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Ivo Herzog vê atuação criminosa do Judiciário e cobra pedido de desculpas das Forças Armadas pela ditadura de 64

Laércio Portela / 10/10/2018

Filho mais velho de Vladimir Herzog – jornalista torturado e assassinado pela ditadura militar nos porões do Doi-Codi do II Exército, em São Paulo, em 1975 -, Ivo Herzog, 52 anos, é um dos conselheiros do Instituto que leva o nome do pai. Ele esteve em Recife, no último final de semana, para participar de curso do projeto Usina de Valores, coordenado pelo Instituto Vladimir Herzog, e concedeu entrevista à Marco Zero Conteúdo na noite do sábado (6), poucas horas antes do início da votação do primeiro-turno das eleições.

Apesar de fazer críticas ao PT, Ivo declarou voto em Fernando Haddad. “Eu voto até no Chacrinha contra o Coiso. Eu voto no Haddad. Eu tenho muita admiração pelo Haddad. Não tenho problema nenhum em falar”. Sim, Ivo não cita o nome do candidato do PSL à Presidência da República, Jair Bolsonaro. Para ele, trata-se de Coiso, codinome pelo qual os internautas contrários à sua candidatura chamam o capitão reformado nas redes sociais.

Ivo classificou de “criminosa” a ação do juiz Sérgio Moro de divulgar a delação do ex-ministro Antônio Palocci a seis dias da eleição no primeiro turno. “Nos Estados Unidos, a Rússia interferiu na eleição americana? Aqui o Judiciário interferiu na eleição brasileira. Isso é criminoso, é desprezível. O nosso Judiciário, que era uma instituição que se preservava, acabou”.

No momento em que o candidato que lidera as pesquisas de intenção de voto para presidente defende abertamente a ditadura militar e a tortura, Ivo Herzog responsabiliza os ex-presidentes FHC, Lula e Dilma pelo que chama de “grito de desespero que a sociedade traz, de apostar no desconhecido”. Por terem optado por uma agenda de governabilidade e acomodações políticas. E questiona: por que nenhum deles resolveu a questão da investigação da morte do meu pai? Por que nenhum deles questionou publicamente a interpretação da lei da anistia do STF? Por que nenhum deles colocou as Forças Armadas para pedir perdão pelo que eles fizeram na ditadura?

Em julho deste ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pela morte de Vladimir Herzog. O tribunal considerou o Estado brasileiro responsável pela violação do direito à verdade e à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares de Herzog, classificando o assassinato do jornalista pela ditadura como crime de lesa-humanidade.

Questionado sobre a decisão, Bolsonaro fez pouco caso do assunto e voltou a levantar a hipótese, notoriamente inventada pelos torturadores, de suicídio. Na entrevista à Marco Zero, Ivo relata o recado que mandou para os seus conhecidos que votam no “Coiso”: “Tem amigos meus cogitando votar nele no segundo turno. Eu escrevi até um negócio: ‘Você é meu amigo? Conhece a minha história? Se, conhecendo a minha história, você cogita votar nesse cara, então você não é meu amigo. Então faça um favor para nós dois, vamos desfazer a amizade aqui”.

Você é conselheiro do Instituto Vladimir Herzog, que traz o nome do teu pai, e é uma instituição importante na promoção e defesa dos direitos humanos no Brasil. Como analisar o cenário político da reta final de uma eleição presidencial onde os valores mais básicos de convivência pacífica e respeito ao outro estão sendo colocados em xeque pelo Jair Bolsonaro, o candidato que lidera as pesquisas de intenção de votos?

O Coiso, o Coiso. O sentimento, se você quiser que eu resuma em uma palavra, é de muita tristeza. Eu fiquei prostrado essa semana (a última antes do primeiro turno), com vontade de largar tudo de repente. Mas você vê que, mais do que nunca, é hora de a gente trabalhar mais do que jamais trabalhou. Mas veja também que era previsível que isso viesse a acontecer.

Previsível?

A gente tem um modelo político que está falido há muito tempo e mesmo assim se continua a insistir nele. Eu estive com um ex-presidente, há uns quatro ou cinco anos atrás, e ele me falava que esse modelo político está falido. E que a responsabilidade era dos presidentes da República. Todos nós, ele me disse, presidentes e ex-presidentes deveríamos fazer uma mea culpa, que é a única maneira de colocar essa pauta com legitimidade na sociedade para promover uma mudança. Apesar de tudo o que tem acontecido, todas as investigações, petrolão, mensalão, Lava-jato, lava não sei o que, Ministério Público, essa coisa toda, a gente está chegando para essa eleição com o mesmo modelo. Os políticos que estão se elegendo são do mesmo modelo da velha política. Veja o caso de São Paulo, os três primeiros colocados (no primeiro turno: João Doria, Paulo Skaff e Márcio França) são três candidatos da direita. Não é nem centro-direita, é da direita. Para presidente você ainda tem opções, mas para o governo de São Paulo, não.

Quando você fala de velho modelo, está falando exatamente de que? Quais são os elementos desse velho modelo?

É um processo onde você não tem ruptura, onde você vai fazendo acomodações. Eu já trabalhei dentro do Governo do Estado e sei. Quando há uma eleição de um novo Executivo, os primeiro três ou quatro meses do governo é pra acomodar os aliados das coligações. A competência da pessoa é secundária. Então o governo não funciona nesses primeiros quatro meses. Aí os oito meses seguintes é para planejar tudo o que você vai fazer até acabar o governo. Segundo, terceiro e o quarto ano é o ano de entrega. Então, o governo, de maneira geral ele planeja mais ou menos em um ano, executa durante dois e entrega no quarto ano. Por que? Porque você tem esse modelo de coligação partidária.

Há um compromisso com esses aliados políticos de ocasião.

Hoje, o político está gastando mais tempo preocupado em falar coisas que não vão afastar votos do que falar coisas que lhe vão trazer votos em função do que ele acredita. Desses três candidatos ao Governo de São Paulo, os dois que estão em primeiro lugar (Doria e o Skaf) nas intenções de voto já anunciaram apoio ao Bolsonaro. Por que? Porque Bolsonaro está bem à frente em São Paulo. Doria diz que o pai dele foi exilado, foi preso durante a ditadura. Como é que ele pode pensar em apoiar o Coiso? Já não existem valores no mundo da política, o que existe é tentar viabilizar a eleição. E, quando eles são eleitos, trabalham para estar em evidência no último ano da gestão para garantir novo mandato. O político vai negociando com todo tipo de aliado para criar a tal da governabilidade.

Vira e mexe caímos no tema da governabilidade.

Esse tema da governabilidade é absolutamente antidemocrático. A governabilidade quem deveria dar é a democracia. As pessoas deveriam ser suficientes para dar a governabilidade e não os acordos que são feitos depois que o candidato é eleito. Eu sou engenheiro, então, eu estudo equação matemática e esse modelo não é sustentável, por uma razão muito bobinha, você lá atrás fez uma coligação, se elegeu, mas teve que juntar dez, chega na próxima eleição, aqueles dez você já tem, você tem que trazer mais. Você vai criando um processo de inchar, como um castelo de cartas. Uma hora, o castelo desmorona. O que a gente está vendo hoje é que está desmoronando.

Em São Paulo?

Como é que um governador de um estado com mais de 500 municípios, que na última eleição ganhou em todos os municípios, menos em um, pode ter uma candidatura tão fraca (em referência a Geraldo Alckmin)? É porque desmontou esse castelo de cartas. Ele não é sustentável. O que é que eu posso esperar desse Congresso?

Esse modelo afasta as pessoas da política.

Claro que afasta. A política não pode ser feita só na época da eleição. A política acontece todos os dias, aonde a grande celebração é o dia da eleição. Mas não é o que se faz no Brasil. Você está vendo os políticos aqui na rua, no mercado (da Boa Vista), agora, no dia da eleição, mas eles vão estar aqui na semana que vem? Quando é que eles voltam? Daqui a quatro anos. Mas a sociedade também é culpada disso. Ela é o eixo da política, eu sou político, você é político, todos somos políticos. Mas precisamos exercer a nossa política, exercer nossa cidadania. Exerceu nosso papel como cidadãos dessa sociedade. E a sociedade não vai mudar de cima pra baixo. Isso é uma coisa cultural, do brasileiro, que é muito complicada. No brasil a gente acha que alguém vai resolver nossos problemas. E que se não está certo a culpa é de quem está lá em cima. Então a gente fica de expectador do processo. A novela era divertida, agora, começou a ficar ruim. O que é que a gente pode fazer? Esperar a próxima novela?

Você falou do envelhecimento desse modelo político institucional, ao mesmo tempo, a gente vê uma efervescência do debate e da resistência política nas periferias, o projeto Usina de Valores mostrou muito isso. Mas parece que o sistema político tradicional não abre espaço para a manifestação desses novos movimentos, não é?

Sabe o que é a melhor coisa para uma agenda progressista? Um governo conservador. Por que? Porque gera o contraponto. Esse processo de alternância, ele é histórico. Nas décadas de 60 e de 70 você tem um processo de um movimento conservador global. As guerras, as ditaduras da América Latina. Por baixo disso tudo você tem um movimento cultural e intelectual maravilhoso, de onde vêm os livros que a gente estuda na faculdade hoje, os discos que a gente escuta hoje, não é? Aí quando a coisa virou e o pensamento progressista passou a ser a política do status quo, deixa de haver essa provocação e existe, infelizmente, uma acomodação.

Você acha que isso aconteceu no governo Lula, nos 14 anos dos governos do PT?

Com certeza. O pessoal não gosta, fica metendo o pau em Fernando Henrique, mas Fernando Henrique era um social democrata, centro, centro-esquerda. Eu vou repetir uma coisa que a minha mãe falou numa entrevista para a Folha de S.Paulo há um mês. Perguntaram em quem ela ia votar para presidente. Ela disse que era no Alckmin. Questionaram se ela se considerava uma pessoa de esquerda. E ela: “Sim, sou uma pessoa de esquerda e vou votar no Alckmin”. O valor de esquerda é o valor intrínseco do que a gente conversou lá atrás. O meio que você procura para que as coisas em que você acredita aconteça, é uma outra coisa, que as vezes transcende os seus valores. Aliás, não é uma questão de valores. Você acredita, por exemplo, que é preciso ter uma boa governabilidade, de repente o Alckmin é o melhor cara para trazer a governabilidade nesse momento… Eu não estou defendendo a candidatura de ninguém, pelo amor de Deus… Eu estou apenas brincando com essa coisa…

Você falava de FHC.

Então, eu acho que Fernando Henrique teve sua importância na história política do Brasil, que Lula teve sua importância para o Brasil. As duas coisas são importantes. Eu falo até uma coisa bastante… espero que não me entendam mal, mas é verdade. Eu fui contra o impeachment da Dilma, assinei manifesto contra o impeachment que foi publicado em jornais. Eu não achava que ela era uma boa presidenta, para mim ela cometeu uma série de erros, apesar de ter uma agenda dos direitos humanos, uma pauta nossa, mas tinha outros erros que eram muito complicados…

Na condução econômica?

Na economia, na montagem dos ministérios… Vários amigos meus defendiam o impeachment, e já estavam começando a surgir as questões lá da Petrobras, e eu dizia a eles que, se odiavam tanto o PT, a melhor coisa era deixar a Dilma ficar até o final. Porque a economia estava muito ruim e não iria melhorar em dois anos, então quem estivesse governando dali a dois anos, sendo do bem ou sendo do mal, estaria numa enrascada porque viria uma nova onda, um contraponto. Na hora que a Dilma sai do governo, da maneira que ela saiu, você cria uma narrativa muito forte de uma grande injustiça que foi feita, no que eu concordo. Fica uma memória no governo do PT, sei lá, dos 13 anos, oito, durante o governo do Lula, de uma gestão muito boa para as pessoas menos afortunadas. Então você criou essa narrativa. Nós estamos chegando na eleição e o país continua nessa situação, do ponto de vista econômico, ainda muito complicada. Eu estava certo. Outra coisa é que o modelo de representação social, através de partidos, é uma criação do final do século XIX, época de uma sociedade analógica. Hoje, a velocidade da comunicação é muito, muito mais rápida. Você vê que o candidato que está na frente nas pesquisas teve apenas 8 segundos de TV no primeiro turno.

A comunicação dele está sendo feita pelas redes sociais.

No espaço digital. Uma coisa que eu ainda não sei como vai se organizar para o futuro é que o Instituto Herzog e tantas outras entidades da sociedade civil, os coletivos, são hoje os que estão representando a democracia. A política organizada através dos partidos já não consegue ocupar esses espaço. Essa coisa de vontade do povo não existe mais na política tradicional. Acabou a eleição, não se ouve mais o povo. Agora, nos movimentos sociais, não. É diferente. Eles estão fazendo política constantemente. Sete dias por semana e não só na época da eleição.

Você acha que pode vir uma mudança daí? Porque alguns desses grupos e coletivos negam a disputa institucional e os partidos políticos também não abrem espaço para esses novos movimentos atuarem internamente. Como é que você acha que a gente consegue dar o salto desses grupos organizados, até as vezes desorganizadamente, pra macro política?

Eu não sei se vai ser um salto. Talvez seja uma caminhada. Mas uma coisa importante que surge são os mandatos coletivos. Que é uma coisa muito interessante e que eu vim a conhecer há pouco tempo. Eles devem se fortalecer na eleição neste ano. Devem ganhar uma influência maior e talvez sejam parte desse processo de transição. Eu vou dar o exemplo de São Paulo. A gente tem três senadores hoje e nenhum dos três senadores cumpriu integralmente os seus mandatos. Quem estava exercendo os mandatos eram os suplentes, que ninguém sabe quem são, ou seja, a suplência não representa nada. E as pessoas percebem isso. Cada vez mais a sociedade se afasta do processo. Uma das virtudes do Coiso aí é que ele vem com o discurso, deixando o julgamento de valores de lado, por mais difícil que isso seja, mas ele vem com uma agenda muito objetiva de ir contra o sistema que existe. Ele diz “eu sou independente, eu não tenho coligação”, ele não tem porque ele não conseguiu, mas agora ele está usando isso como uma virtude, e ele está correto em fazer isso. Isso é uma grande virtude que ele tem. Em tese, ele é independente. Se isso vai dar governabilidade ou não isso é uma outra história. Deus queira que não, mas enfim, dependendo do que acontecer…

Ele se coloca como um candidato anti-sistema…

Anti-sistema porque essa é a agenda que pega. Tem uma agenda das mulheres? Tem, e ela tem 20 anos. Tem uma agenda dos homoafetivos? Tem, e ela é importante também e há bastante tempo é conhecida. São coisas importantes e que vêm sendo trabalhadas pelas sociedade civil e são importantes, mas de qualquer maneira elas são agendas de interesse de grupos sociais. Agora, tem uma agenda que ela tem dimensão muito maior, que é uma agenda contra o sistema político que está colocado aí, que explora a falência desse sistema.

Um discurso que mobiliza mais? É isso que você está dizendo?

Isso, um discurso que mobiliza mais. O discurso do Trump é o de que político fala, fala, fala e não faz nada… Isso tá acontecendo agora um pouco, né? Eu tenho amigos meus com mestrado que dizem assim: “se não for o Coiso, a gente sabe no que vai dar, estamos cansados de saber, o Coiso é diferente, vamos ver o que vai dar…”

Como se fosse uma aposta? Um voto de aposta para presidente da República?

Sim. Uma aposta. Uma coisa meio do tipo: é desconhecido, mas é um desconhecido que é melhor do que o que está colocado aí… E eu acho que a responsabilidade desse grito de desespero que a sociedade traz, de apostar no desconhecido, é responsabilidade de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, porque eles nos trouxeram até aqui. E eles tiveram uma agenda de governabilidade. Vou dar um exemplo pessoal: por que nenhum deles resolveu a questão da investigação da morte do meu pai? Por que nenhum deles questionou publicamente a interpretação da lei da anistia do STF? Por que nenhum deles colocou as Forças Armadas para pedir perdão pelo que eles fizeram na ditadura? Todos os três viveram a ditadura, e foram contra a ditadura. Todos os três subiram no palanque das Diretas Já, juntos. Tinha uma coisa que unia a eles, que era a democracia, a liberdade… Essa coisa toda. E porque que eles não criaram essa ruptura com o passado? Porque eles acomodaram. Em nome de uma governabilidade? Eu acho que uma das coisas que deveria acontecer para começar a mudança, se não for tarde demais, seria um manifesto assinado por todos os três.

Que tipo de manifesto?

Um manifesto de mea culpa. Dizer: “Nos erramos. Nós acreditávamos que o mais importante era manter a governabilidade e que as coisas iam se encaminhar e as pessoas iam aceitar. Só que a política da governabilidade nos afastou da vontade do povo que nos elegeu. Nosso trabalho pela governabilidade nos afastou da democracia.

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Antes de começarmos a entrevista você comentava sobre a história mal contada do Brasil quando o assunto é escravidão, ditadura militar… A história esquecida.

Não é nem que foi esquecida… Deixa eu falar aqui de fake news. Fake news é um nome bonito para o que se faz desde sempre na história do Brasil, que é criar uma versão. Então, por exemplo, quando você estuda a história da escravidão e que, no dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou lá a Lei Áurea… Eu fui saber, 30 anos depois, que houve 200 anos de luta dos movimentos sociais para que se chegasse naquele dia. O fim da escravidão não foi dado à sociedade, foi conquistado pela sociedade. E é importante lembrarmos que o Brasil foi o último país do mundo a acabar com a escravidão. Aí a questão dos índios, como é que a gente aprende na escola? Que chegaram os padres e catequizaram os índios, os bandeirantes abriram o Brasil… Mas esses caras foram assassinos em massa. Do ponto de vista proporcional, talvez eles tenham feito coisas piores do que o nazismo fez durante a Segunda Guerra, mas eles são nomes de praças públicas, de rodovias, dessas coisas… Estamos falando de um processo de formação, de conhecimento. O Coiso fala que não tem que olhar para essas coisas, a gente tem que virar essa página da nossa história. E eu concordo, a gente tem que virar essa página da nossa história , mas antes a gente precisa escrevê-la. A gente não pode virar uma página em branco.

Quando você vê as declarações recentes de Bolsonaro… Primeiro, a menção a Brilhante Ulstra na sessão de impeachment de Dilma, na Câmara dos Deputados. E agora as declarações ofensivas à memória do seu pai, Vladimir Herzog, fazendo pouco do assassinato que aconteceu nos porões da ditadura. Como é ouvir isso de um candidato a presidente da República que lidera as pesquisas de intenção de voto?

Vou colocar a questão numa outra dimensão. Até para te colocar de uma forma pessoal. Eu ter pessoas que me conhecem, que são amigos meus e estão cogitando votar nele no segundo turno. Eu escrevi até um negócio no meu facebook, eu coloquei: “Você é meu amigo? Conhece a minha história? Se, conhecendo a minha história, você cogita votar nesse cara, então você não é meu amigo. Então faça um favor para nós dois, vamos desfazer a amizade aqui”.

É incompatível, não é?

É incompatível. É incompatível… É muito complicado. É a eleição do ódio, não é? Ou você vota em um candidato porque você odeia o outro ou você vota no outro porque odeia o outro. Não é uma eleição com propostas, com programas.

Como você vê a posição dos jornalões que, em editoriais, colocam as candidaturas de Bolsonaro e Haddad no mesmo patamar. Dois extremistas, duas candidaturas anti-democráticas? Precisamos lembrar que a grande mídia sempre jogou um papel importante nos momentos de crise e golpismo, como em 1954 e 1964.

É difícil falar, ainda mais a nível de editorial. Se você for olhar, a nível de editorial, você vai ver uma misturada de coisas. Eu conheço quem escreve os editoriais. Tem gente que tem absurdamente repulsa a um e tem gente que tem repulsa ao outro.

Mas quando os jornais colocam que você tem dois extremos disputando a eleição, estão dizendo que não existe possibilidade de democracia a partir daqui. Só que já houve uma experiência concreta do PT no poder, por mais de uma década, que respeitou a institucionalidade democrática e nunca defendeu a ditadura. O mesmo não se pode dizer do outro lado.

Em relação ao PT, em relação ao Haddad, foi criado uma percepção. Você sabe que a coisa mais importante não são os fatos, mas a percepção do consumidor. Da mesma maneira que o PT criou – não vou dizer nem que sim, nem que não – uma narrativa de que houve um golpe que tirou a Dilma, também foi criada uma narrativa de que o PT é uma quadrilha de bandidos, que roubou mais do que todo mundo roubou na vida, no Brasil todo. E, a partir dessa narrativa, colocar eles lá significaria colocar um bando de bandidos. É uma narrativa real. Essa narrativa está colocada. Tem muita gente que conheço e que, no domingo (do primeiro turno), não vai votar no PT por entender que aquilo lá é uma quadrilha e o chefe da quadrilha está no comando e é ele que vai comandar o governo. Essa narrativa é a que está sendo colocada para criar o ódio contra o PT. Não interessa se eu concordo ou se você concorda, ou não. Está colocada. Existe uma outra narrativa em relação ao Coiso. Mas a narrativa em relação ao Coiso, não é só uma narrativa, é fato. A partir das declarações que ele dá. Não é eu achar que, é o que ele está dizendo. Ele está dizendo que ele é corrupto. Ele diz que ele sonega imposto, ele diz que mulher é um bicho inferior, ele diz que meu pai se suicidou, ele diz que tem que ter mais escola militar… Então não é uma narrativa construída externamente. A narrativa dele é em cima do que ele diz. Então, par mim, não existe subjetividade quando eu olho para ele. É tudo bastante objetivo. Eu sei o que que eu estou endossando.

Há uma diferença clara.

A outra é uma narrativa em cima do PT, mas é uma narrativa tão forte que algumas pessoas tomam como verdade. E a verdade a gente só vai saber quando houver um distanciamento temporal, de 20 anos, 30 anos. É aí que a gente está lutando. Uma coisa concreta e uma coisa que vem sendo trabalhada há muito tempo, não só agora, no período da eleição. Eles vêm trabalhando essa narrativa contra o PT de forma contínua nos últimos quatro, cinco anos. Sem descanso.

Essa narrativa tem comprometido o equilíbrio democrático no Brasil?

Eu vejo muita gente dizendo que a gente vive numa sociedade democrática. Hoje, eu já não acho mais porque as instituições já não estão funcionando. O que o Moro (juiz Sérgio Moro) fez na semana passada (ao dar publicidade a parte da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci incriminando lideranças do PT) é criminoso. É criminoso. É o Judiciário interferindo no processo político.

Uma interferência indevida.

Nos Estados Unidos, a Rússia interferiu na eleição americana? Aqui o Judiciário interferiu na eleição brasileira. Isso é criminoso, é desprezível. O nosso Judiciário, que era uma instituição que se preservava, acabou. Ele é a porta do lado do Legislativo, que a gente tem tanta reservas. O nosso Judiciário acabou. E isso tudo vai até o STF. Essa palhaçada que teve essa semana, se pode entrevistar ou não pode entrevistar o Lula… O Carlinhos Cachoeira dá entrevista, o líder do PCC dá entrevista e o Lula não pode dar entrevista? Eu não estou dizendo que o Lula é inocente, eu estou falando sobre todos serem iguais, sobre o primeiro parágrafo da Constituição Brasileira, que diz que todos são iguais perante a lei. O nosso Judiciário esqueceu isso em função de uma agenda política. E não é política partidária, é política anti-partidária. Porque se criou essa narrativa… E veja que tudo isso teria sido evitado se não houvesse ocorrido o impeachment.

Esticaram a corda demais?

Você tem uma coisa muito interessante. Como um ato do impeachment é de tamanha gravidade, ele proporciona coisas muitos maiores, de impacto, em função da disruptura que ele gera na sociedade. A gente está com uma sociedade muito mais fragmentada hoje do que estava há três anos, antes do impeachment. Bagunçada, perdida, sem orientação, sem norte por conta do impeachment. Se não fosse assim, nós estaríamos resolvendo as questões no diálogo com a sociedade.

Como você vê a luta dos direitos humanos a partir de agora? Num cenário de comprometimento da democracia?

Os desafios vão ser ainda maiores. E o projeto Usina tem tudo a ver com isso aqui. A gente cria o Usina de Valores para fazer uma disputa de valores com alguns setores da sociedade. Um deles é a mídia, outro é o dos evangélicos. Então você vai fortalecer o processo de desconstrução do que é direitos humanos. Aquela coisa que a gente estava conseguindo acabar, a percepção que direitos humanos é direitos de bandidos. Lutamos muito, mas a gente vinha conseguindo mostrar que não era isso. Agora, esse discurso vai voltar com força total.

Junto com a criminalização dos movimentos sociais…

Na questão dos direitos humanos tem até coisas mais sutis. O pessoal que vota no Coiso não consegue ver que dentro dos direitos humanos estão o direito à saúde, o direito à moradia, a um julgamento justo, à livre opção religiosa, à livre opção afetiva. Então, ir contra os direitos humanos é ir contra essas coisas. E quando você traz uma arma, que é o discurso do Coiso, para resolver os problemas, é que você está tirando toda a possibilidade de diálogo. Nós somos animais, mas qual a diferença do ser humano para os outros tipos de animal? A sua capacidade de discernimento, sua capacidade de pensar e formular o pensamento. Os animais não têm isso. Ao invés de os eleitores do Coiso contra argumentarem, com um pensamento com arguição, eles vão para destruir, para machucar, eles vão usar a força para ganhar o debate. Porque o Coiso nos propõe que nós nos tornemos animais. Que a gente abandone a civilidade.

Tem muita gente dizendo que vai votar nulo no segundo-turno. Qual sua opinião sobre a anulação do voto?

O voto nulo tem dois sentidos. O voto nulo de protesto, que eu considero um voto importante. Mostra que você está protestando contra o sistema que está aí. E tem o voto nulo do desinteressado. Qualquer coisa tá boa, vou anular o meu voto. Esse eu acho terrível. Eu até falava recentemente, falava mesmo, é um discurso bastante pesado até… Gente dizendo: “não vou votar, vou anular”ou “vou pra praia”. Tudo bem. Você tem liberdade, faz o que você quiser, mas se amanhã, quando seu filho e sua filha for assaltado e morto, fique triste, chore, mas não vá protestar contra o governo, reclamar de segurança pública. Você não quis participar do processo que ia te dar empoderamento e condições para mudar isso daí. Sei que é uma fala pesada. Sei disso. Então é isso, pelo desinteresse, é isso. Assim, não reclame, você está anulando seu voto por desinteresse? Não fale de política até você se qualificar novamente daqui a quatro anos e exercer o seu dever de cidadão que é você dizer o que você acha melhor para a sociedade, essa sociedade da qual você faz parte. Mas esse é um assunto complicado. Nas últimas eleições presidenciais, tinha Aécio e tinha Dilma, eu não vou dizer em quem eu votei. Tinha momento que um estava na frente na apuração e tinha momento que era o outro. E o pessoal comemorava. Mas eu não comemorava. Eu não tinha grande expectativa do que vinha pela frente.

Não tinha expectativas positivas com nenhum dos dois?

Eu não estou comparando a Dilma com o Aécio. Eu estou comparando o sistema que vinha com a Dilma e com o Aécio. Eu não via uma mudança. Nenhum deles estava questionando os paradigmas colocados da política brasileira. Essa desilusão na eleição passada chegou. Você tinha a Dilma e o próprio Lula que, para criar a tal da governabilidade, deram as mãos a Paulo Maluf. Aí é demais. Se um dia eu estivesse num evento público e visse o Maluf, eu não o cumprimentaria. Eu acho que hoje em dia os políticos trabalham muito, muito forte, para perder os nossos votos, não para ganhar nossos votos.

Como você vai votar neste segundo-turno? Pode declarar seu voto?

Eu voto até no Chacrinha contra o Coiso. Eu voto no Haddad. Eu tenho muita admiração pelo Haddad. Não tenho problema nenhum em falar. Posso até falar mais. Eu tenho críticas históricas ao PT. Eles não apoiaram a eleição do Trancredo Neves. Quando estavam Fernando Henrique e o Jânio no segundo turno da eleição em São Paulo (1985), eles disseram que iam se abster, aí ganhou o Jânio. E aí a (Luíza) Erundina (candidata a prefeita de São Paulo em 1988) é eleita com o voto útil. A Marta (Suplicy) é eleita (em 2000 também para a Prefeitura paulistana) com o voto útil. O PT tem uma característica. Depois de toda essa meleca, o PT ainda é o partido que você consegue identificar o que ele é, enquanto que os outros partidos viraram uma maçaroca, viraram milk-shake de todos os sabores. Mas tem um lado ruim. Na política, o ótimo é inimigo do bom. Como na própria vida. E muitas vezes, por essa intransigência, ele ficou com o péssimo, não ficou com o bom, ficou com o péssimo. É uma questão que eu tenho em relação ao PT.

Mas seu voto vai pro Haddad.

Eu votei no Lula contra o (Fernando) Collor em 1989. Eu vou votar no Haddad. Conheço o Haddad, foi prefeito de São Paulo, o nosso programa Despertar, do Instituto Vladimir Herzog, começou na gestão dele. Acho ele um cara extremamente preparado, estudioso, sério. Tem valores consolidados e que ele preserva. Se, depois de eleito, ele vai conseguir montar um bom governo ou não, é uma outra história. Não tenho problema nenhum em votar nele agora.

Qual a importância da decisão da OEA sobre o assassinato do seu pai?

A decisão da OEA é super importante. É a primeira vez que o Brasil é condenado por crimes de lesa humanidade, que são crimes imprescritíveis e que têm que ir a julgamento e não são objeto de nenhuma anistia. Então esse tema voltou forte. O Ministério Público Federal já abriu investigações sobre a morte do meu pai. Tá colhendo depoimentos. Esse é um dos aspectos, tem a questão da justiça, mas tem também a questão de o Estado pedir desculpa. Eu acho que o maior desafio da sentença é o Estado, com a presença das Forças Armadas, reconhecerem que o que eles fizeram na ditadura estava errado e foi ruim. Eu como brasileiro quero ter orgulho do meu país e de todas as suas instituições. Eu demorei muito tempo para pensar que poderia ser uma pessoa que tivesse orgulho das Forças Armadas brasileiras. Pensava: “Mataram meu pai. Não quero saber deles. Vão pro inferno”. Hoje, não. Eu quero ter orgulho dessas Forças Armadas. Forças Armadas que compartilhem uma série de valores que eu tenho, que são valores universais como respeito, democracia… Isso passa pelo reconhecimento de que, o que eles fizeram naquele período, eles não vão fazer novamente. Ah, tem gente que diz que naquela época existia um conflito, o mundo era daquele jeito… mas tá errado. Eu queria ouvir isso. E não saber que todo ano os militares reunidos festejam a revolução de 1964. Isso é uma fake news que só existe na cabeça deles. Enquanto eles pensarem assim eu não posso ter orgulho das Forças Armadas. E eu gostaria de ter. Se eu fosse presidente do Brasil, chamaria os três comandantes e diria que o Brasil precisa ter Forças Armadas do tamanho do país. Diria: “Vamos botar dinheiro, vocês estão sucateados. Mas, espera um pouco, antes temos que resolver um problema do passado”.

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República