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– Tenente! Pela última vez: esse homem resiste ou não resiste?
– Resiste.
O diálogo se passa nos porões do DOI-CODI do Rio de Janeiro, no auge da violência política da ditadura. O homem que responde é um médico jovem, saído do interior de Minas Gerais, que viveu uma infância humilde, mas conseguiu chegar ao Rio de Janeiro, onde se formou e acabou conhecendo o êxito profissional tendo como oficio “avaliar’ os presos políticos que ainda podiam continuar sendo torturados.
A história desse homem – e de um tempo recente na vida política brasileira – está em cartaz na Caixa Cultural do Recife, pela segunda e derradeira semana (dias 7, 8 e 9/04). A peça, intitulada Nem mesmo todo o oceano, é baseada no romance homônimo do também escritor mineiro Alcione Araújo, morto em 2012, e fez suas estreia no Recife numa data simbólica: 31 de março, quando a cidade estava mergulhada numa passeata que reuniu milhares de pessoas, em defesa do governo da presidente Dilma Rousseff, ameaçada de impeachment.
“Foi um dos dias mais emocionantes que tivemos. Chorei a peça inteira”, diz Inêz Viana, atriz e diretora carioca que, em 2009, encarou o desafio de passar para o teatro um romance de 754 páginas, publicado em 1998.
“É impressionante como essa peça, que fala dos anos de chumbo, acontece em ocasiões críticas do país: estreamos em agosto de 2013, no meio das manifestações contra o aumento das passagens de ônibus, e meio ano antes de se completar os 50 anos da ditadura militar. Fizemos depois várias temporadas e agora voltamos com ela, dia 31 de março de 2016, na Caixa Cultural do Recife, no momento em que nossa democracia está ameaçada. No mínimo, simbólico.
Inez Viana, atriz e diretora da peça
Os seis atores em cena, da companhia carioca Omondé são acompanhados por apenas duas cadeiras e a iluminação. Tudo é simples. No palco, a força está no texto e nas interpretações. O médico é vivido por todos os atores, numa rara harmonia de interpretação.
Quem for ao teatro, porém, não espere um espetáculo panfletário, com palavras de ordem contra a ditadura. O personagem, com todas as suas ambiguidades, é um homem que constrói sua carreira com golpes de sorte, amizades importantes, doses gigantescas de falta de ética e mentiras, para dar um salto na vida profissional. Avaliar corpos torturados em um centro de tortura, que parecia aterrador, depois virou rotina em sua vida.
“É a história de tantos outros brasileiros. Gente que se formou, mas não tinha nenhuma cultura geral. Um alienado. Você não pode estar desconectado da vida política de seu país. Ele chegou aonde chegou, por conta de sua alienação”, diz Inez.
Em 1998, quando o livro foi lançado, Alcione Araújo comentou sobre a vida deste intrigante personagem, que levou sua vida como um camaleão, sempre em busca da melhor comida, mesmo que valores éticos ficassem de lado, quase como um fluxo natural da vida.
“Essa mentalidade, que permeou o período da ditadura militar, resultou numa crise de discernimento de valores que institucionalizou a trapaça e a impunidade. Hoje a nossa sociedade elegeu o sucesso como meta de vida. Muita gente prefere fazer sucesso do que ser feliz”, disse.
“A maior parte da população sempre esteve do lado excluído da sociedade, afastada pelo apartheid econômico, social e cultural, da mesma forma que os negros assistiam às missas confinados numa área cercada da igreja. O que poderia mudar esse quadro seriam políticas públicas menos perversas que permitissem escolarizar e formar cidadãos e profissionais, além de uma distribuição de renda menos perversa. Se esse avanço não se efetivar, o país terá duas culturas conflitantes numa mesma geografia, se já não as tem. E os enfrentamentos, via violência urbana, vão se ampliar”.
Alcione Araujo, autor de Nem mesmo todo o oceano, morto em 2012
Num dos momentos mais fortes da encenação, um comandante militar conversa com o médico, que estava perturbado com seu primeiro “atendimento” a uma vítima de tortura. Fala da tortura como melhor método de combater os adversários do regime.
“Não se preocupe, nada vai acontecer. Ninguém te julgará”.
Graças à Lei da Anistia, aprovada pelo Congresso Nacional, em 1979, nenhum militar brasileiro envolvido com torturas, mortes e desaparecidos foi punido.
“Após a ditadura, ficou um silêncio muito grande. A gente ficou muito tempo sem saber o que de fato aconteceu. Só agora, com as Comissões da Verdade, sabemos mais”, observa a diretora.
Ou seja, a peça fala realmente do Brasil de ontem e de hoje.
A “maluquice” de Inez
A ideia de montar Nem mesmo todo o oceano surgiu em 2002, quando Inez Viana teve um deslocamento de retina e teve que passar 25 dias imóvel, em casa, com a cabeça voltada para baixo. Seu marido na época fez um gesto de amor – durante 25 dias, leu para ela capítulos do livro em voz alta. Ali, ela sentiu que “um mundo se abriu”, e que aquela história precisava ser contada, mas no teatro.
Ligou para o autor, para dizer que seu romance não saía de sua cabeça. Mas só em 2009, quando dirigiu sua primeira peça, As conchambranças de Quaderna”, de Ariano Suassuna, pensou em cometer o desatino de adaptar um livro que é um tijolo de quase 800 páginas. Falou novamente com o autor, que comentou com sua mulher:
“Tem uma menina maluca que quer adaptar o meu romance para o teatro”.
Inez foi trabalhando na adaptação, teve dois encontros com Alcione Araújo, mas não teve a felicidade de vê-lo na plateia. Ele morreu de um infarto, em 2012. Nem mesmo todo o oceano fez sua estreia em agosto de 2013, em meio às primeiras grandes manifestações de rua de São Paulo contra o aumento das passagens de ônibus.
Desde então, segue circulado pelo Brasil.
Ao final de cada espetáculo, é comum ter um debate com o público. Como a peça fala de um período que teve inicío com um golpe militar, Inez tem uma posição bem clara sobre o momento político do país:
“Essa tentativa de golpe não é por uma intervenção militar. Os próprios militares não querem. O PMDB quer destituir a presidente. Independentemente de ser contra ou a favor, eu sou petista e estou muito decepcionada com o governo Dilma, mas acho que isso não é motivo para impeachment. Como é que Eduardo Cunha não está preso? Como é que ele vai comandar o julgamento de alguma coisa? Por isso que se denomina um golpe”, diz.
Além de colocar em cena realidades de cinco décadas atrás e dialogar com o presente, a peça tem causado um forte impacto especialmente entre as pessoas mais jovens, que não viveram aquilo – e receberam pouca ou nenhuma informação sobre a época.
“Eles dizem: Meu Deus, isso é verdade? Como é que a gente não ficou sabendo? Muitos agradecem pela possibilidade de conhecer mais da nossa história recente’”, relata Inez. É comum, em várias apresentações, ter gente na plateia chorando muito. Depois, o relato: a peça abriu comportas de memórias. São relatados casos de amigos ou parentes que foram presos, torturados, um colega da universidade que desapareceu. Momentos de catarse, emoção e memória.
Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.