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Foto: Luana Cruz
Ao perceber que a balança da Justiça nem sempre equilibra as
desigualdades raciais que constituem a sociedade brasileira, um grupo de
advogadas negras decidiu transformar esta realidade. Abayomi, palavra
iorubá, significa “encontro precioso”. E foi assim, em um encontro
precioso de mulheres que se viam isoladas no universo branco da justiça
brasileira, que cerca de 15 advogadas e juristas se conhecerem e criaram
o coletivo Abayomi Juristas Negras.
Em busca de aproximar a Justiça da deusa grega Themis – divindade
símbolo do sistema judiciário ocidental – à Justiça de Xangô, orixá
cultuado com nomes distintos em religiões de matriz africana, as
advogadas que constroem o coletivo pretendem entrar no sistema
judiciário e, de dentro, promoverem mudanças que caminhem para a justiça
racial.
Segundo a procuradora federal Chiara Ramos, uma das idealizadoras do
Abayomi, existe um pacto de silêncio que favorece a manutenção do
racismo institucional no sistema judiciário e também “embranquece” as
pessoas negras que se inserem nesse universo. Sozinhas ou sem
consciência de como a questão racial é uma das engrenagens da
desigualdade e injustiça fica muito mais difícil transformar, de fato,
as estruturas.
A mudança de paradigma que propõem, explica a procuradora Chiara, é
ampliar a percepção individualista da justiça europeia para uma
compreensão coletiva da justiça. “Quando uma mulher negra consciente de
raça ocupa um lugar de poder, ela tem possibilidade de gerar maior
impacto nas suas decisões. O direito é muito mais do que lei, tanto é
que temos uma constituição que diz que o racismo é inafiançável,
imprescritível, mas, no Brasil, 70% dos casos de racismo são decididos
favoráveis ao réu”, argumenta.
Para ela, esse fato é consequência do que ela chama de hermenêutica
da branquitude – hermenêutica é uma ciência que estuda a interpretação
no direito. “Uma hermenêutica que não sabe o que é ser chamado de
macaco, o quanto isso é dilacerante, que diz que isso é só uma
brincadeira. Esse tipo de racismo recreativo que o judiciário ignora
acaba inocentando as pessoas racistas. Hoje, no Brasil, não temos
nenhuma pessoa presa por racismo”, explica, e complementa que “isso é
questão de interpretação. Se você falar de política de encarceramento em
massa da população negra, por exemplo, precisa pensar que uma juíza
negra consciente de raça jamais deixaria Renan da Penha preso”.
É por isso que o coletivo se dedica a formar pessoas para ocuparem espaços de poder dentro da estrutura do judiciário brasileiro. “A nossa militância dentro do judiciário é por respeito, inclusão. Nós é que podemos trazer a igualdade, de fato”, defende Patrícia Oliveira, integrante do coletivo e responsável pelas relações institucionais.
A principal estratégia do coletivo é a formação e preparação para concursos públicos, com foco em cargos no sistema judiciário. A primeira turma tem 10 pessoas, incluindo dois homens negros. A experiência de Chiara como professora de concursos é o pilar dessa estratégia. Ela desenvolveu um método de aprovação a partir da própria experiência de estudar sozinha, com condições extremamente difíceis, mas que garantiu que ela ocupe hoje uma vaga como procuradora federal da Advocacia Geral da União.
No método criado por Chiara, a primeira turma em Rondônia teve 100%
de aprovação. Agora, no Recife, apenas com pessoas negras, o objetivo
não é menos que aprovar todas e todos. O grupo se reúne de uma a duas
vezes por mês e funciona com a lógica do apoio mútuo e não da
competição. “As pessoas estudam em casa de acordo com essa métrica de
fazer questões, fazer leituras e depois fazer mais questões. Também
simulamos todas as etapas de prova e depois elas se reúnem para discutir
e debates os temas que estudaram sozinhos, fazer dinâmicas e se apoiar
mutuamente. Porque o estudo para concurso é muito solitário. Aí é que
entra a força do grupo”, explica.
“Sempre tive consciência de ser negra, mas não de entender o que
seria meu papel”, conta Chiara, que é natural do município de Palmares,
na Mata Sul de Pernambuco. Foi no doutorado, na Itália, que sentiu na
prática o racismo institucional, além do machismo.
De volta ao Brasil, ela assumiu um cargo de direção na escola nacional da Advocacia Geral da União (AGU). “Dividi a direção com Paulo Fernando Soares Pereira, doutor em direito pela UnB e procurador federal. Ele é um negro que já estava num processo muito intenso de pesquisa sobre a negritude, de consciência racial. Ele é o único procurador black power do brasil e vem de Pinheiro, no interior do Maranhão, uma das cidades mais pobres do estado mais pobre”, relembra.
Foi esse encontro precioso, mais uma vez, que contribuiu para a trajetória da procuradora. “Mas é a história dos negros únicos, nós víamos o quanto nós éramos exceção. As outras pessoas estavam sempre questionando o que estávamos fazendo ali, questionando o que uma mulher negra, nordestina, jovem estava fazendo ali”, conta. Essa experiência influenciou seu desejo de se reencontrar e contribuir para transformações estruturais em coletivo.
A filosofia africana ubuntu, baseada no respeito e solidariedade, é
um dos pilares do Abayomi Juristas Negras. No Brasil, o sentido do
Ubuntu se popularizou com a ideia “eu sou porque nós somos”, que remete à
lógica da coletividade como força e essência.
Para as mulheres que fazem parte do coletivo, é tanto uma
oportunidade de crescerem profissionalmente como reestabelecer contato
com a ancestralidade negra, africana, em um ambiente de fortalecimento
em vez de competição. O perfil do grupo é jovem, com integrantes de 27
aos 40 anos. Todas advogadas já formadas, a maioria vem de realidades
periféricas no meio urbano. uma integrante é quilombola, do Quilombo de
Catucá, em Camaragibe.
A integrante do coletivo Juliana Ferreira, que também faz parte da Comissão de Igualdade Racial da OAB Pernambuco, apresenta também a ideia de quilombismo que orienta o trabalho.”O quilombismo tem a ver com pertencimento”, explica. Para ela, além de participar da turma de estudos, compor o grupo a ajuda a resgatar a própria identidade e também a afirmar com segurança sua negritude. “É curioso que hoje eu chegue na OAB e, na portaria, as pessoas já perguntem se eu viria para essa reunião. As pessoas deduziram que por ser negra estaríamos juntas”, conta.
Se, por um lado, o reconhecimento fortalece as mulheres, por outro é cansativo ser sempre vista com olhares de estranhamento, de exotização. Sabendo disso, a preocupação do coletivo é também afirmar a estética negra em sua diversidade e colorido para desobstruir o olhar racista sobre as mulheres. Ao entrar na OAB Pernambuco, por exemplo, as roupas coloridas com tecidos africanos ganham projeção de altivez pelos corredores brancos e indiferentes.
Pensando nisso, um ponto forte da atuação do Abayomi tem a ver com a imagem e autoestima das integrantes. Se o ambiente jurídico pode ser opressor para as mulheres em geral, com a necessidade de estarem sempre impecáveis sob a perspectiva branca e machista, as abayomis advogadas optam por trançar os cabelos, usar maquiagens que valorizam a pele negra e roupas que remetem à ancestralidade africana.
O coletivo considera, por isso, que além das advogadas, as parceiras trancistas, maquiadoras, da comunicação também fazem parte do coletivo. Ao todo, contabilizam 45 pessoas envolvidas no fortalecimento mútuo das mulheres.
É com essa perspectiva de crescimento coletivo que o Abayomi Juristas
Negras realiza, no dia 25 de novembro, um evento sobre Direito
Antidiscriminatório. O evento, considerado pelo coletivo como uma
expressão jurídica, política e social, tem o objetivo de construir
propostas e compartilhar conhecimento entre mulheres e homens negros
ligados ao universo da Justiça. Para custear o evento, estão realizando
crowdfunding, com uma vakinha de doações.
Como meta, elas têm a intenção de criar o Instituto Brasileiro de
Direito Antidiscriminatório em 2020, outra oportunidade de ampliar o
trabalho iniciado e fortalecer as estratégias para fazer da Justiça
brasileira menos racista.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.