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Sobre carnaval, pandemia, camarotes e quetais: é o protocolo, estúpido!

Marco Zero Conteúdo / 07/01/2022
Maracatu Leão Coroado

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo/Arquivo

Por Ivan Moraes*

O ano começou com o anúncio – já esperado – de diversas cidades suspendendo ou cancelando os eventos carnavalescos que realizariam a partir de fevereiro por conta do agravamento da crise sanitária, com o aumento de casos de gripe e da nova variante da covid-19, a ômicron. A cidade do Recife foi uma das prefeituras que, em nota, afirmou que não promoveria festejos entre 25 de fevereiro e 5 de março. A gestão municipal (ainda) não avançou sobre o que isso significa e sobre previsões de mitigação dos danos à cadeia produtiva da folia. Será o “carnaval oficial” adiado? Haverá auxílios emergenciais para quem faz a festa acontecer? Haverá feriado em fevereiro? São apenas algumas das tantas questões que precisam ser respondidas o mais brevemente possível.

O relatório publicado pela Comissão Especial para o Carnaval e São João da Câmara Municipal do Recife, sugere que as festas patrocinadas pelo poder público sejam realizadas tão logo haja condições sanitárias para isso. Também recomenda que 100% do recurso previsto para a folia seja investido na própria rede que garante a realização dos festejos todos os anos. O legislativo também recomenda que não haja nenhum tipo de “segregação carnavalesca”, entendendo que é compromisso do poder público é prezar pelo que o carnaval tem de mais visceral: seu aspecto popular e democrático.

A confirmação de que a prefeitura não realizará os festejos e não promoverá a estrutura necessária para a folia de rua misturou sentimentos em quem ainda sonhava com o ruge-ruge do frevo, mas que compreende o desafio sanitário histórico que ainda não superamos. Uma questão, porém, tem incomodado mais do que pedra no tênis encharcado no meio do bloco. Como explicar que, por questões sanitárias, não haverá blocos de rua enquanto diversos camarotes privados têm vendido ingresso a todo vapor? A questão acende um debate que vai além da competência da própria gestão municipal e que não pode ser feito com o fígado. Afinal de contas, uma coisa é a prefeitura dizer o que vai ou não realizar. Outra coisa são as autoridades constituídas informarem o que irão ou não permitir – e como irão se preparar para lidar com as consequências dessas decisões. Em Pernambuco, estas definições têm sido anunciadas através de decretos publicados pelo Governo do Estado.

Nas cinco reuniões públicas realizadas pela Comissão Especial da Câmara, em dezembro do ano passado, especialistas em políticas de saúde foram unânimes não apenas em descartar a pertinência de se realizar grandes festas de rua em fevereiro, mas também em questionar os próprios protocolos vigentes para a realização de eventos. Todos os dias, tenho conversado com pessoas que se dedicam à saúde pública. Nenhuma delas – absolutamente nenhuma – considera seguros os protocolos atuais. Ou seja: por um momento esqueçamos o carnaval e nos debrucemos sobre hoje.

Desde o final de novembro, quando não se tinha notícia da ômicron, pode-se encher os estádios em jogos de futebol a igrejas. Pode-se também realizar eventos em lugares fechados, com ou sem cobrança de ingresso, para um público de até 7.500 pessoas (ou 50% da capacidade do local, o que for menor). Seguem vedados eventos em espaços públicos, faixa de areia e barracas de praia, em que não haja controle de entrada e de acesso ao público. Por mais que haja protocolos que obriguem o uso de máscaras e a apresentação de comprovante vacinal em lugares com mais de 300 pessoas, o que se tem visto é um aumento agressivo dos casos de contaminação e das filas nas unidades de tratamento intensivo especialmente nas últimas semanas. Embora o número de óbitos por covid registrados não tenha sofrido grandes impactos desde setembro, quando boa parte da população já tinha tomado a segunda dose da vacina, o aumento da procura na rede de saúde compromete o atendimento às pessoas.

Voltando para a folia, a ‘revolta’ por um possível apartheid carnavalesco precisa ser compreendida dentro de toda essa conjuntura. Afinal de contas, quando se critica a ‘permissão’ para a ‘folia privada’, não se pode cair na armadilha de contaminar o debate (com o perdão do trocadilho) criminalizando profissionais da cultura que encontram nos ciclos festivos sua principal fonte de emprego e renda. Senão vejamos, como ‘proibir’ apenas os camarotes protocarnavalescos num determinado período? Se o governo permite milhares de pessoas em todo tipo de evento, apenas os que se apropriam do termo ‘carnaval’ estarão vetados? Em se proibindo essas festas, como garantir que isso não acabará ricocheteando também na perseguição a agremiações populares que têm buscado realizar eventos menores para garantir sua sustentabilidade? Tudo está nos protocolos.

Se, como dizem unanimemente cientistas e sanitaristas, os decretos atuais estão defasados diante das novas ameaças, que eles sejam revistos. Não amanhã, não em fevereiro, mas hoje. Não importa se o evento é de carnaval, de forró, de brega, de casamento, de batizado, de oração. Importa saber quantas pessoas, e em que condições, podem se reunir em lugares fechados, equilibrando-se a imprescindível segurança sanitária e a importante necessidade de se festejar, rezar, confraternizar e fazer circular dinheiro.

Em geral, profissionais e pessoas estudiosas da saúde, corretamente, não gostam de fazer essas contas. É comum, ao serem perguntadas, dizerem que não é aceitável “nenhum tipo de aglomeração”, como atestou o último boletim do Comitê Científico do Consórcio Nordeste, sem detalhar o que considera ‘aglomeração’. Só que “nenhum tipo de aglomeração” é uma coisa que não existe. É preciso se estabelecer, portanto, um número (arbitrário que seja) que sirva de parâmetro para que se possa fiscalizar ‘o que pode’ e ‘o que não pode’. Um número que permita análises e que, ao longo do tempo, possa ser expandido a partir de argumentos baseados em indicadores sanitários.

Nesse momento em que já se começa a sonhar com dias melhores, o Governo de Pernambuco precisa tomar posição. Ou contribui para o final da pandemia, salvando vidas, ou para que ela se alongue. Se o objetivo for encurtar a crise, é preciso coragem para rever todos os protocolos. Reduzir o teto de público para 1.000 pessoas vacinadas – desde já – é preciso, assim como enrijecer a fiscalização e realizar, nesses eventos, testes de controle por amostragem que gerem dados para embasar possíveis novas aberturas. Isso deve valer pelo menos até o fim da primeira quinzena de março, passado o período das tradicionais festas de Momo. Também é urgente fortalecer a campanha para a dose de reforço, realizar ações de testagem em massa, além de restringir cada vez mais os espaços onde (ainda) se pode entrar sem o comprovante da vacina.

Entrando em vigor o mais brevemente possível, estes novos protocolos impedirão os megaeventos (independente do seu conteúdo) e permitirão que cada família e cada comunidade possa se adequar ao ‘carnaval possível’, ajustando formatos, incentivando a imunização, buscando apoios para o apoio à sua própria cadeia produtiva. Festas menores, via de regra, desestimulam a contratação de ‘medalhões’ da cultura pop e abrem portas para mais contratações de artistas locais. Também evitam que haja grandes concentrações de gente nos mesmos lugares da cidade, incentivando que as pessoas fiquem nos seus próprios bairros.

*Ivan Moraes e vereador do Recife. Contribuíram para este texto o infectologista Bruno Ishigami, o médico da família e professor da UFPE Rodrigo Cariri, a enfermeira Nise Santos e o biomédico André Silva. Todos, como o autor, defensores do SUS.

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