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Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo
“Quando chegamos em Boa Vista dormimos no chão, nas ruas, passamos fome. Levamos chuva, sol, foi forte até que por fim tivemos a oportunidade de nos refugiar”, conta José Nieto que, com 62 anos é o mais velho venezuelano de grupo de migrantes que chegou ao Recife em dezembro 2018. Engenheiro mecânico aposentado, veio ao Brasil com seu filho, nora e neta, mas deixou na Venezuela uma filha, netos e genro.
Apesar da barreira linguística, o Recife tem se mostrado receptivo e acolhedor para os venezuelanos. A incerteza pelo futuro é motivo de apreensão, mas não desanima. Para eles, a situação já está muito melhor do que em Boa Vista, capital de Roraima, estado por onde milhares de migrantes venezuelanos têm entrado no Brasil. Junto com Nieto, vieram 32 mulheres e 34 homens, contando só os adultos, para quem a prioridade é encontrar emprego e garantir a moradia no Recife para, finalmente, enviar dinheiro aos familiares que ficaram. Todas as 25 crianças que compõem o grupo estão matriculadas em escolas e creches.
O grupo é heterogêneo, incluindo mulheres grávidas, bebês e dois idosos que, repetindo a saga de tantas migrantes ao longo da história, optaram por deixar o país de origem para trás e tentar a vida em um local com idioma, costumes e cultura diferentes.
A assistente social Mona Mirella Marques atua diretamente com as famílias venezuelanas que chegaram no Recife para tentar reconstruir a vida como podem. Para isso, os migrantes contam com o apoio da Casa de Direitos, espaço que integra o programa Pana, uma articulação da Cáritas para integrar migrantes na sociedade brasileira, em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e parceiros locais. Em Pernambuco, essa parceira é protagonizada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Foi o Pana que permitiu a esse primeiro grupo de venezuelanos desembarcar no Recife com a garantia de seis meses de moradia, cursos de português, capacitações para buscar empregabilidade e assistência jurídica. A escolha pela cidade foi feita pelos próprios migrantes. A existência da Casa de Direitos como espaço de referência na integração dos imigrantes foi decisiva para essa opção.
Segundo Mona Mirella, o maior desafio é dar condições para que os migrantes, todos solicitantes de refúgio, consigam emprego. “A gente está com uma proximidade muito grande com prefeitura do recife, através da secretaria de Assistência Social. A gente encaminha os migrantes para os serviços, mas não tutelamos ninguém, ninguém recebe status de prioridade. Eles são agora cidadãos de direitos inscritos nos programas de Recife”, explica Mona. Ainda em Boa Vista, os beneficiários do Pana conseguiram tirar CPF, Carteira de Trabalho, documento de solicitante de Refúgio, e fazer a atualização de vacinas. Essa documentação é necessária para o processo de integração.
A crise humanitária chamou atenção e, apesar da distância do foco dos conflitos, entidades, universidades e organizações que atuam diretamente com a população de migrantes no estado criaram o Comitê Interinstitucional de Promoção dos Direitos das Pessoas em Situação de Migração, Refúgio e Apátridas de Pernambuco para atender às necessidades dessa população. A chegada dos venezuelanos é um aspecto nesse debate, que precisa dar conta também das necessidades e condições de acesso a políticas públicaspara pessoas de outras nacionalidades e ciclos migratórios que estabeleceram residência em Pernambuco.
Para o advogado Manoel Moraes, a perspectiva de receber cada vez mais pessoas na condição de migrantes ou solicitantes de refúgio precisa ser enxergada como uma questão da sociedade e não apenas de governos ou fronteiras. “A impressão que eu tenho é que estamos recebendo um fluxo cada vez maior de migrantes ou refugiados sem situação de grande vulnerabilidade, por conta de virem em função de migração planejada. Em função de questões ambientais nos seus países ou crises políticas”, analisa.
Para o advogado, é preciso apostar no apelo humanitário e empatia. “O país não pode, enquanto sociedade, enquanto povo, enquanto seres humanos, não podemos prescindir do valor da solidariedade. A gente não pode deixar de ajudar alguém, ajudar um país ou a população de um país, o que seria mais grave ainda”, argumenta.
Devido à idade, José Nieto não tem expectativa de encontrar emprego na área, mas deseja aprender logo a falar português e poder para ter condições de encontrar um trabalho. Na Venezuela, ele tinha uma aposentadoria que garantia uma vida digna até que a crise econômica tornou insustentável viver com o que recebe. “Na Venezuela, a situação está muito delicada em muitos aspectos, na segurança, economia. Não há produtos de alimentação. Por causa dessa situação eu me vi obrigado a emigrar da Venezuela para o Brasil com meu filho. Ele também pensa igual a mim e a muitos venezuelanos”, conta.
Agora no Recife, José conta que seu objetivo de vida é buscar trabalho para “ficarmos independentes e nos consolidar aqui”. “Eu tomei a decisão contando com meu filho, que é jovem e pode trabalhar. Se eu tiver sorte, consigo um trabalho para fazer limpeza, como ajudante de cozinha, o que seja. O título de engenheiro ficou para trás”, explica.
Para participar do programa, é preciso assinar um termo de adesão. O projeto terá duração até setembro de 2019 e irá receber um novo grupo, ainda sem data definida para chegar à cidade. Depois desse período, as famílias precisarão desocupar os imóveis. “Para ter autonomia, precisam de emprego. É um desafio. Só que aos poucos isso vai acontecendo, a questão da dificuldade de emprego é nacional, não é de Recife. Eles não vieram com discurso de que aqui há garantia. É uma situação de fato de necessidade”, avalia Mona.
As aulas são opcionais, uma das razões pelas quais algumas turmas têm pouca presença. “Eles estão deixando de vir porque estão procurando emprego, mas sempre conversamos para explicar a importância e o que esses cursos podem agregar”, explica a assistente social do programa. O programa ajuda os migrantes a acessar políticas públicas, como o acesso à educação para crianças, adolescentes, ao SUS e programas de emprego. Além disso, o Pana também articula a doação de materiais de limpeza e higiene para as famílias.
Todos os venezuelanos com quem a reportagem conversou contam que, no Recife, a recepção tem sido calorosa e amigável. A maior dificuldade é mesmo o mercado de trabalho. “Todos os dias vamos procurar, mas está sendo difícil. Se não me engano, há nove pessoas vivendo na casa em que estamos. Três companheiros conseguiram marcar entrevistas de emprego, espero que consigam ser contratados”, diz José.
Liscarli Alvanez, de 19 anos, veio no primeiro grupo acompanhado pelo programa da Cáritas. Ela conseguiu um emprego temporário em uma farmácia, entregando folhetos de publicidade. Ela começaria o trabalho no dia seguinte à entrevista. “Não é muito, pois é apenas por um mês, mas é bom para que eu comece. Estava desesperada porque minha filha necessita de coisas e eu precisava trabalhar”, conta Liscarli.
Conseguir dar uma vida digna para a filha de um ano e oito meses foi o que motivou decisão de vir para o Brasil em busca de refúgio. “Já não tinha alimento para ela. Eu amamentava e fui ficando fraca também porque não me alimentava bem. Tinha medo de que ela adoecesse. Lá eu não podia dar uma vida melhor para ela”, lembra a jovem, que vive no Recife com a mãe, pai e irmão. O pai da sua filha ficou na Venezuela.
Segundo Mona, o grupo que chegou já tem pessoas empregadas, mas a maioria em trabalhos informais. As mulheres têm encontrado trabalho como diaristas, realizando faxinas, e outros trabalham em supermercados ou na construção civil.
“Tem um enfermeiro que, agora, está trabalhando em um supermercado. O perfil é diferente da nossa população de rua de recife, por exemplo, que, em geral, não tem escolaridade. Eles tem uma condição de vulnerabilidade em função do refúgio”, ela explica. Para quem tem curso superior, a burocracia é um desafio, mas chega a ser menor que o custo para concluir a revalidação do diploma, explica a assistente social.
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Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.