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Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
Em 2006, o cineasta pernambucano Daniel Bandeira pensou em uma imagem: uma mulher trancafiada em um carro, enquanto vultos indistinguíveis a amedrontavam do lado de fora. A imagem dessa mulher, em um invólucro impenetrável, foi a gênese do filme Propriedade, lançado no final do ano passado. Tenso do começo ao fim, o filme angariou críticas mistas, principalmente por não caber em um esquema que preenche os anseios de um certo tipo de público. E fez uma bela carreira em festivais do mundo, que trabalham principalmente com o cinema de gênero — o termo que engloba filmes de suspense, terror, ficção científica.
“É tudo aquilo que sai um pouco do real, dos limites da nossa convivência diária compartilhada. Então, o cinema de gênero se caracteriza por esse passo além dos limites do cotidiano. E eu acho que esse passo além é muito necessário para que a gente enxergue com outros olhos, outras referências, o mundo que a gente vive. Os limites aos quais a gente está acostumado a seguir no nosso dia a dia. Acho que é um momento oportuno para que a narrativa brasileira saia um pouco do pé do chão, do retrato da realidade. Os sonhos e a extravagância têm muito a oferecer neste momento em que precisamos nos redescobrir enquanto sociedade”, afirma Daniel.
Nesta entrevista, concedida no cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) no Derby, tentamos evitar spoilers sobre o filme, mas recomendamos que o leitor já tenha visto Propriedade. Por ser um filme em que a tensão é a principal característica, talvez a melhor forma de vê-lo é sem saber muito a respeito da história. Basta dizer que a imagem que Daniel teve em 2006 se ampliou em um filme com elementos de luta de classes, escravidão moderna, claustrofobia e sentimentos ambíguos ora em relação a um grupo, ora em relação a outro. Não é um filme maniqueísta, preto no branco, mas que explora as emoções do espectador. E o incômodo é uma delas.
Por ora, não tem como se assistir Propriedade no Recife, que saiu de cartaz na semana passada. Mas em breve, o filme vai estrear em uma plataforma de streaming, ainda não divulgada. Avisamos aqui. (Avisando: o filme já está disponível na Netflix)
Você está vindo da Holanda e do Rio de Janeiro, onde Propriedade participou defestivais. Como foi a recepção do filme no circuito de festivais?
Internacionalmente o filme teve uma recepção muito boa. Havia um olhar estrangeiro sobre as questões que o filme aborda que me surpreendeu. Foi muito precisa a visão que o estrangeiro tinha sobre nossas questões locais com escravidão. E principalmente de como o filme abordava isso, sob a perspectiva do cinema de gênero, com um olhar mais inusitado. Havia essa consciência do jogo que o filme estava propondo. Aqui no Brasil, tivemos uma recepção — que acompanhamos por resenhas, Letterbox…— geralmente positiva, mas percebemos nas críticas negativas uma sensação de afronta talvez muito grande. Não tanto de setores da extrema direita, mas principalmente do pessoal da minha bolha progressista, que se sentiu muito incomodado com o filme. Não é uma maioria, mas me pegou de surpresa essa reação.
Propriedade não é um filme com vilões e mocinhos tão determinados, como em Bacurau — que também tem uma comunidade que se junta contra um alvo. Bacurau tem muito bem delineado quem é “bom” e quem é “ruim”, para quem você deve torcer e para quem você não deve torcer. Propriedade não é assim: em muitos momentos, o espectador é levado a torcer pela mulher trancafiada.
Eu acho que há uma crise de representatividade no Brasil, que já vem rolando desde 2010, principalmente da transição de Lula para Dilma. Como a gente não se vê representado na política, não se vê representado na academia, não se vê representado na mídia, acho que a sociedade acaba procurando na arte este espelho, onde ela pode se ver e pode direcionar suas inquietações. A crise de representatividade se manifesta nesta expectativa de que o cinema deveria ajudar na minha agenda. Deveria estar à serviço da militância. Mas de uma maneira muito direta. Eu não acho que Propriedade faça um desserviço à militância, porque acredito que há no filme uma visão crítica sobre as camadas populares e sobre o senso de revolta — que, honestamente, para mim, está demorando a se manifestar.
E o filme mostra os motivos da revolta dos trabalhadores de forma muito contundente.
Pois é, fico muito frustrado às vezes quando vejo que as classes populares e trabalhadoras estão sofrendo há tanto tempo, sendo exploradas há tanto tempo. A base do Brasil é essa exploração. Quando é que isso vai explodir, finalmente? Às vezes você anseia por uma ruptura, e ela não vem, por questões que estão muito imbricadas na nossa cultura. E toda vez que há uma tentativa de revolta é prontamente abafada, tanto factualmente quanto na própria ideia de revolta. Você pode ver isso em toda greve que se faz, quando o foco da cobertura da greve é o trânsito. É negado até o direito de se revoltar. Mas acredito que ainda existe uma pressão que persiste e aumenta. Talvez com a eleição de Lula tenha se desinflado um pouco. Mas no Brasil, a noção de trabalhadores é a noção de desconfiança dos trabalhadores. E isso é uma herança escravocrata. O trabalhador é visto como alguém que está a meu serviço, mas pode, a qualquer momento, reivindicar mais do que é devido. Há uma questão aberta com a força de trabalho. E acho que tendo a desejar esse paroxismo de que as coisas vão explodir.
Você acha que o fato de Propriedade não ter correspondido a esse anseio por representatividade prejudicou a carreira nacional do filme?
Esse incômodo que o filme desperta era querido, era desejado. Uma coisa que percebo muito na minha bolha progressista são as palavras de ordem que tendem cada vez mais à violência. Eu não acredito que, quando se diz “fogo nos racistas” — não acredito ainda —, que seja alguém jogando gasolina e tacando fogo nos racistas. Mas eu entendo de onde vem esse desejo destrutivo. Eu acho que muita gente reclama que Propriedade traz uma visão animalizada dos trabalhadores. Eu acho exatamente o contrário: dar vazão às revoltas, principalmente às revoltas violentas, é uma forma de você entender de onde vem essa revolta. Não se pode oprimir tanta gente, por tanto tempo, sem esperar consequências fora do controle. Dar vazão e forma à essa revolta é uma forma de humanizar também essas pessoas. Agora, isso acaba não correspondendo ao ideal de classe popular, de povo brasileiro, que se tem. Que é um povo que vai à luta, mas sempre dentro de limites civilizatórios. Isso me incomoda. Porque também faz parte de uma bandeira adotada pela minha bolha progressista, que também faz parte de uma classe média que teme essa revolução. É muito legal você querer que os trabalhadores assumam seu BO, que assumam as suas lutas e vão pras ruas… Desde que não me atinja e desde que eu não precise abrir mão dos meus próprios privilégios. No final, eu vejo bandeiras progressistas muito mais voltadas para destruição de um status quo do que para a construção de algo novo. E sem essa construção, sem essa ideia do que a gente pode construir, de que acordos a gente pode refazer, acho que a gente tende realmente a uma rotura violenta. Independente de quem vai ser beneficiado. Apesar de que a história do Brasil não é nada simpática com revoltosos.
É um filme gravado em 2018, né? Estava mais tensionado do que está agora.
Gravamos durante a campanha presidencial. Começou em 11 de setembro e terminou em 8 de outubro, bem no dia do primeiro turno. A gente estava filmando os últimos planos e de olho na apuração. Quando a apuração terminou, a gente sabia que uma virada de Fernando Haddad (PT) seria praticamente impossível e se preparou para o pior. E o pior veio piorado. Não só com a pandemia, mas o ritmo de más notícias era diário, todo dia.
Era um bombardeio.
Eu deprimi. Geralmente faço a montagem dos meus filmes. Peguei o primeiro corte de Propriedade e não consegui trabalhar. Eu mal consegui olhar o material em 2019. E também porque havia a responsabilidade de apresentar um equilíbrio entre a personagem de Malu Galli (fantástica no papel principal) e os trabalhadores. Eu queria que houvesse um equilíbrio muito delicado. No final, alguém sempre vai achar que a balança pende para um lado, mas eu queria estar com a consciência tranquila. O filme só se resolveu quando Mateus Farias entrou e fez a montagem.
Levou um tempo das filmagens até a exibição nos cinemas, de cinco anos. O que aconteceu?
Em 2019, eu pirei. Por conta de Bolsonaro e da responsabilidade de ter o filme lançado naquela época. Lançar um filme desses durante o governo Bolsonaro? Naquele estado de espírito em que a gente estava? Havia outro problema também, não tínhamos o dinheiro da pós-produção. Não adiantava terminar a montagem e não ter grana para a pós. A verba para Propriedade veio um terço do Funcultura (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura) e dois terços do Ministério da Cultura, que conseguimos no ano anterior à extinção do Minc, em 2016. Depois, em 2020, veio a pandemia. Que até foi positiva para mim, porque desacelerou o mundo e permitiu que eu voltasse, aos poucos. Mas não só não cheguei em um formato adequado ao filme, como ainda estava sem verba. Houve um momento em que eu não via mais o material. Em 2022, terminamos a montagem com Mateus e conseguimos verba do Funcultura para distribuição. São etapas retroativas, com o dinheiro da pós você paga a produção, com o dinheiro da distribuição você paga a pós… O custo geral foi em torno de R$ 1,6 milhão.
Você teve a ideia para Propriedade muito antes das gravações. Como foi que essa ideia surgiu?
Surgiu em 2006. Só uma imagem, dessa mulher dentro do carro. Eu gosto de suspense e desse tipo de suspense em um espaço muito confinado. Era só essa mulher dentro do carro e vultos que ela não sabe bem o que é. Em 2010, foi quando comecei a sentir a polarização no Brasil enquanto pauta. E comecei a perceber que a imagem da mulher dentro do carro sintetizava a maneira que eu via o Brasil, de como o abismo social ficava mais claro, de como a classe média se enclausura cada vez mais dentro do seu próprio mundinho e aí senti a necessidade de entender as pessoas do lado de fora do carro. Não eram só mais vultos, sombras, eram pessoas. E pessoas opostas a essa mulher. Me dei conta de que eu também não conhecia muito bem os trabalhadores. Procurei pesquisar e havia muito do drama da escravidão 2.0, que eu já acompanhava. Foi assim que evoluiu: de uma imagem para uma analogia. E acho que o cinema fantástico, o cinema de gênero, é muito bom em captar tensões e sintetizar isso em imagens.
É um filme muito tenso, do começo ao fim. Como foi a construção dessa tensão?
Eu já tinha essa noção da construção da linguagem que eu queria usar. É uma linguagem com que eu sou familiarizado desde a minha adolescência. E muito embora boa parte da minha bolha de realizadores associem o cinema de gênero ao cinema americano, do sistema comercial, e haja um certo estigma, eu percebia que era na verdade uma ferramenta muito útil para devolver tensão a uma situação que a gente já normalizou. Então uma situação de tensão social, que já faz parte do nosso dia a dia, o cinema de gênero devolve o horror a essa situação, devolve a repulsa. E tem outra coisa: a narrativa de horror como um todo se caracteriza por mostrar como coisas ruins podem acontecer quando você ultrapassa um limite estabelecido. Mas parece que as coisas ruins que o Brasil vem cultivando não têm limite. Há uma tentativa de devolver esse senso de “olha, se você realmente continuar negando a existência do outro vai chegar num ponto tal”. Obviamente o filme não é realista. A blindagem do carro não sofre nada, praticamente nada no filme.
Qual a história daquele carro, vocês compraram para o filme? É um dos personagens principais.
É um Dodge Journey, de 2013, blindado de verdade. A gente aprendeu que carros blindados perdem o valor muito rápido. Primeiro porque a blindagem tem validade — se não me engano, são dois anos — e, a partir daí, o fabricante não dá garantia. E outra é que é muito, muito, muito pesado. O filme comprou o carro por algo entre R$ 45 e R$ 60 mil. Se o filme tem um vilão, eu acho que está tanto no personagem de Tavinho Teixeira quanto no carro em si. O carro representa uma coisa que realmente me desagrada, que é um símbolo de algo que precisa ser pensado. A blindagem impede tanto algo de entrar quanto impede a percepção clara das coisas que estão lá de fora. O carro é blindado, mas, se eu pego uma picareta, com dois golpes estou lá dentro. Mas no filme, há uma questão de continuidade, que não dava para cortar o carro ao meio. E acabei preferindo não lidar com dano ao carro, por logística, mas depois eu percebi como isso funcionava melhor em termos tensão para mostrar o carro como um símbolo, como uma camada na qual o diálogo não pode acontecer. Não há fissuras, não há brechas. Acho que o cinema brasileiro ainda se apega muito a uma noção de retrato da realidade, que tem muito a ver com esse anseio: de esperar que a arte represente uma realidade idealizada. Mas quem sou eu para dizer que isso também não é válido? Mas quero trabalhar com símbolos, com o desconforto. Acho que é tirando o pé do chão que você tem uma perspectiva do que você quer dizer. Metáforas e analogias são mais eficientes de uma sugestão de reflexão do que necessariamente esse retrato de uma realidade.
Quais seus próximos projetos? Vai continuar no cinema de gênero?
Eu tenho apostado muito na ressurgência do cinema fantástico, principalmente nordestino. Me parece que ele tem um fator de estranheza e atração, talvez porque não foi ainda tão explorado. Normalmente meus filmes começam com uma imagem, de algo que eu quero muito filmar e que eu acho que vai causar um efeito. Depois se transforma numa frase e se transforma em uma sinopse, depois um argumento. Vai aumentando gradativamente, aí finalmente esse argumento é encaminhado para oficinas e laboratórios de roteiro. Alguns deles eu vou escrevendo sem esperar. Estou desenvolvendo um roteiro que é uma coisa meio Mad Max em uma Petrolina futurista. Vamos ver como vai ser. Estou esperando uma boa notícia.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org