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Solidariedade a Moçambique precisa ir além das doações de materiais

Débora Britto / 03/04/2019

Crédito: MSF/Pablo Garrigos

Pouco mais de duas semanas depois de atingir Moçambique, Zimbábue e Malawi, o rastro de destruição do ciclone Idai se estende, desafiando os esforços para reconstrução e de prevenção a outras tragédias anunciadas. Ativistas moçambicanos e brasileiros que vivem no país e estão ligados a iniciativas de ajuda humanitária chamam atenção para que os apoios não se resumam à primeira fase, a mais crítica.
Para o jornalista e ativista moçambicano Boaventura Monjane, que estava no Brasil quando o ciclone atingiu Moçambique, o ciclone não se resume a um “desastre natural”. Ele avalia que a imprensa brasileira e internacional demoraram a noticiar o fato, só fazendo no momento em que a situação ficou catastrófica.

Era de conhecimento de autoridades e meteorologistas que o ciclone seria de grande magnitude, porém, segundo Boaventura, não houve preparo por parte das autoridades ou visibilidade na mídia. “Os meios de comunicação social têm responsabilidade de mobilizar a comunidade internacional a apoiar as vítimas, mas também tem obrigação de noticiar que não se trata de um desastre natural no sentido de que foi um efeito de forças da natureza incontroláveis pelo homem – pois, na verdade, é resultado das mudanças climáticas que, como se sabe, são causadas pela forma adotada no mundo de produção capitalista de superexploração de recursos naturais”, denuncia. Ele acredita que os responsáveis pelo impacto são conhecidos.

A solidariedade, palavra-chave para o momento, pode vir das mais diversas ações, mas precisa escutar de quem está precisando quais são as necessidades e prioridades, é o que defende o moçambicano. “Penso que os apoios têm que mobilizar não só organizações, instituições doadoras, mas também pessoas comuns a fazerem doações singelas. Como está fazendo nossa campanha da Alternactiva com a UNAC [União Nacional dos Camponeses de Moçambique] e o Fórum Mulher em que pessoas anônimas estão a dar 10 a 500 dólares para apoiar principalmente camponeses e mulheres das províncias de Sofala e Manica, não só da cidade da Beira”, defende.

Os esforços para reconstrução das áreas devastadas são de médio e longo prazo. De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas moçambicano, 68,4% da população reside em áreas rurais. É para esta parcela da população que a situação está mais complicada. O impacto da cidade de Beira é devastador, mas a projeção para as comunidades rurais é difícil até de prever. A distribuição de doações é um problema. Assim como a dificuldade de acessar áreas distantes dos acampamentos e centros de acomodação.

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Áreas inundadas após passagem do ciclone Idai e trecho destruído da Estrada Nacional Nº6, que conecta o Sul e Centro de Moçambique. Crédito: INGC

Depois da terra arrasada, que acabou com plantações, a perda de sementes também é outra preocupação urgente, que pode ter reflexos a longo prazo e comprometer a soberania alimentar e capacidade de subsistência de famílias no meio rural. “O drama agora é com a distribuição. Para chegar nas pessoas que estão fora de abrigo é dramático. Falta gente, falta fiscalização, falta tudo porque as pessoas não estavam preparadas para isso. É de uma dimensão muito grande”, conta Solange Rocha, pesquisadora feminista e consultora vivendo entre África do Sul e Moçambique. “O que eu percebo é que ninguém estava realmente preparado para o tamanho do desastre que foi”, conta ela, que também lembrou que 10 dias antes do Ciclone atingir os países já havia informação sobre.

De certo é que será necessário um esforço conjunto do governo moçambicano, organização não governamentais e do apoio internacional – por meio de agências e outros países. A consultora pondera que, mais do que doações de países, apoiar grupos e organizações não governamentais é uma forma de fazer a ajuda chegar mais rápido a pessoas que estão em áreas descobertas. “Fiquei muito surpresa com algumas coisas que apareciam [nas redes sociais] e chamava atenção de que a ajuda humanitária não está chegando e que os povos africanos não estão recebendo nada. Quando estava em Maputo [capital de Moçambique] não era essa a informação que a gente tinha, a ajuda humanitária estava chegando, muitos países estavam enviando ajuda”, conta, lembrando que o processo de triagem e distribuição é demorado.

Outra preocupação que se faz urgente é o acompanhamento dos recursos que estão chegando aos países. A Cruz Vermelha solicitou uma auditoria internacional para os recursos que estão chegando m Moçambique. A observação internacional pode contribuir para evitar desvios e organizar a reconstrução da infraestrutura básica no país. Nas zonas mais afetadas, hospitais, escolas, repartições públicas foram destruídas, além de casas e machambas (terrenos onde famílias cultivam alimentos para a própria alimentação).

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Distribuição de mantimentos em um dos centros de acomodação em Moçambique. Crédito: INGC e UNICEF.

O ciclone tropical atingiu a região conhecida como África Austral, passando por Moçambique, Zimbábue e Malawi deixando pelo menos 800 mortos nesses países. De acordo com informações do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC) de Moçambique, o país registrou, até a data de hoje, cerca de 598 mortos. A cada dia os números aumentam. O país também contabiliza mais de 800 mil pessoas afetadas na região central.

Doenças endêmicas também preocupam a comunidade médica e ativistas, que preveem a necessidade de uma força tarefa para conter o avanço de doenças como cólera. Ao todo, as autoridades confirmaram 139 casos da doença e cinco mortes. Para quem sobreviveu ao primeiro impacto, resta agora enfrentar condições sanitárias precárias que podem favorecer a proliferação de diarreias agudas e outras enfermidades. Para a ajuda médica, as autoridades desaconselham a ida “independente” de pessoas, orientando que procurem a Organização Mundial de Saúde (OMS) para articular os esforços coletivos.

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Apelo à narrativa sem estereótipos

A comoção e apoio são bem vindos, mas é importante ouvir quem está, de fato, na ponta dos acontecimentos. Se antes desse desastre já existia um debate forte para desmistificar e combater a exotização da África (continente e os países africanos), agora não deixa de ser uma pauta importante. É preciso antes conhecer e não romantizar as narrativas de apoio e ajuda humanitária.

Nas redes sociais e alguns veículos de comunicação, tomou fôlego a ideia de que Moçambique, Zimbábue e Malaui estariam sem receber a devida ajuda internacional. A narrativa do racismo e preconceito com o continente africano fundamentou esta ideia, mas é questionado, em parte, por pessoas que vivem nos países atingidos e estão à frente de esforços humanitários.

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Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias de Sofala (GMPIS) iniciou uma campanha em sua rede para dar visibilidade às mulheres atingidas contarem suas histórias. Clique na imagem para ler.

“Nas redes sociais, esse movimento das pessoas falando de que ‘esse país africano pobre não está recebendo ajuda’ foi o que me chocou mais. Pelo contrário, não era muito o que a gente estava vivenciando. Conversei com algumas pessoas pelas redes sociais sobre o discurso de que ‘a África precisa de nós’, que não estaria recebendo ajuda porque não tem petróleo… e eu disse que não é a África que precisa de nós, é Moçambique, Zimbábue, Malaui. Essa noção de que África é esse coletivo, que é uma coisa só, homogênea mostra o tanto de racismo que está por trás disso nas palavras e nos bons gestos”, analisa Solange.

Boaventura avalia que a forma como Moçambique é retratada pela mídia brasileira e internacional “continua a essencializar o continente”. Para ele, práticas como essas não ajudam a informar e esclarecer o público sobre o que de fato está acontecendo. “A tendência é que as notícias sobre países africanos tratem com certa falta de profundidade”, diz.

Para Solange, a cobertura jornalística pode contribuir ouvindo as pessoas que tiveram as vidas afetadas, mas também apontando a autonomia e capacidade de organização das mesmas pessoas. “A forma mais construtiva é que a mídia pode ajudar nesse momento é ouvir as pessoas, ouvir as mulheres”, pontua.

Isso não significa deixar de relatar as histórias de pessoas. “É contar a história com uma narrativa diferenciada, não uma narrativa da vitimização, só de desespero, mas fazer a narrativa da história real que é muito triste, dolorosa, de muitas perdas. É preciso que as pessoas se acostumem a ajudar sem achar que o outro lado está com o pires na mão desesperado pedindo pelo amor de Deus”, defende.

 

Entrevista Carlota Inhamussua, ativista moçambicana

Carlota Inhamussua, da coordenação do Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias de Sofala (GMPIS), região diretamente atingida pela passagem do ciclone, está na cidade de Beira, de onde os esforços para apoiar a população estão concentrados e conversou com a reportagem e explicou o contexto das consequências para mulheres no meio rural e aponta quais são as principais necessidades neste momento. Confira abaixo:

O que significa para as mulheres o impacto e consequências do Ciclone Idai?

Em termos de impacto, mulheres perderam filhos, maridos, familiares como consequência. Também perderam infraestruturas essenciais como hospitais e também infraestruturas econômicas, onde obtinham insumos. Estou falando principalmente das mulheres rurais, camponesas que estavam residindo no distrito de Buzi e Nhamatanda, na província de Sofala. Estas mulheres perderam suas casas, meios de sobrevivências e culturas, pois estavam numa altura em que previam colheitas. Mas perderam tudo porque para além do ciclone houve inundações nessas áreas, principalmente o que arrasou foram as cheias.

Quais são as prioridades da ajuda humanitária, especialmente para as mulheres em áreas rurais, agora?

O apoio psicológico, porque elas perderam a vida. Quando se perde a terra, a casa, os familiares há um efeito psicológico muito forte que precisa ser recuperado. Elas precisam fortalecer mecanismos para que possam ser incluídas no processo de reconstrução de suas comunidades, e para que elas possam incluir a agenda das necessidades das mulheres. Por exemplo, elas perderam panelas, o machado, a enxada, sementes. Elas precisam fazer essa pressão para que os planos de reconstrução possam incluir itens como esses nas agendas e que elas possam receber essas coisas para recuperarem as vidas.

Muitas perderam as casas e precisam de apoio para recuperá-las. Precisam também de insumos agrícolas, precisam de isso tudo. Aquelas que trabalha no negócio informal, muitas perderam tudo, e precisam de apoio financeiro. Algumas eram produtoras avícolas que tinham pequenos negócios. Algumas tinham animais de pequeno porte que serviam de sustento para as famílias. E muitas mulheres rurais são chefes de família – é muito importante que a ajuda possa se centrar nessas áreas.

Do que você viu na região atingida pelos efeitos do ciclone, qual é a principal preocupação e impactos para a vida das pessoas?

Nós como grupo de mulheres de partilha de ideias estamos nesse momento estamos fazendo um mapeamento para ver as necessidades das mulheres. Estamos envolvendo mais ou menos 20 organizações das quais 12 estão na cidade da Beira. Mais ou menos 8 nos distritos de Buzi e Nhamatanda. É verdade que não temos uma mostra maior, mas pensamos que se apoiamos essas mulheres que já são líderes elas podem ganhar forças para também apoiarem as outras mulheres.

O Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias de Sofala (GMPIS) constrói mecanismos de solidariedade. Este grupo atua principalmente em articulações com mulheres de base. Essas mulheres têm construído processos de solidariedade através de acampamentos solidários nos últimos anos. Nesse momento essas mulheres, embora sejam muito fortes, estão abaladas com o efeito do ciclone. Estão precisando de muito apoio e solidariedade de todas as mulheres. O nosso grupo tem como slogan “Mexeu com uma, mexeu com todas” e estão precisando de muito apoio e solidariedade de todas as mulheres.

 

Conheça formas de apoiar as vítimas do ciclone Idai:

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.