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Foto: Divulgação Clacso
por Aquiles Lopes (de Buenos Aires)
A defesa das universidades públicas e de qualidade esteve no centro dos debates no primeiro dia do Congresso Latino Americano de Ciências Sociais (Clacso), que está sendo realizado em Buenos Aires. Os grandes fóruns iniciais reuniram mais de 30 mil pessoas na sede Club Ferro Carril Oeste, tradicional time de futebol do subúrbio da capital. Para que as pessoas pudessem acompanhar os debates quatro telões foram montados ocupando duas quadras e também a área externa, tamanho o público interessado.
Pesquisadores, escritores, cineastas, pensadores e estudantes da América Latina e da África participam do evento, que, até sexta-feira, acontece simultaneamente em diferentes pontos da cidade, pois a quantidade de painelistas inscritos ultrapassa 7 mil, entre eles nomes como o prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel.
Com milhares de participantes oriundos do meio acadêmico do continente, a educação é um dos assuntos mais discutidos nesta Clacso. A crise educacional na Colômbia, onde professores, estudantes e alunos estão em greve contra os cortes no orçamento da educação, foi a grande referência para o que muitos educadores trataram como o projeto de desmonte do pensamento crítico.
“Não imaginem que o que está acontecendo é algo isolado ou obra do acaso. Faz parte de um plano internacional de ajustes implantado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), com escolas à distância e ensino cada vez mais técnico. Temas como Filosofia, História, Artes e Sociologia vão sendo retirados da vida dos estudantes”, afirmou Sonia Alesso, secretária geral dos trabalhadores em Educação na Argentina e representante da América Latina no Comitê Mundial da Educação.
No caso colombiano, o subfaturamento nas receitas para as universidades chega a 4,5 trilhões de pesos, enquanto o presidente Ivan Duque anunciou um novo investimento de aproximadamente 1 trilhão. Sonia também expressou preocupação com o projeto de educação anunciado pelo futuro governo brasileiro, que, a exemplo da Colômbia, propõe a redução de investimentos nas universidades públicas. “A educação não muda o mundo, mas muda os sujeitos que vão mudar o mundo”, disse ela citando Paulo Freire.
Um dos mais reconhecidos pensadores mundiais da atualidade, o catedrático da Universidade de Coimbra Boaventura Sousa Santos também fez referências a Paulo Freire e ao modelo defendido pelo próximo governo brasileiro. “A escola sem partido acaba de elencar os livros que devem ser proibidos: Karl Marx, José Saramago, Paulo Freire e Milton Santos. Eu estou muito triste porque ainda não tenho esse privilégio”, ironizou. Para Boaventura, uma sociedade não pode ser formada por tecnocratas, que aprendem apenas técnicas de trabalho e não têm capacidade de pensar.
O português, no entanto, fez críticas à academia, que precisa escutar mais os ensinamentos populares, incluindo os saberes acumulados por povos indígenas, negros e outras minorias que não estão catalogados da forma tradicional, consagrada pelo modelo europeu de ensino. Novamente o Brasil serviu como exemplo: “O pensamento acadêmico não é o único capaz de explicar o que acontece no mundo. Claro que a ciência moderna pode ajudar. Estou envolvido numa luta enorme no Brasil neste momento, contra os agrotóxicos no país. Temos aí o conhecimento dos químicos, que mostra os males das substâncias, mas também dos camponeses do interior do Ceará, que estão morrendo de câncer e vendo a terra ser degradada”, disse.
A Clacso reúne pessoas e lideranças dos campos da esquerda e centro-esquerda, incluindo muitos ativistas dos movimentos sociais. Portanto, o debate político eleitoral está presente em todos os lugares, das rodas de café aos painéis e conferências. Além do resultado das eleições no Brasil, extremamente comentadas, há a expectativa para a disputa eleitoral na Argentina, que acontece em outubro de 2019.
Com inflação alta, aumento nos impostos e desemprego crescente, a aprovação do atual presidente Maurício Macri, segundo pesquisa da Universidade de San Andres realizada em julho, é de 37%, enquanto 76% dos argentinos afirmam estarem insatisfeitos com a maneira de governar do presidente.
Neste cenário a figura de Cristina Kirchner ressurge com uma enorme força e coube à ex-presidente a principal fala na abertura da Clacso. “Este governo agravou os problemas, privatizando empresas, dolarizando tarifas, impostos e combustíveis e ficamos mais dependentes do FMI. Temos que quebrar as diferenças entre esquerda e direita e pensar numa nova categoria de frente social, que agrupe todos os que foram agredidos por esta gestão”, afirmou Cristina diante de uma multidão que, para ouvi-la falar, se amontoou pelas ruas ao redor do estádio do Ferro Carril.
A ausência mais sentida foi a do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, que deveria ter conduzido um painel na terça-feira (20). Sem detalhar as razões, Mujica enviou um comunicado à organização da Clacso informando não poder comparecer “por problemas pessoais”.
Num dos momentos mais marcantes, pesquisadores e estudantes negros subiram ao palco para celebrar o Dia da Consciência Negra comemorado no Brasil em homenagem a Zumbi dos Palmares. A imagem de Marielle Franco foi projetada nos telões e aplaudida de pé pela plateia. Aliás, há uma faixa “Marielle Vive” na entrada do clube, na movimentada avenida Avellaneda.
Entre os atores políticos brasileiros, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), o ex-candidato à presidência Guilherme Boulos (PSol) e a ex-candidata à vice-presidência Manuela D´Ávila (PCdoB) foram os principais nomes. Como esperado, os três fizeram duras críticas ao presidente eleito, ao impeachment de 2016 e ao processo de politização do Judiciário.
Apesar do clima muitas vezes emotivo e dos gritos de Lula Livre dentro do clube, coube a Boaventura fazer um alerta aos militantes. “O problema que surge neste século é que nem revolução, nem reforma democrática estão na agenda. Como diria Gramsci, estamos mantendo a posição e não o movimento. Esta não é uma questão intelectual, mas política. A primeira medida quando se chega ao poder deve ser transformar o poder. Não se pode transformar o mundo sem transformar o poder”, ponderou.
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