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Sobre portões e lugares invisíveis

Sérgio Miguel Buarque / 03/12/2015

Foto: Inês Campelo

A participação da Marco Zero Conteúdo no UTC Recife e nossa contribuição para o debate em busca da “Cidade que Precisamos”

Contexto

Uma experiência com grande potencial transformador ocupou prédios e espaço público do Bairro do Recife na semana passada. Pessoas que acreditam na urbanização como uma oportunidade de mudança positiva e desenvolvimento sustentável do mundo, vindas de várias partes do país, encontraram-se para a realização do Urban Thinkers Campus (UTC).

A iniciativa faz parte da campanha urbana mundial da ONU-Habitat e irá culminar, em outubro de 2016, na Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III), que será sediada em Quito, no Equador. O tema do UTC do Recife (acontecem outros em 27 cidades espalhadas pelo mundo) foi Cidades Inclusivas: jovens e tecnologias abertas no espaço urbano. Sociedade civil, academia e representantes dos setores público e privado compartilharam soluções inspiradoras para a inclusão social e criaram uma narrativa urbana ligada às tecnologias abertas com foco nas cidades como territórios inclusivos. Todos buscavam resposta para a questão fundamental: “Que cidade precisamos?”

Das experiências e discursões travadas no UTC Recife surgiu o documento que será revisado, publicado e levado para a conferência Habitat III. O texto vai compor as diretrizes da Nova Agenda Urbana, assim como os 27 documentos produzidos nos demais Urban Thinkers Campus. Tão ou mais importante do que o documento síntese, o UTC deixou como legado um processo democrático, horizontal, plural e, porque não, inovador de discussão. Foi esse processo inovador, conduzido dentro de uma metodologia inspiradora, que possibilitou o convite e a consequente participação da Marco Zero Conteúdo no evento.

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Além do texto

O convite feito pelo pessoal do Inciti (responsável por trazer a UTC para o Recife) era, na verdade, um desafio: Teríamos que fazer algo mais do que uma “simples” reportagem. Após algumas conversas inspiradoras com a equipe de comunicação do evento, nasceu a proposta de participarmos do “Urban Labs”, uma das quatro ferramentas inovadoras que possibilitaram a horizontalidade e a pluralidade do UTC (as outras são os Urban Thinkers Sessions, as Drafting Sessions e os Constituent Group Sessions).

Empolgados, ou de forma irresponsável como prefeririam alguns, aceitamos o convite/desafio. Para vocês entenderem melhor, somos um coletivo de jornalistas que busca produzir reportagens independentes e de interesse público e os Urbans Labs são espaços de convivência ao ar livre que servem de plataforma emergente para intervenções urbanas, culturais e artísticas, debates e workshops. Como nos enquadraríamos nisso?

Sigam a nossa cadeia de raciocínio e a sequência de acontecimentos que resultaram na experiência “Portões Invisíveis – Instalação Fora-Portas”:

1)    O objeto: O UTC iria acontecer no Bairro do Recife, para discutir soluções para as cidades. A cerca de 500 metros de onde seriam realizadas as atividades, inclusive o Urban Lab, está a comunidade do Pilar. Desconhecida da população, esquecida pelo poder público e com um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano do Recife, a favela nos parecia uma coletânea dos problemas que seriam discutidos no evento. Decidimos que ela deveria entrar no debate.

2)    A abordagem: Nos chamou a atenção o fato de pouca gente que frequenta o Recife Antigo conhecer a comunidade, mesmo com o embate que ela trava com a prefeitura pelo cumprimento da promessa de urbanização e construção de 588 apartamentos no local. Quando começamos a pesquisar, descobrimos que os moradores do Pilar não costumarem frequentar os eventos no bairro. Constatamos que existe uma espécie de portão invisível separado as duas “cidades” (até o início do século 20 existia um de pedra e cal onde hoje é a Praça do Arsenal). E que uma delas (a mais pobre, claro) também é invisível. Decidimos dar visibilidade ao portão e a comunidade.

3)    As parcerias: Sabíamos que sozinhos e com tão pouco tempo não conseguiríamos dar conta da tarefa. Por isso, buscamos parcerias com outras organizações que topassem o desafio. Procuramos a ONG Seja a mudança, que já desenvolvia um importante trabalho na comunidade, e fomos procurados pelo pessoal da Gráfica Lenta, um talentoso coletivo de artistas plásticos. Decidimos trabalhar em equipe.

4)    A ação: A ideia inicial era apresentar uma narrativa construída pelo próprio pessoal jovem da comunidade. O trabalho envolveria texto, fotografia e pintura. Seríamos facilitadores, ofereceríamos oficinas e seríamos a ponte entre as duas “cidades”. Mas o tempo era curto e mudamos de ideia. Fizemos um vídeo com depoimentos de moradores, escrevemos um texto referência e reproduzimos um barraco da comunidade na rua Domingos José Martins, local reservado para o Urban Lab e bem no coração do UTC. Decidimos trazer o “Fora de Portas” para o “Entre Portas”.

O resultado final do trabalho vocês podem ver no vídeo, no texto referência e nas fotos do Urban Lab :

O texto referência:

Duas “Recifes”, tão próximas e antagônicas, coexistem no mesmo espaço. Unidas pela geografia, cercadas pelo Oceano Atlântico e pelos rios Capibaribe e Beberibe, as duas dividem a mesma Ilha e a mesma origem: ambas nasceram a partir do porto. Uma, chamada de Recife Antigo, é cartão postal da cidade. Tem museus, lojas, restaurantes badalados, escritórios sofisticados, serviços públicos funcionando quase que perfeitamente e gente, muita gente. Gente de todos os lugares, mas quase ninguém da vizinha “outra Recife”.

A que não aparece nos cartões postais, chamada pelo bonito nome de Pilar e, pejorativamente, de Favela do Rato, abriga cerca de quinhentas 500 famílias que sobrevivem de programas assistenciais, pequeníssimos comércios informais, de “bicos” cada vez mais difíceis e de uma minoria orgulhosa que tem “carteira assinada”. A renda média dos domicílios é de menos de um salário mínimo (R$ 567). As suas cinco ruas não são asfaltadas, o esgoto corre a céu aberto e o único posto de saúde mal funciona. Não existe área de lazer.

O cenário fica completo quando os barracos se misturam com estruturas desgastadas de obras abandonadas. É que as famílias da Comunidade do Pilar esperam, cada vez mais impacientes, pela construção de 588 apartamentos e mais uma série de equipamentos públicos, prometido para 2012 e sem previsão para a conclusão (foram entregues apenas 86 até o momento).

As duas “Recifes” são coladas fisicamente. Nas “fronteiras”, quase misturadas. Isso porque, a “rica” avança querendo engolir a “pobre”. Apesar da proximidade as duas não se comunicam. Não interagem. Um simbólico portão invisível separa os dois lugares.

O lugar invisível

Parece existir uma regra que rege esses portais simbólicos: os portões invisíveis são entradas para lugares também invisíveis. Esse é o caso da Comunidade do Pilar. Quem trabalha ou se diverte no Recife Antigo – podem fazer a experiência e sair perguntando por aí – não sabe da existência da comunidade. Quem vem pelo Cais do Apolo ou vai pela Avenida Alfredo Lisboa não consegue vê-la, escondida por trás de armazéns e prédios públicos. Na verdade, a comunidade não é caminho de ninguém que não seja morador de lá.

Mesmo quem passa pelo portão (no sentido do lado pobre para o rico, claro) é invisível (talvez não para a polícia). Quando eles estão no Recife Antigo desaparecem do campo de visão sob o manto que cobre flanelinhas, vendedores ambulantes, catadores de lata ou mendigos.

Aqui uma ironia: o lugar onde a Comunidade do Pilar fica mais visível é, justamente, do gabinete do prefeito. O prédio da Prefeitura fica a cerca de 500 metros do aglomerado de barracos e problemas a serem resolvidos. Como mesmo assim os problemas só aumentam, a sensação de invisibilidade cresce junto.

Portão de pedra e cal

O curioso é que a barreira que separa as duas “Recifes” nem sempre foi simbólica. O que hoje chamamos de Recife Antigo, quando ainda era “novo” foi cercado por portões de pedra e cal. O objetivo, como é o de qualquer portão visível ou invisível, era controlar a entrada das pessoas. Começaram a ser construídos pelos Holandeses (século 17) e duraram até o início do século 20, quando foram demolidos para dar passagem ao progresso que acelerava sob a forma de automóveis. Desde então, a entrada no Recife passou a ser feita através de três portas: a Lantpoort (Porta de Terra), a Pontpoort (Porta da Balsa) e a Waterpoort (Porta da Água ou Porta do Mar).

A primeira, que nos interessa agora, ficava na área da atual Praça do Arsenal, no final da Rua do Bom Jesus (na época rua dos Judeus). Ela controlava a entrada norte, onde hoje está plantada a comunidade do Pilar. O povoado que ali existia era chamado de Fora de Portas. Nome, diga-se, ainda atual.

O barraco: barraco1 O vídeo para ver dentro do barraco:

AUTOR
Foto Sérgio Miguel Buarque
Sérgio Miguel Buarque

Sérgio Miguel Buarque é Coordenador Executivo da Marco Zero Conteúdo. Formado em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco, trabalhou no Diario de Pernambuco entre 1998 e 2014. Começou a carreira como repórter da editoria de Esportes onde, em 2002, passou a ser editor-assistente. Ocupou ainda os cargos de editor-executivo (2007 a 2014) e de editor de Política (2004 a 2007). Em 2011, concluiu o curso Master em Jornalismo Digital pelo Instituto Internacional de Ciências Sociais.