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Juiz Sérgio Moro recebe o Prêmio Faz Diferença como Personalidade do Ano do vice-presidente do Grupo Globo, João Roberto Marinho, e do Diretor de Redação do jornal O Globo, Ascânio Seleme
Na fatídica sexta-feira em que Lula foi conduzido à força para depor pela Polícia Federal, o Jornal Nacional dedicou quase a totalidade de sua edição ao tema. Durante a entrevista coletiva concedida pelo Ministério Público Federal, foi divulgado um documento explicando as razões para a condução coercitiva de Lula. O JN fez questão de reproduzir vários trechos desse documento, endossando a posição do MPF e a decisão do juiz Sérgio Moro de optar pela condução coercitiva quando o depoente ainda não havia sido sequer convidado a depor.
A medida causou estranhamento até mesmo em aliados de FHC ligados ao meio jurídico, como o ex-ministro da justiça José Gregori, que a tratou como “um exagero”. Cabia então alguma justificativa e, nesse sentido, é de especial interesse um trecho do documento do MPF divulgado na reportagem do JN:
“A investigação sobre o ex-Presidente não constitui juízo de valor sobre quem ele é ou sobre o significado histórico dessa personalidade, mas sim um juízo de investigação sobre fatos e atos determinados, que estão sob suspeita. Dentro de uma república, mesmo pessoas ilustres e poderosas estão sujeitas ao escrutínio judicial quando houver fundada suspeita de atividade criminosa.”
Interessa mostrar a estratégia retórica através da qual os operadores do direito tentam revestir de neutralidade a sua atuação, quando, na verdade, sabiam que estavam oferecendo poderosa munição política contra Lula e o PT, ao colocarem o ex-Presidente na posição de ser conduzido à força para depor. O cuidado do juiz Sérgio Moro em explicitar que ele não devia ser algemado nem filmado é, na verdade, uma tentativa de prevenir essa interpretação.
O fato de Lula ser um ex-Presidente reforça a visão de que a justiça é cega e não poupa ninguém e, nesse sentido, dá a ela a aparência de pairar acima dos interesses em disputa. Mas um autor ainda lido nas faculdades de Direito, Max Weber, mostrou como as organizações burocráticas incorporam, na sua lógica impessoal de funcionamento, os interesses dos grupos situados no topo da sociedade, de onde provem a maior parte dos que ocupam os altos postos nestas organizações. Ou seja, basta que funcionem a partir de seus princípios supostamente universais para que tais organizações deem sua cota de contribuição à manutenção das desigualdades sociais, porque tais princípios não funcionam automaticamente, mas apenas através da interpretação de burocratas que tem um lugar social particular.
No caso em questão, a seletividade e a arbitrariedade na aplicação da lei ajudam a entender porque Lula virou foco. É preciso reconhecer que o PT deu continuidade à lógica de financiamento das campanhas políticas no Brasil pelas empresas na forma do toma-lá-dá-cá, campanhas que estão entre as mais caras do mundo. Apesar disso, o tema da reforma política não aparece na agenda pública como urgente, porque o interesse é o de personificar o mal no PT, em Lula e em Dilma, de modo a garantir que sejam arrancados do poder.
A cobertura midiática
Isso nos leva ao problema da cobertura midiática tão afinada ao MPF e à Polícia Federal. Grandes veículos de comunicação também precisam se mostrar “objetivos”, “neutros” e a serviço do “interesse coletivo”. Afinal de contas, a sua credibilidade é recurso indispensável ao trabalho de dominação simbólica que realizam.
Não por acaso, a Globo concluiu aquela edição do JN reiterando a sua suposta objetividade e neutralidade, diante da expulsão dos seus repórteres por militantes do PT que foram às ruas em apoio a Lula. O ex-Presidente, inclusive, abriu a entrevista coletiva que deu em São Paulo ironizando a ausência do microfone da Globo entre os que estavam na mesa. Para construir a impressão de que está acima dos interesses em disputa, o JN, inclusive, reproduziu longos trechos desta entrevista, como justificativa diante da explicitação do conflito por parte de Lula e das reações contra a Globo nas ruas e nas redes sociais.
Denunciar os interesses particulares subjacentes às decisões dos operadores do direito e à cobertura da mídia corporativa é um passo imprescindível para a democratização da sociedade brasileira. Afinal de contas, discutir os particularismos que se escondem por trás da aparência de universalidade é fundamental para que estas instituições não se coloquem, elas próprias, acima do julgamento público.
A este respeito, diante do retrocesso político em curso, talvez seja conveniente retomar os ensinamentos de um pensador do século XIX, Karl Marx, e de um conceito seu tido por ultrapassado, o de ideologia. Uma das dimensões mais importantes da ideologia, lembrava Marx, é a universalização, a capacidade que as classes dominantes tem de revestir as suas ideias e os seus interesses de uma aparência de universalidade.
Como disse Roland Barthes, nos planos simbólico e político, a burguesia aparece como “sociedade anônima”. O trocadilho – a burguesia S.A. – tem sentido profundo: ninguém se anuncia como um Partido da Burguesia Brasileira, o PBB. Mesmo que existam tantos candidatos a ocupar esse posto, eles se apresentam, por exemplo, como o Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, aquele mesmo que levou a termo as principais reformas neoliberais. Definitivamente, os nomes dos partidos no Brasil não podem ser levados ao pé da letra. Uma questão que a história deverá responder é até que ponto isso se aplica também ao próprio PT.
Os partidos encarnam interesses de grupos específicos, mas pretendem diluir esse fato com a defesa retórica do “interesse coletivo”. Não por acaso, a cor amarela presente nas camisetas dos manifestantes contrários ao PT se coloca como uma das traduções da ideia de Brasil como uma coletividade. Mas o “país”, entendido nestes termos, não existe nem nunca existiu. O ódio de classes que explodiu nas últimas eleições presidenciais é uma verdadeira “relíquia” nacional, pacientemente construída na diferença entre a casa-grande e a senzala, o cortiço e o casarão, o barraco e a cobertura. A divisão cala fundo nesta sociedade injusta e desigual.
O caldeirão ideológico que encobriu esse fato por tanto tempo entre nós tem um pouco de tudo. A começar pelo mito da “democracia racial” pinçado da obra de Gilberto Freyre e difundido através da conversão do samba em música nacional, ou nas imagens de patroas e empregadas boazinhas nas telenovelas, e até nas transmissões de partidas de futebol da Seleção onde ao negro parece ser dado um reconhecimento que ele não tem no cotidiano de uma sociedade tão racista.
É certo que, depois do uso ostensivo desse mito pela Ditadura Militar pós 1964, a partir dos anos 1980, ele começou a ser publicamente desacreditado por movimentos raciais e étnicos cansados de verem sua identidade e sua diferença serem diluídas na ideia de “brasilidade”, sempre que conveniente para os discursos da mídia corporativa e das demais forças políticas. Mas é impressionante como, diante do monopólio da fala pelos grandes veículos, é difícil descartar um mito que, por tanto tempo, tem sido tão eficaz. A razão para isto é aquela mesma universalização de que falava Marx. A ideia de “democracia racial” é uma forma tipicamente brasileira de fazer os dominados pensarem como os dominantes, e segundo os interesses destes últimos. O negro, frequentemente pobre, é aquele muito bem-vindo, desde que “saiba o seu lugar”.
País dividido
A ascensão do PT à Presidência e sobretudo a sua prolongada permanência no poder abriu caminho para a explicitação de conflitos. Mas o “país dividido” que veio à luz a partir das eleições de 2014 é muito mais antigo, ele só não aparecia como tal. A novidade foram algumas medidas populares por parte do governo, como o aumento do salário mínimo, a democratização do acesso ao ensino superior, as políticas de renda mínima, as políticas culturais que ampliavam o leque de produções reconhecidas como legítimas para além das belas artes. Porém, o pacto de governabilidade firmado pelo partido com forças conservadoras, mais cedo ou mais tarde, iria ter um alto custo.
Animado pelo apoio popular alcançado com aquelas medidas, o PT resolveu governar de costas para os movimentos sociais, para as forças progressistas que sempre são chamadas em seu socorro quando a coisa fica feia. E aí vieram os tantos retrocessos, como os cortes de verbas na educação, a paralisia nas políticas culturais, a composição com a bancada evangélica….
Talvez seja a hora de pagar a fatura de não ter feito acompanhar aqueles avanços com a ampliação do debate sobre temas tão cruciais como a democratização da mídia, por exemplo. Quem sabe a multiplicação das vozes pudesse quebrar a adesão de parte das classes populares a um discurso de ódio que as tem como alvo preferencial. E, de uma vez por todas, estilhaçar essa pretensão de universalidade que legitima os interesses das elites, supostamente em defesa do “país”. Mas que “país” é esse?
* Maria Eduarda da Mota Rocha é socióloga e professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.