo, sem lockdown, a quarentena recomendada reduziu em apenas 18% as idas a supermercados – mantendo um Rt alto, de 1.58 (ou seja: 10 pessoas infectam outras 15,8).

Apesar do coronavírus ter se espalhado por todos os estados, e estar com altas taxas de transmissibilidade, o Brasil está extremamente longe de ter uma “imunidade de rebanho” – quando pelo menos 70% de uma população fica imune e a circulação do vírus é naturalmente restrita.

Considerando que os dados de mortes por coronavírus não estejam subnotificados, apenas 3% da população pernambucana foi ou está infectada, segundo estudo do Imperial College divulgado na semana passada. Se a subnotificação for de 33%, o percentual sobe para 4,5%. Se a subnotificação chegar a até 67%, a taxa de infecção da população sobe para 8,86%. É um percentual baixo, mas que bastou para colapsar o sistema de saúde. “Nossos resultados sugerem que se não houver medidas de controle mais fortes, o Brasil vai enfrentar uma epidemia que continuará a crescer exponencialmente”, diz o estudo.

“Tecnicamente, o procedimento mais confiável (que o governo deveria fazer) é realizar uma pesquisa sorológica, tal qual uma sondagem de intenção de voto. A partir de uma amostra aleatória e representativa da população pernambucana, os recenseadores deveriam ir nas casas das pessoas, coletar material biológico (saliva, escarro, sangue) e examinar laboratorialmente esse material. A partir dessas informações seria possível calcular a prevalência da doença na população. O Rio Grande do Sul já iniciou essa abordagem. O Piauí também. A segunda melhor estratégia é fazer alguma estimativa, tal como o grupo do Imperial College”, afirma Dalson.

No Brasil já existem estudos dentro dessa perspectiva. “O pessoal da FACE/CEDEPLAR/UFMG, por exemplo, estimou uma taxa de correção de 7,7. Assim, para cada caso detectado, você poderia multiplicar por 8. Os resultados de prevalência do Rio Grande do Sul indicam que para cada caso positivo existem outros 10. Assim, o número de casos detectados deve ser multiplicado por 10. O que vemos é apenas uma parte pequena do que realmente existe. Agora em que medida a prevalência do Rio Grande é a mesma em Pernambuco? Não tem como saber. Os modelos epidemiológicos existentes não foram pensados para explicar a propagação da doença em localidades extremamente vulneráveis (falta de água, falta de saneamento básico, etc). A população mais vulnerável será mais vitimizada”, acredita.

A projeção de letalidade do coronavírus em Pernambuco feita pelo Imperial College levou em conta índices de desenvolvimento humano e de rede hospitalar. O estudo prevê que entre 0,58% e 1,07% da população pernambucana pode morrer por conta do coronavírus. É a sexta maior letalidade prevista para o Brasil.

Para o pesquisador Jones Albuquerque, os números do Imperial College fazem sentido, mas ele prefere trabalhar com projeções mais curtas, de no máximo cinco dias. “Não conseguimos olhar muito para frente. Se esse decreto não pegar, se a população não aderir, os números vão para a estratosfera e as 80 mil mortes nos Estados Unidos não serão nada perto do número de mortes daqui. No Rio de Janeiro, as ambulâncias já não conseguem recolher os corpos nas comunidades. Imagina como vai ser no Morro da Conceição? O que vai acontecer depende muito do comportamento da população”, afirma.


Entrevista, Dalson Figueiredo: “Em nossa projeção mais pessimista, podemos perder mais de 6 mil pernambucanos até final de junho “

Como está o crescimento da curva de novos casos e de mortes em Pernambuco antes do lockdown anunciado hoje pelo governo? É maior do que a brasileira? Como ela fica comparada a outros países, como EUA, Itália e Espanha?

O Brasil já ocupa a sexta posição no ranking absoluto de óbitos. Devemos passar a França (+ 26 mil) ainda em maio. Pernambuco e Ceará lideram o ranking de mortalidade no Nordeste. Mas melhor do que eu ficar falando aqui é você ver com seus próprios olhos. Os gráficos abaixo ilustram a evolução da mortalidade em Pernambuco em perspectiva comparada.

Como pode ser observado, as curvas de mortalidade no Brasil, no Nordeste e em Pernambuco, infelizmente, exibem tendência positiva. Veja que o movimento é muito parecido, a diferença é apenas de nível. Outra forma de dizer: não importa onde você olha (Brasil, Nordeste ou Pernambuco), o ritmo de crescimento da mortalidade é acelerado. A única intervenção não farmacêutica capaz de derrubar essas curvas é reduzir o contágio. E a única forma de reduzir o contágio é aumentar o distanciamento social (e garantir níveis altos de distanciamento por alguns dias). Basta afrouxar a mão, que o vírus volta. Não tem jeito. Nesse meio tempo (quarentena ou lockdown), o contágio tende a cair, o que dá um pouco mais de fôlego para o sistema de saúde. Quer saber se o ritmo de contágio está caindo, converse com um coveiro. A vivência diária com mortes permite que o coveiro tenha um bom palpite sobre a direção da tendência (positiva ou negativa). Veja a situação de Pernambuco em relação aos Estados Unidos, Espanha e Itália.

Observe que as curvas de Espanha e Itália já exibem sinais de desaceleração, formando um platô. Isso vai ficar estabilizado, mesmo com o controle do ritmo de infecção de novos casos. Os Estados Unidos, linha verde, ainda exibe tendência positiva. E Pernambuco é o mais acelerado. Precisamos literalmente de um freio de mão antes que seja tarde demais. As pessoas precisam entender, de uma vez por todas, que é mais fácil criar empregos do que ressuscitar mortos.

Outro indicador importante, mas que pouca se fala é a relação entre novos casos e total de óbitos. Observamos o seguinte padrão: mesmo depois de estabilizar o contágio, a mortalidade continua crescendo. Isso aconteceu na Itália, na Espanha e na Alemanha. Na verdade, mesmo países que exibem queda contínua no contágio (como a Itália), a mortalidade continua crescendo.

Então, Pernambuco ainda está subindo a ladeira. Depois disso, chegaremos no pico. Depois, ainda passaremos um tempo no platô para apenas depois disso começar a reduzir o nível de contágio. Esse percurso vai demorar meses e custará muitas vidas. Estamos caminhando para um dos maiores desastres sanitários da história contemporânea. De acordo estimativas recentes, a cada morte por coronavírus, seis a dez pessoas são impactadas.

Em nossa projeção mais pessimista, podemos perder mais de 6 mil pernambucanos até final de junho (se o distanciamento social continuar caindo). Isso significa entre 36 mil e 60 mil pessoas impactadas pela dor do luto. A capacidade máxima do estádio do Arruda é de 60.044 torcedores. Deu para visualizar o tamanho do problema?

O Brasil tem feito poucos testes, se comparado a outros países. Como isso influencia as projeções?

O nível de testagem no Brasil é, literalmente, sofrível. Para se ter uma ideia, proporcionalmente, o Brasil testa menos do que Benin (que é um país que não consegue garantir o funcionamento continuado de postos de gasolina). O Brasil tenta menos que o Iraque, que passou por guerras recentemente e teve boa parte da sua infraestrutura devastada por bombardeios. O Brasil testa menos que Botsuana, que é um país colapsado economicamente.

Por fim, o Brasil testa menos que Gana, país que originou o meme da dança do caixão e que exibe níveis alarmantes de pobreza e desigualdade social. Os dados podem ser verificados aqui. Em síntese, assumindo que os testes servem como lanterna dentro de uma caverna, o Brasil não tem sequer um fósforo. O efeito disso é informação de baixa qualidade, subnotificação e impossibilidade de elaborar políticas efetivas. Não se formula política pública de qualidade sem informação confiável.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com