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Transporte público do Grande Recife expõe rodoviários e usuários à Covid-19 e ignora novos modelos de proteção

Maria Carolina Santos / 25/06/2020

Credito: Veetmano/Agência JC Mazella

Pontos de checagem de temperatura para passageiros. Motorista e cobrador protegidos por uma barreira, longe da entrada e saída de passageiros. Embarque pela porta traseira. Cadeiras separadas por cabines. No chão, marcações sugerindo o espaçamento entre os passageiros que seguem viagem em pé. Higienização manual ou automática após cada viagem. Fornecimento de máscaras para os passageiros.

Essas são algumas das recomendações de um estudo da Fundação Getúlio Vargas sobre a volta do transporte público durante a pandemia do coronavírus no Brasil. E que também sugere que o transporte público deve ser usado somente quando não há outra alternativa.

Assim como quase tudo relacionado à doença, ainda há muitas incertezas. Enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda distância mínima de 1 metro entre pessoas com máscaras, para minimizar a propagação, estudo chinês sugere que o transporte público não tem como ser seguro: analisando um surto que teve início no dia 22 de janeiro, se observou que passageiros sentados poderiam infectar outras pessoas a mais de 4,5 metros de distância. E que o vírus permaneceria no ar por até 30 minutos, no caso de espirro ou tosse de um infectado.

Como não dá para cidades grandes funcionarem sem ônibus ou metrô, é preciso fazer o máximo para atenuar os riscos. Em Berlim e Barcelona, por exemplo, não é permitido mais pagar passagens ou comprar cartões de embarque com dinheiro. Em Xangai, na China, a cada viagem os ônibus são higienizados por luzes ultravioletas. Passam de cinco a sete minutos parados para que o processo seja feito. Pequim tem agendamento eletrônico para que o usuário tenha acesso a certas plataformas do metrô.

Sabendo de tudo isso não dá para não se preocupar com o risco que passageiros, motoristas e cobradores estão passando ao entrar em ônibus cheios na Região Metropolitana do Recife.

A página do Facebook do Sindicato dos Rodoviários dá uma pequena mostra de como a situação é urgente e dramática: é uma sucessão de notas de luto dos que faleceram vítimas da Covid-19. O presidente do sindicato, Aldo Lima, calcula que 14 rodoviários já perderam a vida durante a pandemia.

O Governo de Pernambuco, que autorizou a reabertura de shoppings nesta semana, afirma que 70% da frota de ônibus está nas ruas do Grande Recife. O sindicato pede 100%, para que não haja lotação máxima. “Há um decreto que diz que os ônibus não podem circular com passageiros em pé, mas isso não está sendo cumprido”, diz o sindicalista.

O máximo que as empresas têm oferecido aos funcionários são máscaras de tecido e álcool em gel, e não as máscaras N95, usadas por profissionais de saúde e reivindicadas pelo Sindicato dos Rodoviários.

Além da pandemia, há uma batalha trabalhista sendo travada. Logo no começo da quarentena, em março, 14 empresas demitiram cerca de 3 mil funcionários. Com o sindicato colocando na Justiça e com a mediação do governo, cerca de 1,3 mil funcionários foram readmitidos. Algumas empresas ainda não pagaram as verbas rescisórias, enquanto a Justiça ainda não avaliou os casos. Uma dessas empresas é a Borborema, da família do Secretário de Desenvolvimento de Pernambuco, Bruno Schwambach. Nesse limbo, sem emprego e sem indenizações, o sindicato da categoria está tendo que distribuir cestas básicas para rodoviários.

Os que continuaram trabalhando e os que foram readmitidos enfrentam o medo da doença que tirou a vida de vários colegas. “Estão voltando para um trabalho de altíssimo risco. As empresas não se preocupam com os funcionários, muito menos com os passageiros”, diz Aldo Lima. Para uma carga horária de 44 horas semanais, motoristas recebem R$ 2.343 e cobradores, R$ 1.078, o menor salário do Brasil. Com a pandemia, as empresas tentaram diminuir o ticket alimentação de R$ 280, o que também está na Justiça.

Para o sindicalista, as recomendações da FGV e as ações que acontecem em outros países estão muito, muito longe da realidade do Grande Recife. “Para que as empresas tenham o lucro ideal, os ônibus têm que andar cheios. Não há fiscalização suficiente. E fica a cargo do motorista dizer que os passageiros não podem mais entrar. Fica uma situação de desconforto”, relata.

Ele diz que até algo simples, como o uso do álcool em gel, é complicado para motoristas que também têm a função de cobrador. “O motorista que tem que passar troco para o passageiro não tem tempo hábil para fazer a higienização”, alerta, lembrando que nos últimos anos várias linhas de ônibus deixaram de ter cobradores. “Nas fiscalizações que temos feito, encontramos várias linhas que não são autorizadas, trafegando sem cobrador”.

Vários protestos estão sendo feitos. No dia 16 de junho, em coletiva de imprensa, o secretário de Planejamento e Gestão Alexandre Rebêlo chegou até a atribuir a lotação dos ônibus a um protesto que havia sido feito pelos rodoviários naquele dia. Hoje, motoristas e cobradores foram de novo às ruas pedir 100% da frota operando e condições de trabalho.

Periferia é a mais afetada

As desigualdades sociais e de raça nos deslocamentos urbanos aumentam o risco de contágio em moradores das periferias e a redução da frota de ônibus tende a piorar as condições de contágio por conta das aglomerações e da lotação. Essas foram algumas das conclusões da Rede de Pesquisa Solidária, que reúne 40 especialistas de várias áreas, ao analisar a redução da frota de ônibus em algumas capitais brasileiras.

Recife não foi analisada, mas as imagens de ônibus deixando os terminais já lotados revelam que a realidade por aqui não deve ser tão diferente. “Os trabalhadores que moram nas periferias, além de se deslocarem por mais tempo, são mais dependentes do transporte público e estão sujeitos a taxas mais elevadas de lotação nos ônibus”, diz trecho da nota técnica emitida no dia 11 de junho.

Para evitar o contágio, o estudo propõe a utilização de veículos adicionais em trechos de maior lotação, juntamente com veículos expressos e diretos entre grandes terminais e polos de origem e destino de viagens. E também o reforço de linhas locais. Mais ônibus do que o normal – e não menos, como está sendo feito na Região Metropolitana do Recife.

Coordenador da Frente de Luta pelo Transporte Público, o advogado Pedro Josephi critica a insuficiência da frota, que hoje está em 70%, de acordo com o governo. “Estamos pressionando o governo para retirar as demandas dos terminais de passageiros integrados. Ou seja, permitir que os ônibus com linhas de maior demanda possam seguir direto dos bairros para o centro”, diz.

Seria uma forma de diminuir não apenas o tempo de deslocamento dos passageiros, mas também de evitar aglomerações nos terminais, que têm registrado longas filas. “Temos problemas estruturais. As plataformas dos terminais integrados não dão conta da demanda. Pode até ter ônibus, mas a plataforma para que as pessoas possam subir nos ônibus e irem sentadas é insuficiente. O metrô tem operado em horário reduzido, o que aumenta a demanda pelo transporte de ônibus. O Governo do Estado e o Grande Recife Consórcio de Transporte precisam garantir 100% da frota, se a gente quer que os passageiros andem sentados, minimizando o contágio”, diz.

A Frente de Luta Pelo Transporte Público cobra também que haja um monitoramento da lotação em tempo real feito pelo Simop (Sistema de Monitoramento de Operações), que ainda não está operando. “Se estivesse, facilitaria o controle de viagens por parte das empresas”, diz.

A entidade já denunciou ao Ministério Público de Pernambuco as irregularidades. “O MPPE instaurou um procedimento para que as empresas de ônibus sejam obrigadas a apresentar qual é o planejamento e as medidas adotadas de prevenção ao coronavírus e que isso seja informado regularmente ao MPPE”, diz Pedro Josephi. Paralelamente, a Frente de Luta Pelo Transporte Público tem pedido que passageiros enviem denúncias de lotação para as redes sociais da entidade, para embasar as denúncias ao MPPE.


Entrevista// Pesquisador da Faculdade Getúlio Vargas (FGV), Gregório Costa Luz de Souza falou com a Marco Zero, por e-mail, sobre o estudo.

Uma das principais recomendações para o transporte público durante a pandemia do coronavírus é de que haja espaço entre os passageiros. Mas o que se vê em muitas capitais, como no Recife, é a diminuição da frota de ônibus, já que as empresas alegam que há menos usuários. O que as empresas de ônibus precisam priorizar neste momento de crise?

Neste momento é importante que as empresas de transporte público priorizem a saúde dos passageiros e dos seus funcionários e forneça um nível de serviço adequado para evitar o contágio e propagação da COVID-19.

No entanto, a preocupação das empresas quanto aos impactos financeiros de prover uma oferta de serviço proporcionalmente superior a demanda também é válida. O modelo de remuneração dos serviços, na maioria das cidades brasileiras, se baseia apenas nas tarifas pagas pelos usuários. Por conta disso, a queda de demanda provocada pelas medidas de isolamento social afetou o equilíbrio econômico financeiro dos contratos de forma significativa. A situação é especialmente crítica para as empresas menores, que possuem pouca liquidez para sustentar os prejuízos por um período prolongado. Segundo a Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos (NTU), já existem empresas falindo pelo país e as perspectivas não são das melhores.

Manter ônibus em circulação com baixa demanda e uma frota que permita o distanciamento social é uma operação de alto custo. Qual o papel do poder público, j aá pressionado pelas demandas da saúde, nesse cenário?

A crise gerada pelo novo coronavírus configura um evento de força maior, e enseja em reequilíbrio da situação econômico financeira acordada em contrato entre operadores e poder público. Por se tratar de um serviço público e essencial, a falência das empresas de transporte prejudica não apenas a elas próprias, mas também os usuários do serviço e sociedade como um todo. Ademais, a continuidade dos serviços também é importante para servir como catalisador da retomada econômica quando a pandemia acabar. Neste sentido, é fundamental que haja uma resposta rápida da administração pública para garantir a liquidez e manutenção dos contratos das empresas de ônibus.

Essa resposta, no entanto, não está pronta e exige uma construção conjunta entre operadores e poder público. Os governos municipais foram os principais afetados financeiramente com a crise do COVID-19 e não são capazes de socorrem as empresas sozinhos neste momento. Portanto, é importante que o governo federal se posicione sobre a situação e ajude a construir a solução para este impasse. Uma alternativa seria o financiamento pelos bancos públicos.

Em países da Ásia e da Europa foram implementadas uma série de medidas para garantir a diminuição do risco de contágio no transporte público, como higienização por luzes ultravioleta e marcação da hora de embarque. A realidade brasileira às vezes parece muito distante disso. Como fazer para que as empresas se adaptem ao que as medidas sanitárias exigem? Serão necessários novos contratos?

Para que as empresas se adaptem às exigências das medidas sanitárias é necessária uma forte atuação da regulação, não apenas requerendo tais medidas mas também fiscalizando o seu cumprimento. O problema é que em muitas cidades brasileiras a regulação do transporte urbano é fraca, as entidades regulares muitas vezes inexistem ou possuem corpo técnico insuficiente e/ou pouco qualificado, o que dificulta o cumprimento das exigências. Junto das exigências feitas pelas entidades reguladoras, também é necessário uma sinalização do governo de que essas empresas serão ressarcidas por estes gastos extras, não previstos nos contratos.

Em relação a necessidade de novos contratos, não acredito que este seja o caminho. Primeiro, em função dos contratos já em vigor e do enorme custo de transação e; segundo, a introdução de novos contratos sem uma capacidade de enforcement pelos órgãos reguladores não mudaria este quadro.

No artigo “A incompletude dos contratos de ônibus em tempos de COVID-19: consequências e propostas” se afirma que não é plausível que os operadores assumam sozinhos os riscos econômicos da pandemia. Além da ajuda dos governos (prefeituras e estados), é possível prever um cenário de aumento de tarifas acima da média, em um futuro próximo?

O ideal é que não haja este aumento das tarifas. Os segmentos de renda mais baixo, além de serem os maiores utilizadores do transporte, são os mais afetados pela crise. As tarifas mais altas podem impedir que esses usuários utilizem o serviço, e fazer com que os demais usuários migrem para o transporte individual ou compartilhado. Essa queda no número de passageiros pagantes levaria à tarifas ainda mais altas para cobrir os custos do sistema e, consequentemente, à maior queda de demanda no futuro. Ou seja, esta não é uma solução sustentável.

Como mencionei, é importante que o governo se posicione e que a solução seja construída conjuntamente com os operadores. É preciso se pensar em novas formas de financiamento da operação, discussão que não é nova no setor, mas que ganha importância com essa crise. Caso a demanda continue abaixo dos padrões pré-pandemia no futuro, é necessário se pensar na reestruturação dos serviços

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com