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Paula (e) e Dilla (d) resolveram marcar o casamento quando as pesquisas começaram a mostrar Bolsonaro na liderança (Foto: Inês Campelo/Marco Zero)
O presidente eleito defende que filho gay é falta de porrada e já prometeu “colocar um ponto final em todos os ativismos” no país onde a LGBTQfobia mata pelo menos uma pessoa a cada 19 horas. Diante do radicalismo de Jair Bolsonaro (PSL), muitos casais homoafetivos correm para formalizar o casamento em cartório, seja para garantir direitos e privilégios, por planos de sair do Brasil ou pela atitude política que esse passo representa no contexto de ódio e repressão que começou a ganhar corpo ainda durante a campanha do candidato de postura fascista.
A legislação brasileira ainda é atrasada, a população LGBTQ não tem direitos assegurados pela constituição, o que existe é a jurisprudência através de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – saiba mais no final da matéria. Por ser uma questão que ainda incomoda profundamente os setores mais conservadores, que ajudaram a eleger o militar da reserva, o receio é que, na prática, haja uma pressão para que o Congresso coloque em votação Projetos de Leis que sejam um retrocesso nesse campo.
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Nos últimos dias, a consulta pública no site do Senado sobre vetar ou não o casamento homoafetivo passou a contabilizar milhares de “não”. A pergunta é se o cidadão brasileira aprova o Projeto de Decreto Legislativo nº 106 de 2013, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES), que pretende “sustar os efeitos da Resolução nº 175, de 2013, do CNJ, que dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo”. O placar, até o fechamento desta matéria, estava em quase 410 mil “não” contra menos de 27 mil “sim”, revelando o clima de mobilização entre os LGBT.
Em Pernambuco, a Defensoria Pública deve ter dois dias bem bastante movimentados: a instituição irá promover nos dias 7 e 8 de novembro um mutirão para encaminhar e acelerar o casamento civil de casais LGBT. Os interessados devem procurar o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria, na rua do Imperador, 307, das 13h às 17h, com RG, CPF e comprovante de residência (ao menos um dos cônjugues deve ser comprovar residência em Recife).
A iniciativa soa como uma resposta às palavras de Maria Berenice Dias, desembargadora aposentada e presidenta da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados (OAB) do Brasil chegou a recomendar esta semana que casais se antecipem para preservar direitos garantidos “à pensão, previdência e partilha de bens”.
“Diante do cenário sombrio, numa sociedade que está se mostrando cada vez mais conservadora e em que as pessoas brigam para que os outros não tenham os mesmos direitos, nos vimos obrigados a correr para formalizar o casamento para evitar um possível cenário em que tenhamos nossos direitos dificultados”, conta Douglas Deó, 34 anos, num relacionamento há quase uma década com Jairo Francisco, 36 anos.
Eles já têm declaração de união estável desde 2012. O casamento estava nos planos, mas não era urgência. Porém, diante do quadro e da facilidade para reverter a união em casamento (é basicamente uma conversão de documentos), resolveram se resguardar por garantias legais.
Em uma entrevista à revista Playboy em 2011, Bolsonaro chegou a declarar que “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”.
“Muita gente saiu do armário do ódio”, avalia Maria Cireno, 29 anos, que só pretendia casar formalmente com Maria Eduarda Melo, 22 anos, quando elas estivessem com dinheiro sobrando, até para ser possível comemorar com uma festa. Mas, juntas há dois anos e já dividindo casa, começaram a ficar com medo e, logo após a eleição de domingo (28), resolveu antecipar a burocracia. Ter um filho estava nos planos para 2019, mas agora elas estão com medo e planejam sair do país para concretizar isso.
“O sentimento é de frustração, porque estávamos planejando inclusive abrir um novo negócio e agora estamos avaliando abandonar. É um sentimento de que temos que tentar reconstruir nossa vida em outro lugar”, desabafa Maria. Atualmente elas, que já foram vítimas de ataques verbais na rua, trabalham juntas num restaurante no Recife e passaram a ver “a comemoração do casamento com um misto de sentimento”.
Quem trabalha com o movimento LGBT espera que haja minimamente um discernimento, “afinal o governo que chega está se propondo a unificar e pacificar o país”, como lembra Maria Goretti Soares Mendes, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da seccional pernambucana da OAB. “Esperamos que haja reflexão para que não haja retrocesso de direitos e esse tipo de perseguição a uma população já tão sofrida e vulnerabilizada”, torce.
Dilla Machado e Paula Arraes, ambas com 31 anos, estão juntas há três e morando juntas há um ano e meio. Elas tinham o plano de concretizar o casamento civil somente em 2019, mas resolveram antecipar ainda antes do primeiro turno, com Bolsonaro liderando as pesquisas e os discursos de ódio se espalhando. Por ser servidora pública, Dilla conta com alguns privilégios, como pensão em caso de morte, e que podem beneficiar a futura esposa. Mas, para elas, o casamento neste momento é também um ato político: “Queremos ser uma estatística boa, não uma estatística de morte”.
“O que me assusta mais hoje é a ‘pequena’ violência cotidiana, do homem armado na rua, do homofóbico na parada de ônibus, das pessoas que estão se inflando e se legitimando com o discurso de Bolsonaro. Porque a polícia, sabemos, sempre foi violenta”, conta Paula, lembrando o caso em que foram verbalmente agredidas num bar no Rio de Janeiro esse ano, num contexto de tensão por conta da intervenção militar, “só por estarem ali existindo”. Outro receio são os Projetos de Lei que podem ser colocado em pauta no Congresso contra minorias e ativistas.
A ideia de formalizar a união em cartório começou a tomar forma quando elas pegaram um Uber com uma motorista que relatou a missão para conseguir visitar a esposa doente na UTI porque a família não a deixava entrar nem tomar qualquer decisão. Assim que a companheira melhorou, elas deram entrada no cartório. Dilla e Paula estão estudando a possibilidade de voltar a morar no interior e, apesar de não terem planos de sair do país, estão se organizando para atualizar o passaporte.
Legislação
Casamentos homoafetivos ainda não são um direito garantido por lei no Brasil, isto é, ainda não estão na constituição. O que existem é apenas a jurisprudência, através de resolução do Supremo Tribunal Federal (STF) e norma do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelecem a celebração de casamento civil e a conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. O direito à formalização da união é garantido pelo STF desde 2011.
O Projeto de Lei do Senado nº 612, de 2011, de autoria de Marta Suplicy (MDB-SP), propõe que o casamento homoafetivo seja assegurado pela legislação brasileira. Atualmente, só é reconhecida como entidade familiar “a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. O projeto altera os artigos 1.723 e 1.726 do Código Civil para permitir o reconhecimento legal “entre duas pessoas”, sem fazer distinção de sexo.
A proposta também garante que a união “poderá converter-se em casamento, mediante requerimento dos companheiros ao oficial do Registro Civil, no qual declarem que não têm impedimentos para casar e indiquem o regime de bens que passam a adotar, dispensada a celebração”. Além disso, vários outros artigos serão alterados, com a retirada dos termos “homem” ou “marido” e “mulher”, para a adequação da proposta.
O projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado somente no ano passado. Em dezembro, a votação do projeto foi adiada no Plenário do Senado por falta de quórum. Ele chegou a ser colocado em votação, mas o senador Magno Malta, contrário à matéria, pediu verificação de quórum, que não atingiu o mínimo necessário de 41 senadores presentes.
O primeiro passo para formalizar o casamento é ir a um cartório da sua região para dar entrada no pedido, levando duas testemunhas, com os respectivos RGs, certidão de nascimento das noivas ou dos noivos e comprovante de residência. É preciso pagar duas taxas – de casamento e de proclamas -, num total de cerca de R$ 260. Daí a data do casamento é marcado no fórum. As meninas foram ao cartório em setembro e conseguiram vaga no Fórum Joana Bezerra para novembro.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com