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Foto: Unicap
O escritor moçambicano Mia Couto veio a Pernambuco este mês para duas palestras, uma no Recife (16) e outra em Vitória de Santo Antão (17). As vagas esgotaram em poucas horas. Na Universidade Católica de Pernambuco, o autor falou sobre o livro Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa, em razão da nova edição lançada pela Companhia das Letras. Em Vitória, discorreu sobre o tema “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? – O Continente Africano numa Perspectiva Literária” para um público de aproximadamente 250 pessoas.
Sem a oportunidade de ouvir pessoalmente o autor do romance Terra Sonâmbula, considerado um dos 10 melhores livros africanos do século XX, e do livro de contos Fio das Missangas, a reportagem da Marco Zero Conteúdo realizou uma entrevista por telefone na quinta-feira, dia 18. Mia foi sucinto. Escolheu um tom diplomático durante a conversa e evitou se comprometer com análises políticas, embora tenha assumido que a visita ao Brasil o ajudou a entender melhor a realidade atual do país, diante do avanço do conservadorismo.
O autor também se disse preocupado com a abertura para exploração da Amazônia por empresas estrangeiras, anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL). O avanço do desmatamento e outros impactos ambientais causados pelos países desenvolvidos, na opinião dele, são os grandes responsáveis pelos desequilíbrios que terminam em desastres naturais, a exemplo do ciclone Idai, que devastou seu país.
Ouvi uma entrevista recente em que você disse que os moçambicanos te abordam na rua e te enxergam como um mensageiro. Nesta sua visita ao Brasil, qual é a mensagem que você acha que os moçambicanos querem transmitir aos brasileiros?
Na verdade há várias mensagens, mesmo que seja uma ilusão que eu possa ser o portador. A primeira mensagem é de gratidão porque Moçambique deve muito ao Brasil. Digo em termos da cultura, pela produção cultural da música, da literatura brasileiras. Também acho que os moçambicanos querem transmitir um abraço aos brasileiros pelo sofrimento nas tragédias de Brumadinho, de Mariana, e agora no Rio de Janeiro.
Quais suas as impressões sobre Pernambuco e sobre o Brasil que ficaram nesta visita? Serviu, de alguma forma, para aprofundar seu entendimento sobre a realidade atual do país? Quais as suas percepções sobre o panorama político brasileiro?
É a quarta vez que eu venho ao Recife, gosto muito desse lugar que tem um sotaque e sabores particulares. É um povo muito caloroso, que recebe bem. Nesta visita fiquei mais consciente do que está acontecendo. Como estrangeiro não posso me intrometer muito, mas vejo as pessoas preocupadas e tristes.
A que você atribui essa tristeza das pessoas? Na sua percepção, estamos vivendo um momento de perdas de conquistas sociais no Brasil?
Sim. Acho que inclusive as pessoas talvez ainda estejam um pouco distraídas em relação ao que as autoridades estão dizendo e fazendo. Mas, do ponto de vista de conquistas sociais, culturais, ambientais, as notícias que chegam são preocupantes. É um momento grave.
Alguma notícia em especial te chamou atenção?
Por exemplo, o convite (do presidente Jair Bolsonaro) para que os recursos da Amazônia sejam explorados por empresas estrangeiras. Isso é uma coisa sobre a qual falo um pouco mais à vontade porque acho que proteger a Amazônia não é somente um dever dos brasileiros, mas do mundo inteiro.
Inclusive o desmatamento da Amazônia e outras questões que levam ao desequilíbrio ambiental também estão relacionadas com desastres naturais, a exemplo do ciclone Idai que atingiu Moçambique, Zimbábue e Malawi deixando milhares de mortos e impactando a vida de pelo menos 2,6 milhões de pessoas.
As questões ambientais são mundiais. Moçambique é muito vulnerável a questões climáticas e a ciclones porque temos uma costa de quase três mil quilômetros de extensão. Moçambique sempre foi vulnerável, mas, com as mudanças climáticas, a frequência e a intensidade desses desastres aumentaram. Nesse ponto subscrevo o que Eduardo Agualusa (escritor angolano) disse: a ajuda que os países os desenvolvidos dão quando ocorrem essas tragédias deveria ser encarada como uma indenização porque eles são os reais causadores de problemas como o efeito estufa. Não são os países pequenos, são os grandes que causam os maiores impactos.
O ciclone Idai inclusive continua causando tragédias em Moçambique. Depois mortes vieram as perdas agrícolas, os problemas financeiros, os surtos de doenças. Como você avalia a cobertura que a mídia tem feito sobre esses dramas, no Brasil e no mundo?
Dois dias depois do desastre, grandes cadeias televisivas já estavam com equipes em Moçambique. A tragédia foi matéria de destaque em vários veículos de comunicação mundiais. Mas percebi que no Brasil as notícias chegaram tarde e com relevo menor. Esperava que o Brasil desse mais atenção ao tema, até pela relação forte que existem entre os países.
A ajuda humanitária que chega do Brasil e de outros países estrangeiros tem sido suficiente?
Um desastre daquela escala – um das mais graves no Hemisfério Sul- não pode ser enfrentado pelo governo de Moçambique sozinho. Nem pela população do país e também do Zimbábue e de Malauí, que foram atingidos pelo ciclone. Mas a mobilização diante de um caso como o incêndio de Notre-Dame, onde em apenas em um dia se conseguiu arrecadar 450 milhões de dólares de doações, ajuda a medir os critérios da mobilização das pessoas. No caso de Notre-Dame, fico feliz pelas doações porque se trata de um patrimônio mundial. Porém, durante um mês inteiro, tudo que se conseguiu arrecadar para ajudar as vítimas do ciclone Idai, que deixou milhares de mortos, foram 88 milhões de dólares.
Você disse em entrevista recente que “o Brasil está de costas viradas para a África”. Essa é uma percepção sua baseada em ações recentes da política externa? Houve algum estremecimento depois da eleição do atual governo?
Na verdade ainda penso que é um pouco cedo para perceber se a condução da política externa vai mudar com o atual governo brasileiro ou se a África continuará sendo vista com a importância devida.
Estamos em um momento de muita tensão no Brasil, inclusive sob um risco constante de censura de veículos de comunicação e de artistas. Você percebeu isso? Se sentiu censurado (de forma explícita ou parcial) em algum momento da sua visita?
Ninguém me disse o que eu poderia falar ou não, mas sei que não devo me meter em assuntos da soberania brasileira. Fico preocupado, contudo, quando o governo brasileiro fala de apagar a memória da ditadura militar, que foi um momento de muita censura. É um momento que não pode ser apagado, a história não pode ser mutilada.
Você já disse que é visto como um mensageiro pelos moçambicanos, mas que não é essa sua principal motivação na escrita. Que você escreve por necessidade pessoal. Diante da ameaça de censura, do avanço do conservadorismo no Brasil e também no mundo, você acha que o papel do escritor e, dos artistas de modo geral, muda? A literatura é uma forma de resistência?
Obviamente os artistas têm que traduzir esse sentimento porque os governos conservadores, de extrema direita, atacam os apoios à cultura. Porque consideram artistas e jornalistas uma ameaça. Eu acho que tenho essa missão, não em relação ao Brasil, mas ao mundo e ao meu país. De duas maneiras, como cidadão e como escritor.
No livro O último voo do flamingo, uma equipe de estrangeiros chega na cidade e a primeira dama manda “chamar a cultura” pra se apresentar, mas fica a indignada quando dizem a ela que ninguém vai, porque não vai de graça. Essa situação de achar que os artistas populares têm que trabalhar de graça para “divulgarem seus saberes” também acontece aqui, onde os artistas, sobretudo os populares, são pouco valorizados. Estamos, inclusive, em um momento de desmonte de incentivos para produções culturais. Como você vê essa desvalorização dos artistas?
Há uma desvalorização essencial porque se considera que os que fazem cultura fazem algo quase inútil. Quando vejo músicos populares tocando na rua penso que essa gente que produz alegria e felicidade e deveria ser paga. O papel de um governo é subsidiar a cultura. Sem isso os livros, por exemplo, ficam inacessíveis, muito caros. Acontece que o acesso aos livros e à cultura não é interessante para muitos governos, e para quem só se interessa pelo lucro. Não é interessante que as pessoas leiam. Mas uma sociedade precisa ler, até sob o viés econômico, uma sociedade precisa ler e estar preparada culturalmente para crescer.
Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).