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Crédito: Ororubá Filmes
Por Débora Britto e Mariama Correia
As imagens e o momento histórico não poderiam ser mais simbólicos. Quatro mil lideranças indígenas, de 305 povos, reunidas em Brasília (DF) durante a 15º edição do Acampamento Terra Livre (ATL), entre os dias 24 a 26 de abril. Foi a primeira grande mobilização dos índios brasileiros no governo de Jair Bolsonaro (PSL), que se posiciona claramente contra direitos conquistados como as demarcações dos territórios tradicionais.
Juntos, os indígenas marcharam, cantaram, pisaram o toré no espelho d’água que fica em frente ao Ministério da Justiça. Em resistência pacífica, enfrentaram o cerco da Força Nacional de Segurança, destacada para reprimir os protestos.
“Estávamos apreensivos porque a nossa expectativa era de que houvesse algum conflito, diante da orientação do Governo Federal de coibir nossas manifestações. Mas acredito que o governo recuou sobretudo por causa da presença massiva da imprensa, inclusive da imprensa internacional, durante o evento”, comentou o cacique Marcos Xukuru, um dos líderes de tribos pernambucanas presentes no ATL 2019. Pernambuco, que tem a quarta maior população indígena do país, enviou uma comitiva de 400 representantes de 12 tribos diferentes para o evento.
Durante o ATL 2019, os índios ocuparam salas e plenários historicamente dominados pelos brancos, na capital federal, para cumprir agendas com parlamentares e ministros. Os encaminhamentos e reivindicações desses três dias foram consolidados em um documento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que começa com uma afirmação: “Resistimos 519 anos e continuaremos resistindo”.
O documento (leia na íntegra aqui) reafirma o repúdio dos indígenas às ações do governo Bolsonaro que “decidiu pela falência da política indigenista”, diz o texto. O documento também denuncia que, além dos ataques às vidas, culturas e territórios indígenas, “a bancada ruralista tem acelerado a discussão da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, em conluio com os ministérios do Meio Ambiente, Infraestrutura e Agricultura”. O projeto isenta atividades impactantes de licenciamento e estabelece em uma única etapa as três fases de licenciamento. Esse afrouxamento, na análise dos indígenas, terá impacto sobre os territórios tradicionais e seus entornos.
Treze reivindicações são citadas na nota do ATL 2019. A primeira delas é a demarcação de todas as terras indígenas, como forma de garantir a segurança física e cultural dos povos, além da conservação do meio ambiente. Dos mais de 1,2 mil territórios indígenas brasileiros, 530 ainda estão sem qualquer providência de demarcação, de acordo com a Articulação dos Povos Indígenas. Em Pernambuco, o último levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apontou para nove territórios sem qualquer providência de demarcação.
Os indígenas também reivindicam que o Congresso Nacional faça mudanças na Medida Provisória 870/19 que coloca competências de demarcação das terras indígenas e de licenciamento ambiental no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Eles pedem que essas competências sejam devolvidas ao Ministério da Justiça e à Fundação Nacional do Índio (Funai).
A manutenção do subsistema de Saúde Indígena do SUS está entre os pontos destacados pelo documento. O sistema é operacionalizado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e está sendo revisto pelo Governo Federal. Também foi feito um apelo direto ao Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de “não permitir e legitimar nenhuma reinterpretação retrógrada e restritiva do direito originário às terras tradicionais”. O movimento indígena teme que o STF valide o marco temporal, que restringe o direito constitucional de demarcação de territórios tradicionais caso não seja comprovada a ocupação das áreas na data da promulgação da Constituição de 1988.
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Criada este ano, a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas é formada por 248 parlamentares – 219 deputados e 29 senadores. Coordenada pela deputada federal indígena Joênia Wapichana, a frente acompanhou as reuniões dos indígenas com os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, no último dia 24, durante o ATL 2019. “Estivemos em reunião com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM), que se declarou contrário à retirada da Funai do Ministério da Justiça. Ele também se mostrou favorável à manutenção das demarcações com a Funai”, detalhou Joênia.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), também teria feito um aceno favorável à causa indígena de devolver a responsabilidade das demarcações para a Funai, e se comprometido em retirar esse item do texto da MP 870, de acordo com Joênia. As lideranças indígenas e os parlamentares da Frente também se reuniram com representantes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e receberam indicativos de que a estrutura será mantida pelo Ministério da Saúde.
Outro aspecto do Acampamento Terra Livre é a formação e articulação entre povos das diversas regiões em função de uma temática. Em 2019, assim como no ano passado, houve espaço de diálogo para a juventude indígena, que está se articulando para realizar um encontro nacional da juventude ainda neste ano.
A pauta dos jovens indígenas dá conta do racismo enfrentado nas universidades e também do reconhecimento dos mais velhos da validade de suas vozes e formulações políticas dentro das aldeias. A jovem ativista Bia Pankararu, de Pernambuco, explicou que uma grande preocupação é como fortalecer a base indígena, integrando a juventude às lutas indigenistas. O desafio dos jovens, muitas vezes, é terem sua legitimidade reconhecida pelos mais velhos. “Existe um certo descrédito na causa e tem muito a questão do espaço que não é aberto para os jovens”, diz.
Para ela, é possível conciliar o modo tradicional da luta indígena e os métodos e a criatividade que a juventude traz. “Não dá para a gente trabalhar o movimento jovem indigenista sem levar em consideração esse contexto dos jovens hoje. Se pensa muito com o olhar do passado. Mas aqui, por exemplo, a gente não tem que resgatar a cultura porque ela não foi perdida. Para pensar o futuro temos que falar também do presente”, argumentou Bia. Para ela, que esteve pela primeira vez no evento, o saldo foi positivo e fortaleceu a articulação entre os povos. “Eu nunca vi um povo tão em sincronia. A ordem era entrar e sair de cabeça erguida e nós seguimos. A conclusão é de que voltei mais índia”, contou.
Além da juventude, as mulheres se organizaram no Terra Livre em torno das pautas e direitos que tocam de maneira mais forte suas vidas. Em agosto, será realizado o Primeiro Encontro Nacional de Mulheres Indígenas, de 9 a 12 de agosto, em Brasília. Com o tema “Território, nosso corpo, nosso espírito”, a marcha inédita vai se unir à Marcha das Margaridas, no dia 13.
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