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Geraldo Azevedo e Naná Vasconcelos
Só dois alunos do terceiro ano “científico” do Salesiano, turma de 1986 da sala 17, sabiam o que queria dizer a expressão “dificuldades financeiras”. Eu era um deles. Os demais eram endinheirados ou vinham de famílias que sempre tinham alguns trocados para colocar na poupança ao final do mês.
Meus pais insistiam em manter os três filhos num “colégio bom” (sic) para manter as aparências de outros tempos ou na esperança de que, garantindo boa formação para os filhos, as coisas voltassem a ser como antes. Não imagino como eles faziam para pagar as mensalidades. Sei que atrasavam dois, três meses, até que entrava algum dinheiro e pagavam tudo de uma vez.
Em março de 1986 não dispunha de muitas opções. Uma delas seria pagar a primeira parcela do valor que seria arrecadado para bancar as festas de encerramento do segundo grau e a placa com os nomes de todos terceiranistas. A outra comprar um ingresso para o show de Geraldo Azevedo e Naná Vasconcelos no Teatro Santa Isabel. Os valores era exatamente os mesmos.
Em casa, meu pai havia passado a bola: “Escolha, só tem isso”. E se não pagasse aquela primeira parcela, não adiantava pagar o restante. Não teria direito às senhas da festa nem ao nome na placa.
O problema não era a placa, era a festa. Aquela provavelmente seria a última oportunidade, antes que cada um fosse para seu lado da vida, de ver a menina por quem arrastava uma paixão silenciosa e febril desde o início do segundo grau. E a única de vê-la com outra roupa que não fosse o uniforme da escola ou do time de basquete feminino. Não pagar a primeira parcela da cota, seria abrir mão de vê-la mais linda do que nunca.
Os argumentos contra o show eram fortes. Por exemplo: jamais tinha ouvido falar de Naná Vasconcelos, apenas soube naqueles dias que era o maior percussionista do mundo, ex-parceiro de Geraldo Azevedo.
A questão é que o coração do menino de 17 anos que um dia eu fui já não alimentava ilusões. A menina que entrava em sala ao som de “Pela luz dos olhos teus” – a música só tocava na minha cabeça, mas passei anos jurando que ela tinha uma trilha sonora exclusiva – namorava com outro sujeito, um oficial do exército ainda por cima, não sei quantos anos mais velho. Não dava para concorrer.
Comprei o ingresso por escassez absoluta de esperanças. Comprar o ingresso era dar um passo adiante, seguir em frente.
Acertei em cheio. A percussão de Naná, fazendo magia com conchas, pedaços de metal, arames e madeira, me transportou para outro mundo e outro tempo. Um tempo futuro. O reencontro no Teatro Santa Isabel entre a doçura de Geraldinho Azevedo e a inquietude sonora de Naná talvez tenha sido meu ritual de passagem íntimo, o dia em que saí da adolescência e entrei na vida adulta ao optar pelo novo, pelo inédito, pelo imprevisível.
Aquela talvez tenha sido minha primeira decisão “de gente grande”.
Não fui para a festa. Meu nome não está na placa dos concluintes de 1986 do Salesiano – pode ir lá procurar. Nada disso me faz falta.
Assistir à contínua e improvável criação de um homem que abriu mão de uma sólida carreira na Europa para reencontrar os sons de sua infância era o mesmo que testemunhar a eterna capacidade de se reinventar. Encarapitado nas galerias do teatro, via um homem da periferia do Recife que deu um novo sentido à própria vida ao voltar para sua gente. Um negro que deu novos significados ao jazz, ao blues e também ao pop ao acrescentar-lhes o toque luxuoso da música dos descendentes dos escravos da periferia da sua cidade.
O que vi naquela noite foi um portal aberto para as infinitas possibilidades do ser humano. Aquele espetáculo no Santa Isabel foi um vislumbre de tudo que iria ser tocado e transformado na música que se faz aqui nesse estuário coberto de mangue.
Hoje, lamento não ter dito tudo isso a Naná quando o encontrava diariamente em suas caminhadas pela Avenida Norte e pelas ruas do Rosarinho. Nós nos cumprimentávamos silenciosamente, com uma leve inclinação da cabeça ou um vago sorriso. Ele o fazia, tenho certeza, por já ter me visto naquelas ruas tantas vezes e não lembrar de onde foi. Eu, porque tinha certeza que um dia, quando vencesse o último resquício de timidez, lhe contaria essa história.
E, ao final, acrescentaria: “Sabe a moça que não vi tão linda naquela festa? Estamos casados, é a mãe de meu filho caçula. E continua tão bonita quanto em 1986″.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.