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“Terra sem lei” dos megaeventos no Brasil explica morte e caos no show de Taylor Swift

Marco Zero Conteúdo / 19/11/2023
em primeiro plano, mão de mulher segura garrada plástica de água mineral em frente à entrada do show de Talyor Swift The Eras, na frente do estádio Engenhão

Crédito: Instagram @updateswiftbr

por Erika Muniz* e Henrique Tenório**

Ela é a artista que coleciona o maior número de Grammys na categoria principal de Álbum do Ano e a única mulher a vencer nessa modalidade três vezes. Além disso, é a cantora que conquistou, neste ano, o maior número de vendas de álbuns nos EUA. Ela também é a primeira artista a ter seis lançamentos de álbuns em primeiro lugar nas paradas – para se ter uma ideia, apenas em 2023, são mais de um milhão e meio de cópias vendidas em seu país, além de mais de três milhões e meio no resto do mundo. E, em junho de 2023, a cantora e compositora Taylor Swift – dona desses números – anunciou sua vinda ao Brasil para a apresentação de seis shows da sua mais recente turnê The Eras. Em novembro, a ícone pop chegou aos palcos brasileiros para finalizar a sua primeira passagem com grandes shows pela América Latina, se apresentando em estádios como o Engenhão (RJ) e Allianz Parque (SP), além de já ter passado pelo Foro do Sol, no México, e pelo Monumental de Nuñes, na Argentina. 

Entretanto, na sexta-feira (17), dia do primeiro show da artista, na capital carioca, uma alta onda de calor com temperaturas até 5ºC acima da média, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), dificultou a experiência do público. Alguns veículos de comunicação afirmam que os fãs foram submetidos a uma sensação térmica de até 59,3ºC no estádio Nilton Santos. Embora estivesse diante deste cenário de perigo climático, os espectadores foram impedidos de entrar no evento com garrafas de água, resultando em casos de desidratação, por conta das altas temperaturas no local. A noite da primeira apresentação acabou sendo marcada por uma morte e mais de 1.000 desmaios, segundo o Corpo de Bombeiros fluminense registrou.

Ana Clara Benevides, jovem negra de 23 anos, veio a óbito após passar mal devido ao calor excessivo e sofrer uma parada cardíaca. Fã de Taylor Swift, Ana era estudante de Psicologia na Universidade Federal de Rondonópolis (UFR) e tinha o sonho de assistir a artista estadunidense. Em nota publicada nas redes sociais, a empresa Time For Fun (T4F), produtora responsável pelos shows da The Eras, no Brasil, informou que, após se sentir mal, Ana recebeu pronto-atendimento de brigadistas e paramédicos. A seguir, foi encaminhada para o posto médico do estádio e transferida ao Hospital Salgado Filho, no Méier, falecendo cerca de uma hora após o início do atendimento de emergência.

Em pronunciamento no Instagram, Taylor Swift sinalizou o luto, em trecho: “Quero dizer agora que sinto a perda profundamente, e meu coração partido está junto com ela, sua família e amigos”. Por conta da permanência das altas temperaturas, o segundo show que ocorreria no sábado (18/11) no Engenhão, foi adiado para a segunda-feira (20/11). Até o momento da publicação deste texto, tanto a produtora T4F quanto a equipe da artista não assumiram oficialmente responsabilidade sobre os problemas ocorridos durante o evento que levaram a fã ao óbito.

Os grandes espetáculos de música voltaram com intensidade após o fim da obrigação do uso de máscaras por conta da pandemia, em março de 2022. Ao mesmo tempo, são recorrentes as denúncias e insatisfações em relação à falta de organização e às estruturas precárias. Em março de 2023, o festival de música Lollapalooza, realizado em São Paulo e organizado também pela T4F, recebeu, assim como em 2019, denúncias de trabalho análogo à escravidão após fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. Foram resgatados cinco trabalhadores que prestavam serviços informais para o festival. Em setembro do mesmo ano, relatos de superlotação e riscos de aglomeração marcaram a primeira edição do festival The Town, de Roberto Medina, realizada, assim como o Lollapalooza, no Autódromo de Interlagos.

Festival Lollapalooza no autódromo de Interlagos. Crédito: Instagram @lollapaloozabr

A normalização da precariedade na organização de grandes eventos de música faz parte de um descaso estrutural no Brasil, indica Adriana Amaral, professora da Universidade Paulista (Unip), pesquisadora do CNPq e coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Cultura Pop, Comunicação e Tecnologias (Cultpop) da Unip. Ou seja, existe uma questão financeira relacionada ao capitalismo, que prioriza o lucro, mas não se compromete com a qualidade da contratação e prestação de serviços, mesmo com a cobrança de altos valores dos ingressos.

Há também um discurso que naturaliza essa dinâmica, justificando que: “evento grande é assim mesmo, faz parte da experiência”. Esse cenário, segundo ela, faz com que, no país, as políticas que regulam o funcionamento de espaços de entretenimento atendam a demandas posteriores à ocorrência de catástrofes. É como se, ao invés de prevenir fatalidades, somente após uma situação gravíssima, como a da última sexta (17), os órgãos responsáveis pela fiscalização fossem mobilizados para garantir a total segurança do público presente. 

Faltou água, mas teve distribuição de Rivotril

O setor de eventos é responsável por aproximadamente 4% do PIB brasileiro, segundo dados da Associação Brasileira de Promotores de Eventos (Abrape). No primeiro semestre de 2023, o saldo do setor apresentou um crescimento de 42,3% em relação ao mesmo período do ano anterior, de acordo com o IBGE e o Ministério do Trabalho e da Previdência.

O alto preço dos ingressos e a presença massiva de patrocinadores marca a realização não só dos festivais de música – o bilhete para o Lollapalooza chegou a custar entre R$ 550 (meia-entrada) a R$ 2.420 (inteira Lounge Day) para um único dia de shows –, como também de apresentações solo de artistas internacionais, que vêm ao Brasil.

Um exemplo mais recente é a passagem do cantor canadense The Weeknd, em outubro de 2023, com a turnê After Hours Til Dawn, no mesmo estádio Engenhão, onde Taylor está se apresentando. Na ocasião, os valores variavam de R$175 (meia-entrada para cadeira superior) a R$ 860 (inteira pista premium). Para o show de Taylor Swift da atual turnê, os preços dos ingressos variaram entre R$ 75 (meia-entrada cadeira superior) e R$ 2.250 (pacote VIP), por pessoa. Mesmo antes do anúncio de sua vinda, a cantora já era uma atração aguardada pelo público brasileiro, por isso, as vendas foram disputadas para todos os setores dos estádios.

Fãs de Taylor Swift pagaram até R$ 2.250 por um ingresso. Crédito: Instagram @taylorswift

A precificação – isto é, o valor atribuído, estabelecido por critérios subjetivos – de ingressos para shows no Brasil é complexa. “Além da lógica produtiva, correspondente aos custos totais da produção do espetáculo (geralmente calculados em dólar), é notável como questões de legislações sobre direito a meia-entrada, acordos comerciais de vendas exclusivas e posições em relação ao palco influenciam na produção dos preços”, explica Victor Pires, professor da Universidade Federal do Alagoas (UFAL) e pesquisador vinculado ao Laboratório de Análise de Música e Audiovisual. 

Segundo Victor, cada vez mais a precificação do acesso aos shows é estabelecida por um valor especulado em cima de quanto importa a experiência no evento. Nesse contexto, “não existe concorrência quando o assunto é shows”, explica o pesquisador, e complementa: “se a T4F está vendendo os shows da Taylor Swift no Brasil, os fãs estão meio que na ‘mão’ da empresa. Afinal, quanto vale estar perto e ver uma artista pop no seu auge?”. Junto a isso, ele pontua que ainda não existe regulação para as taxas de serviço cobradas por plataformas online de vendas de ingresso. Desse modo, os preços acabam ainda mais caros. “Ficamos a ver um classismo cada vez maior no acesso ao show ao vivo”, conclui.

A The Eras Tour, da Taylor Swift, tem o banco C6 como o principal patrocinador no Brasil. Para a turnê, o vínculo possibilitou a pré-venda exclusiva de ingressos, acesso à crédito para compra de entradas através de investimentos financeiros dos fãs no C6 e sorteio de ingressos. Diferentemente da práxis de apresentações musicais em outros países, como nos EUA, em que a venda de ingressos para a pista é limitada a assentos com o lugar previamente marcado, o que regula o número de pessoas na plateia de maneira mais consistente e diminui o risco de superlotar; no Brasil, existe uma priorização da plateia em pé. Isso amplia a capacidade de espectadores no show, aumentando os lucros para as produtoras, mas também os riscos de aglomerações e tragédias, como a que ocorreu na última sexta.

 Uma das milhares de pessoas que enfrentaram a fila, no estádio Engenhão, para assistir à apresentação de Taylor Swift, a carioca Jéssica Lassance comprou ingresso para a cadeira superior leste. Durante o show, ela afirma que a temperatura estava realmente alta, dificultando até aproveitar a experiência musical. Mas, desde a entrada no local, o calor já fazia parte. Em entrevista à Marco Zero, ela conta que, onde estava, era possível comprar água, porém “depois de mais ou menos meia hora, a água vendida estava quente. E o copo de 400ml estava custando R$ 8. Dentro do estádio não vi quase ninguém vendendo água. Era você mesmo que tinha que ir até o lado de fora comprar.”

Relatos de fãs no X (ex-Twitter), como a influenciadora digital Bel Rodrigues, indicam que parte do público não conseguiu ficar dentro do estádio até o final do show. Ainda antes da primeira música, ela estava no setor da pista próxima à grade que separa o público do palco, conta que apresentou sintomas de desidratação, como tontura, visão embaçada e sensação de desmaio. Ao procurar mais de uma vez o posto médico, localizado no interior de onde acontecia o evento, ela relata que foi sugerido pela equipe de saúde o uso de uma dose de clonazepam sublingual – genérico do Rivotril, medicamento tarja preta e só pode ser comercializado com prescrição médica e recolhimento de receita. A indicação e medicação com o comprimido sedativo é relatada na rede X por mais pessoas que buscavam ajuda. O mais alarmante é que uma das possíveis reações adversas do remédio (segundo a bula) é a desidratação. Ou seja, ao invés de uma melhora no quadro de saúde, poderia resultar no agravamento.

Diante de fenômenos da cultura pop que mobilizam fãs do Brasil inteiro – e do mundo – a enfrentarem filas quilométricas, investirem afeto, tempo, dedicação e recursos financeiros na busca por chegar mais próximo e assistir um show de seu ídolo, essas são algumas das questões contemporâneas que fundamentam dinâmicas da vida social.  Sobre esses engajamentos por parte dos fãs, a pesquisadora Adriana Amaral reflete que fazem parte desses investimentos, questões ligadas à sociabilidade, construção de comunidade e senso de pertencimento a um determinado grupo e/ou identidades. No entanto, o que se tem visto, por parte da grande mídia, em relação às abordagens em torno de artistas pop são percepções com pouco aprofundamento ao abordar temas como esses, trazendo perspectivas desatualizadas para pensar questões de consumo e desses fenômenos culturais. Atribuindo, ainda, um lugar de menosprezo com grupos de fãs, principalmente os que são formados por mulheres cis e pela comunidade LGBQTIAP+.

“Acho que a visão da mídia mais tradicional, em geral, é muito redutora sobre o que é o fenômeno da cultura de fãs, ela não consegue compreender essas nuances. E não é que eu esteja dizendo que tudo é lindo e maravilhoso, porque tem problemas, tem questões estruturais dentro dos próprios grupos, mas acho que tem coisas contraditórias, vários elementos, e a imprensa tende a não enxergá-los. A gente sabe que a questão da cultura pop, desde que ela surgiu, tem essa coisa de ‘fútil’, de ‘raso’, é o mesmo argumento desde o século passado. As pessoas não param para pensar sobre esses argumentos, só que eu sempre brinco, digo assim: ‘Ok, a cultura pop é efêmera, mas ela é, ao mesmo tempo longeva, porque até hoje está aqui se discutindo, pode mudar o artista, pode mudar o gênero musical, mas ela perdura’. É uma das coisas que mais perdura em termos de fenômeno midiático. Acho que falta um pouco essa leitura mais culturalista”, afirma Amaral.

Mais regulação e fiscalização

A importância da regulação e de uma legislação que considere essa realidade como parte da cultura de nosso país, promovendo uma maior segurança e conforto ao público brasileiro, em diferentes eventos de música e de outras expressões artísticas, é imprescindível para que tragédias como a ocorrida na última sexta (17), no Rio de Janeiro, não voltem a se repetir. Além disso, a fiscalização e a garantia de providências cabíveis de recursos de segurança, considerando, inclusive, as mudanças climáticas que vêm se evidenciando, precisam ser efetivas. 

Em decorrência da onda de calor que teria causado a jovem estudante Ana Clara Benevides e fez com que mais de mil pessoas desmaiassem, o Ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino se pronunciou, nesse sábado (18), e editou portaria de cumprimento obrigatório e imediato, afirmando que a entrada em shows e outros espetáculos com garrafas de água, além da disponibilização gratuita da bebida, em casos de alta exposição ao calor, será permitida, convocando a empresa responsável pelo evento a oferecer um ambiente adequado ao público presente.

Reiterando que “água é um direito” universal, a deputada Erika Hilton (PSOL) prestou solidariedade à família e amigos de Ana Clara e também se pronunciou sobre o ocorrido. Para ela, a proibição da entrada no estádio com garrafas de água é “criminosa”, decidindo abrir uma denúncia contra a empresa T4F ao Ministério Público Federal.

Entre as últimas atualizações, páginas de fãs da Taylor Swift estão se mobilizando a partir de um abaixo-assinado digital pedindo a criação da Lei Ana Benevides: Água Gratuita em eventos. A petição online já conta mais de 300 mil assinaturas e o engajamento da comunidade de fãs brasileiros de outras artistas internacionais, como Olivia Rodrigo e Billie Eillish, e dos fãs da cantora sertaneja Ana Castela. Em Minas Gerais, a deputada estadual Andréia de Jesus (PT) já protocolou o projeto de lei na Assembleia Legislativa. Na cidade do Rio de Janeiro, a vereadora Thais Ferreira (PSOL) junto a deputada estadual Renata Souza (PSOL), anunciaram o desenvolvimento de um projeto de lei para implantação de tendas de hidratação no município.

*Jornalista, também é formada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco. Assina trabalhos na Revista Continente, Quatro Cinco Um, Revista O grito! e Jornal do Commercio.

**Jornalista, pesquisador e doutorando em Comunicação na UFPE

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