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Visibilidade trans: “Gerar e amamentar não faz de mim menos homem”, diz Hecthor

Maria Carolina Santos / 30/01/2019

Hechtor com a filha. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

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Em uma tarde de agosto do ano passado, após oito horas de espera por um ultrassom no Hospital das Clínicas, Hecthor Iago ouviu do técnico: “Parabéns! Você vai ser papai”. A gravidez já havia sido sugerida pela médica que o havia atendido durante aquele longo dia, mas isso não diminuiu o choque. “É uma menina!”, continuou o técnico. Ao ser descoberta, a gravidez já estava no sexto mês. Durante todo este tempo, Hecthor estava em terapia hormonal, recebendo a cada 21 dias injeções de testosterona. Era o primeiro homem trans, em plena transição, a descobrir uma gravidez em Pernambuco.

Há três anos sem menstruar por conta da hormonização, Hecthor não pensava em engravidar. Já estava perto de realizar a tão esperada mastectomia – faltavam apenas mais quatro pessoas na longa fila de espera por cirurgia no HC. Três meses antes havia ficado desconfiado e feito um teste de urina, que deu negativo. Assim, os vômitos no primeiro semestre, as pernas inchadas e o aumento da barriga haviam sido negligenciados como problemas relacionados à diabetes – doença que o acompanha de forma voraz desde a primeira infância.

O atendimento médico displicente que recebeu também contribuiu com a demora. Mais ou menos um mês antes da descoberta, ele havia procurado uma unidade de saúde em um município do Grande Recife. Diagnóstico: infecção bacteriana.

Homens trans lutam por reconhecimento e serviços de saúde

O antibiótico que o médico então prescreveu, claro, não afastou os sintomas. Só os piorou. Foi apenas quando foi para a consulta no Espaço Trans do Hospital das Clínicas que Hecthor recebeu a atenção que tanto necessitava. Lá, foi encaminhado para uma nefrologista (ele acreditava que era um problema nos rins), que logo desconfiou da gravidez.

No dia seguinte, já foi internado. Nos meses restantes da gravidez dividiu com quatro mulheres um quarto do HC. Lá, todas elas o tratavam pelo nome que escolheu, usando artigos e pronomes no masculino. Se sentiu acolhido pelas grávidas, mas sofreu transfobia de uma enfermeira. “Ela dizia que eu estava errado, que não tinha conhecido um homem de verdade”, lembra. Denunciada, a enfermeira não entrou mais no quarto de Hecthor.

Testosterona e gravidez

O médico endocrinologista Eric Trovão, do Espaço Trans do Hospital das Clínicas, explica que o uso de testosterona não impede a gravidez. “O uso regular inibe a ovulação, mas não é uma garantia de 100%. É muito importante que isso seja alertado aos homens trans. Quando há relação sexual com penetração é necessário que se adote um método de barreira, como a camisinha”, explica o médico.

Sem entrar no caso específico de Hecthor, ele afirma que a gravidez em homem trans não é algo comum, mas tampouco é rara. “A literatura médica está repleta de exemplos”, diz.

O único hormônio que os homens trans recebem na hormonização é a testosterona. As mudanças que ela causa no corpo variam muito de pessoa para pessoa. “Tanto é que em alguns casos os pelos crescem muito lentamente ou muito pouco. Geralmente a voz é uma das características que tem uma mudança mais rápida”, explica.

Por conta de problemas de saúde em outras áreas, Hecthor afirma que seu caso está sendo estudado pelos endocrinologistas do HC. Mesmo antes da gravidez, os efeitos da testosterona eram brandos no seu corpo. “Demorei a ter pelos e quando tive não eram muitos”, lembra Hecthor, que sentiu efeitos adversos do hormônio, como dores de cabeça. “O que os médicos acham que pode ter acontecido comigo é de que a testosterona não era absorvida completamente pelo meu corpo, que havia um bloqueio”, diz.

Era um dia de festa na casa da avó, em São Paulo. Na década de 1990, a cidade fria, as crianças brincavam na rua de moletom. Os pais de Hecthor trabalhavam muito. Ela, costureira. Ele, eletricista, faz-tudo. Muitos dias Hecthor ficava aos cuidados da irmã, mais velha. Para tentar de certa forma compensar a ausência, dona Helena, mãe de Hecthor, preparou um presente surpresa: dois vestidos, coloridos e enfeitados.

Ao colocar a roupa, ela notou que a criança não estava gostando. E foi logo de vestido para a rua e brincar. Voltou triste, aos prantos. A mãe correu para rua ver o que tinha acontecido: “Ele é bicha”, gritou um dos meninos da rua. Atordoada, dona Helena demorou para entender. “Como assim? Vocês brincam juntos na rua, mas ela é uma menina!”, retrucou. “É uma bicha”, reafirmou o menino, já em disparada.

Na ceia daquela noite, Hecthor não tocou em nada. Ao retirar o vestido do filho, dona Helena escutou uma frase que nunca esqueceu, e que obedeceu: “Nunca mais você vai me obrigar a usar uma roupa dessas”. Hecthor tinha então seis anos de idade.

Hoje, aos 28, Hecthor começou a transição hormonal há cinco, quando estava em um relacionamento sério com uma mulher.

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Mesmo desde pequeno se identificando como homem, a escolha de passar pela hormonização – que nem todos os homens trans escolhem ou precisam fazer – não foi fácil. Ao ver vídeos no YouTube de João Nery – um dos pioneiros do ativismo trans no Brasil, falecido no ano passado – ficou cada vez mais seguro em passar pelo processo. “João Nery sempre falava comigo pelas redes sociais. Até chamada de vídeo ele fez comigo, querendo saber como estava minha transição e se eu havia falado com minha noiva”, lembra Hecthor, com carinho.

A conversa não foi fácil. A então noiva pediu uma semana para pensar. Voltou disposta a continuar o relacionamento – que se estendeu por outros quatro anos.

A conversa com a mãe demorou mais para acontecer. “Ela me perguntou: ‘Você está preparado para enfrentar o preconceito que tem no mundo? Se você estiver, a gente vai caminhar junto, lado a lado’. Eu disse que estava e comecei então com a testosterona”, lembra. “Minha mãe foi a primeira pessoa que me viu de barba. Ela nunca me disse para eu não ser quem eu sou ”, conta.

O pai, evangélico, não aceita até hoje.

Parto de cesárea e amamentação

Hecthor estava solteiro na época da descoberta da gravidez. O ex-namorado, um homem gay, acompanhou a gravidez como amigo – e agora é também um pai presente na vida da pequena Isís. Presenciou o nascimento na sala do parto. “A preocupação no hospital era se eu iria tentar o parto normal e também sobre a amamentação”, lembra Hecthor.

“Parto normal é muito feminino. Mas se a minha natureza dissesse para eu tê-la por parto normal, isso não iria me fazer menos homem”, afirma.

O parto acabou sendo por cesárea. A amamentação também não se mostrou um obstáculo. Com três meses e meio, a bebê tem uma rotina de sono, pouco choro e muito leite. “Também não me sinto menos homem ao amamentar. Sou um homem que amamenta. Fico feliz de poder fazer isso por ela. É ótimo vê-la crescendo com saúde”.

Para o futuro, Hecthor pretende retomar os estudos e a hormonização. “Vou fazer outros exames para ver porque a testosterona não teve muitos efeitos em mim. Também quero tentar fazer a mastectomia”, conta. Outra pendência é trocar o nome oficialmente no cartório, e incluí-lo na certidão de nascimento da filha. “Quero fazer assim que puder. Tenho medo dos retrocessos que o governo Bolsonaro pode trazer”, diz.

Os planos de Hecthor para a pequena Isís são de que ela cresça sabendo que tem dois pais. “O mais importante é que ela vai ser criada com muito, muito amor. Sabendo que é aceita do jeitinho que ela é”.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org