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* Texto originalmente produzido para o Dossiê Comunicação e Democracia da Revista Coletiva
A cena do editor-chefe do The Intercept Brasil, Glenn Greenwald, sendo inquirido sobre a legalidade e a legitimidade da Vaza Jato por jornalistas da grande mídia durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, no início de setembro de 2019, é a prova mais evidente de que a produção de conteúdo jornalístico é um campo em disputa no Brasil atual. E de que não há como falar em comunicação e democracia em pleno governo Jair Bolsonaro sem abordar a crise de credibilidade da mídia tradicional e o fortalecimento gradual da mídia independente nativa digital.
Ignorar o evidente interesse público das revelações das conversas no telegram dos procuradores de Curitiba e do juiz Sérgio Moro fala muito sobre o jornalismo praticado pelos veículos de comunicação de massa no período mais quente da Lava Jato. A operação da proclamada “República de Curitiba” jogou um papel crucial no impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e na eleição do atual presidente da República ao prender e tirar da disputa o seu mais forte adversário, o ex-presidente Lula, e alçar o tema da corrupção ao panteão do debate público nacional.
O jornalista e pesquisador do Objethos – Observatório de Ética Jornalística, da Universidade Federal de Santa Catarina, Rogério Christofoletti, expôs em entrevista para a Marco Zero Conteúdo os desvios éticos da grande mídia na cobertura da Lava Jato: “É claro que o jornalismo brasileiro tinha obrigação de cobrir os eventos, mas colecionamos uma série de problemas desde então. Um deles foi a cobertura condescendente e servil às autoridades policiais, sem qualquer contestação ou senso crítico. O que se dizia a partir de Curitiba tinha um tom inquestionável, e isso domesticou a imprensa de uma forma geral”.
Para Christofoletti, a imprensa fechou os olhos a abusos da operação. “Tivemos outros problemas como a espetacularização, a idolatria em torno de alguns personagens, as frequentes invasões de privacidade, algumas exposições públicas criminosas, assim como a corrosão paulatina de um importante fator: a presunção de inocência. Durante a cobertura, o que menos o jornalismo fez foi investigar. Foi basicamente descritivo, relatorial e declaratório. Cartorial. O jornalismo não cobriu a Lava Jato; ele deu cobertura a ela”.
A operação Lava Jato é a ponta do iceberg de uma crise de credibilidade que também está associada à crise do modelo de negócio de uma mídia que passou todo um século ancorada na venda de publicidade para se financiar e vê hoje parte expressiva dos recursos migrar para as contas de grandes players digitais como o Google e o Facebook. Para se ter uma ideia do quão disruptivo é esse novo modelo, em 2018 a eMarketer estimava que, juntas, as duas empresas abocanhavam cerca de 60% do mercado publicitário norte-americano.
Exemplo gritante da incapacidade da mídia tradicional de se adaptar aos novos tempos sem comprometer sua missão de bem informar o público é o boom dos publieditoriais, que vieram para derrubar os muros que, pelo menos em tese, separaram por muito tempo o setor comercial do editorial. Assim, “o agro é pop, é vida, é tudo…” O avanço da cobertura sensacionalista policial para outros ramos do trabalho jornalístico, a política incluída, fez o resto do trabalho. Em meio ao caos informativo da internet, quando mais se precisava de quem separasse fato de crença, informação de opinião e de entretenimento, a mídia tradicional juntou o joio ao trigo e serviu para sua plateia.
Em Impérios da Comunicação – do Telefone à Internet da AT&T ao Google, Tim Wu pergunta já na introdução: “como você ouve as vozes dos líderes políticos? De quem é a dor que você sente? De onde vêm suas aspirações, seus sonhos de uma vida boa?”. O sociólogo norte-americano, que estudou os ciclos de nascimento, crescimento, resistência e morte dos monopólios da comunicação nos Estados Unidos, substituídos periodicamente por novos e disruptivos monopólios, responde: “tudo isso provém de um ambiente de informação”.
No Brasil, e no mundo, esse ambiente de informação é um campo em disputa aguda com fortes impactos nas instituições do Estado e na ideia de democracia, como a entrevista de Greenwald ao Roda Viva evidenciou. Com a digitalização da vida, a internet transformou-se na arena privilegiada dessa disputa que agrega velhos e novos atores da comunicação e também da política. Suas plataformas mudam, mas sua influência só aumenta. Primeiro o facebook, o twitter… agora o whatsapp com seus 120 milhões de usuários no país…
Os fluxos tradicionais de informação vão ruindo… O poder da mídia tradicional concentrado na propriedade cruzada de TV, rádio, jornais e revistas está agora submetido ao modelo de organização dos grandes players digitais que não só controlam os caminhos pelos quais as informações chegam aos usuários (o celular é a nova tela para o mundo) como também o modo como essas informações são monetizadas.
É nesse cenário, e impulsionada pelo barateamento da produção e distribuição de conteúdo trazido pela internet, que surge e vai se ampliando a mídia independente no Brasil. Quando entrou no ar em 2016, o Mapa de Jornalismo Independente produzido pela Agência Pública contava com 79 experiências. Em setembro de 2019, já passavam de 200 as iniciativas de jornalismo independente citadas. Segundo a Agência Pública, estão ali selecionados grupos que “nasceram na rede, fruto de projetos coletivos e não ligados a grandes grupos de mídia, políticos, organizações ou empresas”.
O monopólio da seleção e do enquadramento dos acontecimentos relevantes da vida econômica, política e cultural do Brasil e da mediação dessa realidade construída a partir das grandes redações com o público leitor (e eleitor) caiu.
O novo ecossistema da mídia independente que vai se estruturando aos poucos se insere em perspectivas mais diversas de cobertura, maior proximidade com o público e o território onde ele está inserido. Nasce sob a genética da transparência (a nova objetividade, segundo expressão cunhada por David Winberger) e foco na precisão das informações. Em muitos casos, pratica-se um jornalismo segmentado cobrindo as áreas de segurança ou mobilidade, urbanismo, meio ambiente, gênero e raça.
São grupos que se estruturam em coletivos, tentando estabelecer maior horizontalidade na tomada de decisões e, de alguma forma, romper com práticas tradicionais de comando e chefia das redações da mídia corporativa. Veem na diversidade de fontes um traço essencial do fazer jornalístico. Mas entendem que a diversidade de gênero, raça, classe e território deve começar dentro das redações, entre os produtores de conteúdo que, com olhares e vivências distintas, vão trazer mais amplitude e complexidade para os temas abordados.
Essa mídia independente vai se projetando e está associada a dois movimentos que foram acontecendo em paralelo nos últimos anos no Brasil. De um lado, o processo de enxugamento das redações dos grandes veículos de comunicação tradicional que deixou muitos profissionais experientes fora do mercado. De outro, o processo corrente de empoderamento das populações periféricas das grandes cidades brasileiras, notadamente das populações negras mais jovens e relacionadas às temáticas feministas, de igualdade de gênero e raça.
Some-se a isso a abertura de vagas nas universidades públicas e privadas para as populações de mais baixa renda nos governos Lula e Dilma através de programas de interiorização e ampliação dos institutos federais de ensino superior e do subsídio de vagas nas instituições privadas. Ações que permitiram o acesso de jovens estudantes periféricos aos cursos de jornalismo, cinema, design e áreas afins.
Esses dois grupos, jornalistas que passaram por grandes redações e jovens periféricos com forte vínculo com seu território, têm se encontrado direta e indiretamente e trocado experiências no campo do jornalismo independente em formação no país. Os mais jovens trazem consigo a expertise do manejo das novas linguagens digitais multiplataformas.
Aliás, no ecossistema da produção independente de jornalismo, a ideia de colaboração ganha uma dimensão que não existe na mídia tradicional que disputa mercado contra seus concorrentes. Na mídia independente, a produção, edição e distribuição colaborativa de conteúdo enriquece a prática propriamente do jornalismo, especialmente do jornalismo investigativo e aprofundado que exige mais mãos e mentes envolvidas. A colaboração fortalece os parceiros, amplia sua visibilidade e a repercussão do material publicado. Tem sido também uma ferramenta de cofinanciamento de reportagens (reduzindo custos) e complementaridade de habilidades e conhecimentos.
Em quatro anos de existência, por exemplo, a Marco Zero Conteúdo – mídia independente de Pernambuco –, cujo signatário deste artigo é editor, fechou parceria com mais de uma dúzia de outros veículos de mídia independente, entre eles a Agência Pública, De Olho nos Ruralistas, The Intercept Brasil e Gênero e Número.
O compromisso com os valores democráticos, a independência em relação aos grupos políticos e econômicos hegemônicos e a denúncia das violações de direitos estão no cardápio editorial e ético da maior parte das iniciativas de jornalismo independente no Brasil. O grande desafio que está posto para essa nova mídia é a sustentabilidade financeira.
Para esses grupos, nativos digitais, o modelo clássico de remuneração da produção de conteúdo jornalístico via publicidade ou inexiste ou é apenas parte de uma estratégia mais ampla de captação de recursos. Na dissertação de Mestrado apresentada, em 2016, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, O Jornalismo digital independente no Brasil e a busca da credibilidade perdida, Daniela Lacerda analisou seis veículos independentes (Ponte Jornalismo, Jornalistas Livres, Marco Zero Conteúdo, Amazônia Real, Cidade para Pessoas e InfoAmazonia). Entre as formas mais citadas de financiamento estavam o crowdfunding, o apoio de fundações estrangeiras e a realização de cursos e seminários.
Esse é um fenômeno mundial. No documento Ponto de Inflexão – Impacto, ameaças e sustentabilidade, um estudo dos empreendedores digitais latino-americanos, a SembraMedia (2017) analisou 100 grupos de mídia nativos digitais na região, 25 por país, incluindo Brasil, Argentina, Colômbia e México. Apesar da publicidade digital ser a principal fonte de renda de boa parte dessas iniciativas, vão crescendo novas formas de captação que passam por consultoria, treinamento, subsídios, eventos e crowdfunding.
Em que pese todas as dificuldades de arrecadação de recursos, há um esforço dos grupos de mídia independente do Brasil de contar cada vez mais com a colaboração dos seus leitores para pagar do próprio bolso o jornalismo independente que consomem.
O movimento dos doadores no Brasil nem chega perto do que acontece nos Estados Unidos, por exemplo, que tem uma cultura arraigada de doações, mas vem crescendo com o tempo. Segundo informe do Catarse – maior plataforma de financiamento coletivo do país – , entre dezembro de 2017 e fevereiro de 2019 saltou de 405 para 8.851 o número de assinantes que apoiavam projetos de jornalismo independente, com a arrecadação mensal passando de R$ 14,6 mil para R$ 163,3 mil. Esses números estão bem defasados agora depois da Vaza Jato. Considerando dados de setembro de 2019, só o The Intercept capta R$ 325 mil pelo Catarse mensalmente em assinaturas. O número de projetos de jornalismo cadastrados na plataforma era de 198 no mesmo mês.
É preciso ter em mente que iniciativas de jornalismo independente que vão se espalhando pelo Brasil são elementos reais de democratização da comunicação no país e estão desconstruindo paradigmas. Como aquele que associa o “jornalismo objetivo” a empresas comerciais que visam ao lucro e que seriam capazes de mobilizar seus valores normativos para escapar de pressões indevidas. A força do mercado, então, regularia o bom jornalismo.
No Brasil, os recursos captados pela maior parte da mídia independente buscam a sustentabilidade econômica de seus empreendimentos jornalísticos, enquanto que as empresas tradicionais de comunicação buscam a rentabilidade para a distribuição de dividendos a seus acionistas. Isso faz uma grande diferença, considerando que os principais donos e acionistas dos veículos tradicionais são grandes empresários, políticos e igrejas.
Faz diferença também porque os proprietários da grande mídia muitas vezes mantêm negócios em outros ramos da economia, como educação, saúde, mercado financeiro, mercado imobiliário e agronegócio. Conflitos de interesses que, na maioria dos casos, não ficam claros para os consumidores de notícias desses veículos.
Quando o assunto é financiamento, os desafios são enormes para a mídia independente. Não só pela escassez de recursos, mas também quando há excesso. Isso porque grandes empresas, como a Coca Cola, e os grandes players digitais como o Google, o Facebook e o Twitter têm se apresentado para financiar esse tipo de iniciativa. Nesse sentido, não podemos esquecer o papel que esses players digitais têm jogado na criação de bolhas na internet (as conhecidas câmaras de eco), no modelo de negócios remunerado por clic (um incentivador à proliferação de desinformação na rede) e na captura e comercialização de informações pessoais dos usuários, sem falar na falta de transparência no funcionamento dos algoritmos que organizam e distribuem conteúdos nas mídias sociais.
É importante estarmos atentos para o tipo de ecossistema de mídia que construiremos a partir de arranjos desse tipo. Atentos também à concentração de recursos de fundações internacionais e nacionais para veículos independentes do eixo Rio-São Paulo, como já acontece com os fundos disponibilizados pelos grandes players digitais. Atentos especialmente para que esse novo ecossistema que vai se estabelecendo não siga o modelo da mídia tradicional, com concentração de financiamento que reverbere na concentração de iniciativas no Sudeste e num certo controle editorial, nos moldes de cabeças de rede, sobre as iniciativas regionais.
O modelo de comunicação de massa tradicional no Brasil está fortemente baseado na propriedade cruzada de meios, quando um grupo detém veículos em mais de uma mídia – como rádio, TV e jornal – no mesmo mercado. A concentração de propriedade gera concentração de audiência e coloca em risco a pluralidade no campo da comunicação como constatou o levantamento realizado pelo projeto Media Ownership Monitor Brasil 2017, parceria entre o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e o Repórteres sem Fronteiras: Na TV, as quatro maiores emissoras (Globo, SBT, Record e Bandeirantes), todas sediadas no eixo Rio-São Paulo, detêm mais de 70% de toda a audiência.
Quando dizemos que o jornalismo é um campo em disputa é por entender que a ação da mídia tem a capacidade de legitimar ou deslegitimar representações da sociedade que influem direta ou indiretamente em como as pessoas constroem suas empatias sociais e políticas. De acordo com os professores de Ciência Política na Universidade de Brasília, Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel:
“Quando consideramos que não existe um discurso hegemônico estável e estruturado de maneira permanente, o trabalho cotidiano dos jornalistas é o de lapidar consensos. Isso pode corresponder à acomodação dos conflitos entre segmentos (ou classes) sociais diferentes em representações do bem comum – ou seja, à sua organização em uma gramática moral comum que neutraliza os conflitos. E o jornalismo pode também e, concomitantemente, assumir o papel de árbitro nas disputas entre as elites políticas. Neste caso, o trabalho consistiria em atribuir significados ao comportamento dos atores e ao funcionamento das instituições, colando a eles julgamentos que exibem, diante do público, seu grau de adequação às práticas que seriam incontestavelmente adequadas e aos valores tidos como universais”.
A chegada de novos atores no campo do jornalismo, disputando narrativas e colocando em xeque os consensos construídos a partir de supostos valores universais, mexeu com segmentos importantes da mídia tradicional. A reação de parte da grande mídia à divulgação pelo The Intercept das conversas entre os procuradores de Curitiba e o juiz Sérgio Moro pelo telegram, na Vaza Jato, é o exemplo mais relevante dessa reação, como já foi citado. Todas as baterias centradas em desacreditar as mensagens e criminalizar o trabalho jornalístico de um veículo independente a partir de material repassado por fonte anônima com evidente interesse público. O mesmo discurso das autoridades que tiveram seus desvios éticos revelados.
Não por acaso, as revelações do The Intercept colocaram na defensiva, pela primeira vez desde 2015, parte importante dos atores públicos que conduziram a agenda política nacional entre o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff até a eleição de Bolsonaro, em 2018, comprometendo de forma inédita, no período, o agendamento do debate nacional pela grande mídia. Os questionamentos incisivos dos colegas jornalistas na bancada do programa Roda Viva a Glenn Greenwald são a imagem-síntese desse esforço de deslegitimação.
Esforço que visa classificar o conteúdo produzido pela mídia independente como ativismo, a serviço de grupos e movimentos políticos. Fora dos supostos parâmetros de objetividade e neutralidade que ela mesma (grande mídia) praticaria.
No final de 2018, portanto antes das revelações da Vaza Jato, a Folha de S. Paulo lançou uma campanha de assinatura onde pregava que “o jornalismo profissional é a melhor defesa da democracia”. A expressão “jornalismo profissional” como garantidor da democracia foi também o mote das comemorações dos 50 anos do Jornal Nacional da Rede Globo, no início de setembro de 2019.
Em artigo publicado na plataforma Medium, em novembro de 2018, ainda sob o calor da campanha da Folha, a editora da Enóis Conteúdo, uma bem-sucedida iniciativa de formação para a prática de jornalismo independente no país, Nina Weingrill (2018), criticava a “falta de generosidade” no chamado “jornalismo profissional” brasileiro.
“Me parece que no Brasil estamos – como jornalistas – fazendo uma grande confusão que mais atrapalha do que ajuda não-jornalistas a entenderem o que é jornalismo. Quando a Folha qualifica seu jornalismo como ´profissional´, ela está querendo criar uma diferenciação. Como se houvesse um tipo de jornalismo amador ou não-profissional. Quero acreditar que ela faz isso para se distanciar dos sites que poluem nossas redes com notícias falsas e desinformação. Acontece que ao fazer isso ela também desqualifica, em muitas instâncias, todos os sites que estão no mapa de jornalismo independente da Pública – porque não possuem grandes estruturas, porque têm colaboradores voluntários, ou porque não são veículos da chamada mídia tradicional. Mas que, no entanto, também estão fazendo jornalismo”.
A postura da Folha de S. Paulo no caso da Vaza Jato mostra que é, sim, possível estabelecer pontes entre a nova mídia e a mídia tradicional já estabelecida. O jornal foi o primeiro a fechar parceria com o The Intercept para apuração e publicação colaborativa das conversas vazadas. Viu o que de fato existia ali, jornalismo de qualidade e amplo material de interesse público. Seguiram-se parcerias do The Intercept com Reinaldo Azevedo, Revista Veja e, até o momento, com a Agência Pública. Esta última um veículo de mídia independente nativo digital.
A parceria funciona como uma vacina aos questionamentos sobre a veracidade dos diálogos – agora sob escrutínio de jornalistas da grande mídia – e monta uma rede de proteção institucional contra retaliações judiciais ou políticas do aparato do Estado e das autoridades públicas expostas nas conversas. No caso dos veículos corporativos situados no campo político conservador, como é o caso da Revista Veja, a parceria tem ainda a função de fazer o material circular entre o público apoiador do governo Jair Bolsonaro, para além da bolha crítica ao bolsonarismo.
São muitos os desafios que estão postos no campo da comunicação e da política no Brasil atual governado por um presidente cuja plataforma de governo é retirar direitos adquiridos, promover o ódio entre adversários políticos para manter acesa a chama do seu núcleo duro de apoio, fragilizar ainda mais a posição social de grupos vulneráveis – como os indígenas, quilombolas e população LGBTQI – e cumprir a agenda econômica liberal de precarização do trabalho, privatização de áreas estratégicas do Estado brasileiro e subserviência a interesses do capital internacional.
Num ambiente em que a mídia corporativa disseminou por anos a ideia de que a política institucional está tomada por personagens corruptos, deslegitimou os movimentos sociais de contestação à violação de direitos e propagou que os valores da iniciativa privada se sobrepõem àqueles de interesse público, tudo fica ainda mais difícil.
“O risco, diante da ofensiva do bolsonarismo, é que a defesa da democracia pareça uma tentativa de proteger os defeitos do sistema político brasileiro”, avalia o sociólogo Celso Rocha de Barros no artigo Uma história de dois azares e um impeachment, publicado no livro Democracia em Risco? – 22 ensaios sobre o Brasil hoje (2019).
É preciso entender que o avanço do conservadorismo, no entanto, é um fenômeno internacional, como explica o professor emérito do Departamento de Filosofia da USP Ruy Fausto no artigo Depois do Temporal, do mesmo livro Democracia em Risco: “A vitória da extrema direita no Brasil se inscreve num movimento mundial de forças anti-emancipatórias. Seu segredo não é a liquidação direta e imediata da democracia, mas sua ocupação”.
Ao “ocupar a democracia”, dando ares de legalidade e legitimidade à quebra da institucionalidade por dentro, as lideranças conservadoras e autoritárias como Trump e Bolsonaro impõem desafios enormes aos defensores do Estado Democrático de Direito. Desafios que passam pela construção de novos significados sociais para fazer frente à narrativa autoritária, pela construção de conteúdos jornalísticos que denunciem e exponham os ataques à democracia e não os naturalizem.
No campo da legislação em comunicação há uma extensa agenda a ser seguida para proteger a democracia brasileira e que inclui preservar e fazer valer a Lei Geral de Proteção de Dados; defender o Marco Civil da Internet; discutir uma legislação que dê mais transparência e responsabilidade à organização dos fluxos de informação nas plataformas digitais; e regulamentar e cumprir os artigos do capítulo V da Constituição Federal, que proíbem, entre outras coisas, a censura e o monopólio da comunicação e preveem a complementaridade entre os sistemas público, estatal e privado na radiodifusão.
O fortalecimento da mídia independente se insere nessa agenda de democratização da comunicação no país. Precisamos de mais e não de menos jornalismo. De mais e não de menos vozes, rostos e pontos de vista colocados no debate público. E é bom que esse jornalismo independente seja diverso nas pautas, nos públicos, nos enfoques, nos territórios, nas linguagens e nas formas de financiamento. E dependente dos fatos. Para que reponha o jornalismo brasileiro no seu devido lugar de fiscal dos poderes privados e públicos constituídos e defensor dos direitos humanos e da democracia.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República