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Batalha Naval

Luiz Carlos Pinto / 05/10/2015

0e6e94908cc2f582e3dffb6f9da396f3 (1)Tem sido comum afirmar que a Vila Naval, entre Olinda e Recife, é o novo Estelita. Há razões para se associar as duas disputas: por um lado, ambas são áreas nobres à beira da lâmina d’água, localizadas no centro da cidade, objetos de desejo do setor imobiliário, com boa localização e sem uso imediato. Por outro lado, são regiões cujas intervenções podem alterar a qualidade de vida (positiva ou negativamente) de uma grande massa da população da capital pernambucana, pois ambas possuem um alto potencial urbanístico. Mesmo sem um Plano Urbanístico consolidado para a área, o Comando do 3o. Distrito Naval admite que já possui projetos arquitetônicos desenvolvidos por escritórios civis da cidade: estão previstos as seguintes edificações para nova Vila Naval do Recife: dois prédios com 228 apartamentos para Praças e um prédio com 36 apartamentos para Oficiais.

O que mais tem preocupado urbanistas e movimentos sociais – entre eles, representantes dos moradores do bairro de Santo Amaro –, entretanto, é um conjunto de três elementos: primeiro, a falta de participação popular na elaboração da minuta do Plano Urbanístico específico para a área. É certo que o Plano não está pronto, mas foi apresentado, em novembro de 2014 sem que tivesse sido discutido com representantes da comunidade que será mais imediatamente atingida: os moradores do bairro de Santo Amaro.

“Esse fator é preocupante, dado o histórico recente de falta de diálogo em relação à questão urbana que vem marcando a gestão atual da administração municipal”, afirma Rud Rafael, assistente social. Talvez não seja por acaso a inspiração que animou a elaboração da minuta do Plano Urbanístico para a área: o planejamento que atende a um modelo de cidade baseado no deslocamento automobilístico – com a consequente exclusão da população de mais baixo poder aquisitivo –, e a desconsideração do patrimônio histórico do entorno e da própria vila. Quando apresentado, a minuta do Plano também não tinha estudos de impacto do adensamento e valorização imobiliária; levantamento sobre o patrimônio preservável e sobre visibilidade do bem nem simulações e estudos com planos de massa.

Além disso, o referencial que se tem de proteção para o patrimônio histórico na área, o PPSH, de 1979, definia um gabarito de dois andares para Vila Naval. Mas a minuta do Plano apresentado pela prefeitura prevê que excepcionalmente se poderão construir edifícios com até 75 metros de altura.

“No âmbito de toda a discussão sobre a área que envolve a Vila e Santo Amaro pouco ou nada se falou acerca do projeto de alargamento da Cruz Cabugá, da lavra da Secretaria das Cidades e da CTTU. Este projeto manda pra estratosfera metade das quadras lindeiras da Vila”, afirma o arquiteto Noé do Rêgo Barros. “Não faz urbanismo, apenas sistema viário. Ignora o papel estruturador da via envolvendo toda complexidade e amplitude de modais e usuários, gente em suma”, complementa.

Um segundo aspecto preocupante é o desvio da finalidade da legislação concernente e que torna o benefício público não muito certo: o Plano Diretor da cidade prevê, via artigos 193 e 194, que a Vila Naval é uma das áreas que pode receber um plano urbanístico específico. Acontece que a Vila Naval integra uma área maior, que inclui ainda a ZEIS Santo Amaro e Tacaruna e o Plano deve contemplar essas áreas também.

Entretanto, a minuta do Plano, o único documento que indica oficialmente, até agora, a visão da atual administração para a área, só considera a Vila Naval – um filé, vamos dizer assim. O objetivo da legislação era garantir a integração entre essas áreas – coisa que a minuta do projeto até agora não o faz. Além de garantir essa integração, a legislação também procura criar compensações que beneficiem a área mais carente e que permita o equilíbrio ambiental, caso haja adensamento de construções na frente d’água – como parece ser inevitável nesse caso.

“O Plano Diretor diz que o projeto para a Vila Naval deve ser feito incluindo a ZEIS Santo Amaro e a área da Fábrica da Tacaruna. Certamente a intenção era evitar a segregação e a gentrificação e permitir que as contrapartidas de investimentos privados na área pudessem ser aplicadas nas áreas mais carentes do bairro. Do jeito que está sendo feito, a Prefeitura abre a área mais valorizada para o mercado imobiliário, sem garantir que, como determina o Estatuto da Cidade, o lucro adicional garantido pela nova lei seja em parte revertido para projetos sociais e ambientais. Além disso, a Lei de Uso do Solo diz que a área é de proteção do patrimônio histórico, com a finalidade de preservar a visibilidade e ambiência do Hospital Naval”, afirma o integrante do grupo Direitos Urbanos, Leonardo Cysneiros.

“A minuta claramente atropela essa determinação ao focar somente no adensamento e em liberar a área para o mercado imobiliário, garantindo inclusive um gabarito de mais de vinte andares completamente incompatível com a preservação da ambiência do patrimônio histórico”, complementa.  Antes de ser uma vila naval, no terreno existia a vila de operários da fábrica de tecidos Tacaruna, localizada lá perto. A vila era testemunho de uma época em que grandes indústrias interviam diretamente na conformação do território e na organização do espaço urbano.

“As vilas militares, de foram geral, são bastante representativas em termos urbanísticos e aquela é a única do Recife que se encontra em área de preservação”, afirma Rodrigo Cantarelli, arquiteto. “A Vila Naval possui edifícios neocoloniais e no estilo missões que são representativos e deveriam ser preservados, assim como o próprio parcelamento do solo e a estrutura urbana são importantes, elementos que foram desprezados nesse plano apresentado pela prefeitura, que, a meu ver, quis unicamente atender demandas de um mercado imobiliário, sem se preocupar com a preservação do lugar”, complementa Cantarelli.

Por fim, outra fonte de preocupações e incertezas reside na negociação com a Marinha, mais especificamente com o Comando do 3o. Distrito Naval, sediado em Alagoas, a quem as operações da corporação em Pernambuco são subordinadas. Uma decisão do mês de julho do Tribunal Regional Federal tornou sem validade o decreto da prefeitura que criava o Parque dos Manguezais, o nó górdio e razão de ser do acordo entre prefeitura e a corporação.

Mapa_lotes_Vila_Naval

Começando pelo começo

Corria o ano de 2010. O Comando do 3o. Distrito Naval publica o edital de licitação No 0001/2010, através do qual anuncia o interesse em negociar a área de 2.477.583,20 m² que possui na Avenida Domingos Ferreira, no Pina, mais conhecido como o terreno da ex-Estação Rádio Pina. Avaliado em R$ 51 milhões, o terreno não é (exatamente) colocado à venda: a corporação pretende obter ofertas de permutas por serviços de construção. Ou seja, pretendia trocar o maior mangue urbano do país por oito prédios, que totalizavam 70 apartamentos, para Suboficiais e Sargentos na Vila Naval que existe em Natal, mas também em Maceió, Fortaleza e Recife. Você pode acessar o edital nesse link. A Marinha ainda incluía entre os itens de seu interesse como condição para a permuta a demolição 59 residências existentes na vila militar de Natal.

Foi então que o prefeito em exercício, Milton Coelho, assinou decreto regulamentando a área como parque municipal, logo depois da publicação da licitação da Marinha. Com isso, se estabeleceu um impasse entre a Prefeitura e a corporação militar. A PCR pretende criar no local o Parque Natural Municipal dos Manguezais Josué de Castro – uma justa homenagem ao médico pernambucano. O decreto da Prefeitura estabelecia que somente construções de apoio ao estudo científico e estacionamento em áreas já aterradas seriam permitidas. A medida paralisou os planos da Marinha de fazer valer sua propriedade e precisa ser entendida como uma atitude louvável, positiva da administração municipal.

A forma de solução do impasse é que é problemática. O Comando do 3o. Distrito Naval da Marinha propôs um acordo com a Prefeitura da Cidade do Recife e cujos termos não implicam, necessariamente, em benefícios para a população: por esse acordo, a Prefeitura se compromete a elaborar um Plano Urbanístico que aumente a capacidade construtiva na Vila Naval. Consequentemente, o valor do terreno. E por decorrência a margem de negociação da Marinha com a iniciativa privada. E por sucessão, a possibilidade de compensar a ‘perda’ da área do mangue de modo a financiar a necessidades imobiliárias da corporação militar. Para movimentos sociais que atuam com a questão urbana, a negociação em si também subverte o Plano Diretor da Cidade, na medida em que procura solucionar prioritariamente demandas da prefeitura e da corporação militar e não da população.

O que alguns urbanistas e grupos que discutem a questão urbana argumentam é que qualquer decisão de aumentar o potencial construtivo na área precisaria ser precedida de estudos que garantiriam que isso é possível sem prejuízo para a cidade. Mas a Prefeitura não apresentou (ainda) nenhum estudo de mobilidade, de valorização econômica, nenhum levantamento sobre o patrimônio histórico dentro da Vila.

“Essa negociação entre Prefeitura e Marinha em torno da Vila Naval como forma de ‘compensação’ pela proteção do Parque dos Manguezais, apesar de discutida tão publicamente, é um absurdo completo. Ela subverte a finalidade do poder do município de ordenar o uso do solo – definida nas diretrizes do Estatuto da Cidade – e confessadamente usa esse poder somente para gerar renda imobiliária para um ente público que está agindo como se fosse um proprietário privado qualquer”, afirma Leonardo Cysneiros, professor substituto da UFPE e integrante do grupo Direitos Urbanos.

“O que a Prefeitura está fazendo perverte o planejamento da cidade: parte-se da premissa da geração de mais-valia urbana e aí qualquer outra consideração urbanística ou ambiental fica em segundo plano, relegada a ajustes no plano que tem como foco só o lucro. Ao meu ver, só isso invalida o plano, inclusive por violação do princípio da impessoalidade”, complementa.

Inicialmente, o edital de permuta que a Marinha havia publicado (e que disparou o decreto de Milton Coelho) tomava por base que o terreno no Pina valia R$ 51 milhões e que a permuta deveria tornar possível a construção de edifícios em Natal e unidades residenciais unifamiliares nas cidades de Maceió, Fortaleza e Recife. Quando avaliava a forma de sair do impasse, a Marinha pediu uma indenização de R$ 20 milhões pela área à PCR, que por sua vez, alegou que não dispunha do montante.

Como e porque o valor inicial do terreno do Pina caiu de R$ 51 milhões para 20 milhões? Enviamos essa dúvida ao Comando do 3o. Distrito Naval da Marinha, que respondeu o seguinte. “o Prefeito da Cidade do Recife manifestou interesse em adquirir a ex-Estação Rádio Pina por intermédio do Ofício nº 638/2010 ao Comando do 3º Distrito Naval, solicitando que o Edital fosse revogado. Este fato foi levado ao Comandante da Marinha (CM) que resolveu cobrar o valor que a MB havia investido na compra da área, corrigido para DEZ2010, pelas seguintes razões: – por se tratar de uma operação entre entes federativos; – por interesse em colaborar com o crescimento da Cidade do Recife;-não ter cunho comercial, diferentemente da iniciativa privada; e – por ser da competência do CM essa decisão, amparado pela Lei 5658/71”.

E foi assim que nasceu o acordo. Diante da necessidade de construir residências em Recife para abrigar militares, o Comando do 3o. Distrito Naval da Marinha propôs à PCR que elaborasse um Plano Urbanístico específico para a Vila Naval do Recife de tal modo que aumentasse o valor da área e assim a Marinha possa permutar parte da Vila Naval com a inciativa privada, de maneira a compensar a “perda” de certas propriedades – dentre as quais, uma faixa de doze metros na extensão da VNRe, para alargamento da Avenida Cruz Cabugá.

Essa arrumação está registrada no seguinte documento do Ministério Público Federal.

Estão incluídas entre as áreas da Marinha que serão cedidas à área da antiga Estação Rádio Pina para implantação do Parque dos Manguezais a área para implantação Via Expressa lindeira junto a Bacia dos Rios Beberibe e Capibaribe, a área para alargamento da Avenida Cruz Cabugá, e a área para implantação de uma Estação de Barcas do Projeto de Navegabilidade do Recife.

Depois do aumento do potencial construtivo, a ser promulgado por lei específica municipal, a Marinha do Brasil assinará um acordo, que será encaminhado para aprovação da Advocacia-Geral da União e do Ministério Público Federal – PE. A partir daí, a Marinha do Brasil lançará edital de concorrência pública, para alienar por permuta parte da VNRe por construção de Próprios Nacionais Residenciais (PNR) e obras de interesse da MB, com valores compatíveis ao mercado.

Embolando o meio de campo

Sucede que, apesar do acordo, a Marinha recorreu à Justiça ainda em 2011 contra a Prefeitura, requerendo que o decreto que cria o Parque dos Manguezais fosse invalidado. E ganhou. Em julho, o Tribunal Regional Federal invalidou o decreto municipal. Cabe recurso junto ao STF. Em relação à Vila Naval, a questão que se impõe é: como isso altera o jogo de forças em torno da área e o próprio acordo estabelecido lá atrás? Enviamos esse questionamento à administração municipal, que não respondeu até o momento da publicação desse texto. Aliás, enviamos diversos questionamentos à administração municipal sobre diversos aspectos dessa reportagem, mas eles não foram respondidos.

Já assessoria de imprensa do 3o. Comando o 3o. Distrito Naval da Marinha respondeu o e-mail informando que:

“A questão do Parque dos Manguezais é da Prefeitura. O recurso da Marinha residia no fato de que a propriedade pertence a Marinha do Brasil. Assim sendo, a Prefeitura do Recife não pode legislar em cima de um bem que pertença à União.

A Marinha continua buscando um acordo com a prefeitura de forma que possa ajudar a prefeitura e a cidade do Recife.

A questão é simples:

1 – Como a Marinha investiu para comprar a área do Pina, deseja uma contrapartida para cedê-la à prefeitura.

2 – Como a prefeitura tem interesse na área da vila naval, e para a realização dos seus projetos há a necessidade de demolição de algumas casas, a Marinha deseja, como contrapartida, a construção de novas moradias para os militares ali residentes”.

Ou seja, a resposta da corporação confirma a continuidade da negociação, mas não explicita os termos nem como isso pode impactar o Plano Urbanístico para a área. Também procuramos saber se a Marinha já tem algum estudo de viabilidade que indique ser interessante a troca por imóveis com o setor privado. O 3o. Comando respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa que “elaborou um Estudo de Necessidade baseado no Plano de Articulação e Equipagem da MB (PAEMB), cumprindo a Estratégia Nacional de Defesa (END) que prevê o crescimento da MB. Para sua informação está previsto aumentar o número de formandos da Escola de Aprendizes-Marinheiros de Pernambuco de 550 alunos para 1.000 alunos/ano.

“Eu vejo a Vila Naval como uma área de preservação e se você acompanhar as legislações que tiveram ali desde que a ZEPH foi criada você percebe que ouve um crescimento dos limites da zona de preservação com um intenção clara de inserir a vila como um todo, inclusive havendo mudança no nome, que passou de “Hospital de Santo Amaro” para “Hospital de Santo Amaro/Vila Naval”, Rodrigo Cantarelli. “É interessante ver que, no histórico das leis de preservação que incidiram sobre a área, os índices de ocupação e gabarito autorizado pra lá sempre foram bem baixos, agora a prefeitura esta desconsiderando isso e liberando tudo”, completa Rodrigo Cantarelli.

Um respiro no meio do caminho

Se há semelhanças em relação à disputa pelo uso público do Cais Estelita, há também várias dessemelhanças. Uma das principais diferenças tem sido a participação popular, desde que a Prefeitura apresentou a minuta do Plano urbanístico. A associação dos moradores de Santo Amaro se posicionou de imediato, reivindicando uma audiência pública e para isso chegaram a invadir a prefeitura em junho de 2015 – depois de ter entregue quatro ofícios sobre o assunto desde dezembro em que se solicitava audiência para discutir a minuta do Plano que a PCR havia apresentado em Novembro de 2014. Foi essa articulação que contribuiu para que a minuta do Plano pudesse ser barrado no Conselho da Cidade, durante a reunião ainda em Novembro de 2014 para discutir a proposta da prefeitura.

Atualmente, alguns sinais indicam que a disputa por um uso mais humanizado do terreno da Vila implicará ainda mais fronts do que no caso do Estelita. Está em curso a auspiciosoa experiência do Plano Centro Cidadão, quem vem desenvolvendo estudos e diagnósticos urbanísticos para os bairros de Santo Amaro, Boa Vista, Soledade, Ilha do Leite, Coelhos e Paissandu. Também estão sendo desenvolvidos Diretrizes Urbanísticas e Cadernos de Planejamento Integrado, que ajudarão futuros estudos e projetos de espaços públicos e privados. Esses levantamentos poderão basear um Plano Urbanístico específico para a Vila Naval que priorize um uso humanizado e a preservação histórico e ambiental do entorno.

O trabalho foi demandado pelo Instituto Pelópidas da Silveira, da Prefeitura da Cidade do Recife e, embora não haja uma segurança legal que obrigue a incorporação desses estudos ao Plano, cria-se uma importante base argumentativa para os destinos da Vila com um caráter menos segregacionista para a área.

AUTOR
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Luiz Carlos Pinto

Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.