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Maurice Utrillo (1883-1955), Loucura
por Aline Soares e Dandara Palankof e Cruz *
Em 2016, a polêmica Lei Paulo Delgado, como também é conhecida Lei 10.2016/2001, que implementa a reforma psiquiátrica no Brasil, completa quinze anos. Contudo, continua a ser alvo de críticas e, portanto, divisora de opiniões.
O projeto tramitou no Congresso Nacional por quase doze anos, até ser aprovado em 2001. A lei prevê um sistema de atenção à saúde mental que se proponha a tratar o cidadão “com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade”.
Assim, o texto aprovado institui não apenas um tratamento com maior participação da família, como estabelece a internação psiquiátrica como último recurso e cria uma política de fechamento dos hospitais psiquiátricos, uma vez que, de acordo com seu Artigo 6º “é vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares”.
Contexto histórico
A criação e a evolução da instituição hospitalar tem suas bases na Europa do século XVII e levou também à chamada institucionalização do paciente, recolhido e isolado da sociedade. Uma prática corrente até meados do século XX, que transformou hospitais em hospícios, semelhantes à prisões – onde o crime, muitas vezes, era não apenas ser mentalmente incapacitado, mas simplesmente diferente; o recolhimento indevido de pessoas, como moradores de ruas ou usuários de drogas, aos chamados manicômios foi apenas um dos abusos constatados no estabelecimento rotineiro de hospitais psiquiátricos, sem os devidos cuidados médicos.
Além disso, ao longo do tempo, a busca empírica da construção do conhecimento psiquiátrico levou a uma série de tratamentos que passaram a ser vistos como nada mais do que torturas, como a eletroconvulsoterapia, popularmente conhecida por eletrochoque. É a partir disso que surgem os movimentos pela reforma do tratamento da saúde mental; seu expoente é o psiquiatra italiano Franco Basaglia, que na década de 1960 lutou pela reforma psiquiátrica em seu país. E ainda que muitos brasileiros não estejam a par do tema, está em curso no Brasil desde a década de 1970 uma reforma psiquiátrica e com isso a implementação de uma série de mudanças.
Nesse momento histórico de luta pelo fim da ditadura, tomaram forma os movimentos de reforma sanitária e psiquiátrica. Em 1979, é realizado o I Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental. O II Encontro é realizado em Bauru, interior de São Paulo, em 1987. É nessa segunda ocasião que o lema “Por uma sociedade sem manicômios” é documentado no Manifesto de Bauru, tornando o dia 18 de maio o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
A partir de então, uma série de acontecimentos históricos contribuem e fomentam a reforma psiquiátrica no país: os métodos de terapia ocupacional de Nise da Silveira no Rio de Janeiro, a criação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em São Paulo, ainda em 1987; a aprovação da Constituição de 1988, que cria o Sistema Único de Saúde (SUS); até o projeto de lei antimanicomial ser colocado em votação na Câmara, em 1989, pelo deputado Paulo Delgado.
Com o propósito de compreender o cenário da assistência em saúde mental, entrevistamos dois profissionais: Vinícius Suares, psicólogo e membro da Luta Antimanicomial, e o dr. Everton Botelho Sougey, psiquiatra e presidente da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria.
Liberdade e autonomia
Existem diferenças gritantes no modelo de assistência à saúde mental promovido nos hospitais psiquiátricos e o modelo instituído com a reforma psiquiátrica. É o que afirma Vinícius Suares, psicólogo, técnico de Referência de Residências Terapêuticas no Cabo de Santo Agostinho e Gerente do CAPS Livremente no Recife. Integrante da Luta Antimanicomial de Pernambuco, ele ressalta que há, no hospital, um contingente de pessoas em tratamento muito maior, o que impossibilita um cuidado mais direcionado com o paciente; e que “em lugares fechados, onde há muitas pessoas, é inevitável que haja um processo de institucionalização muito forte. As pessoas então começam a perder a noção de tempo, de espaço, de individualidade e da capacidade de desenvolver sua própria vida naquele ambiente.”
Outro aspecto destacado por Suares é que nos hospitais há uma forte tendência de a medicalização do paciente ser administrada de modo a simplesmente dopar o paciente. Assim, o intuito da reforma psiquiátrica é a promoção de outros espaços, que sejam da ordem da reinserção social, de modo que o usuário esteja desperto, desenvolvendo atividades diárias.
O psicólogo também afirma que é essencial para o movimento da Luta Antimanicomial pensar as relações sociais que envolvem a loucura. Para ele, é preciso refletir sobre a problemática cultural que leva a sociedade a enxergar os portadores de distúrbios psiquiátricos como incapazes para convivência e inúteis para a produção em âmbito social. Ele afirma que “nesta concepção, as pessoas associam a loucura ao retardo, inferindo que a pessoa portadora de qualquer transtorno mental está impossibilitada de desenvolver todo tipo de atividade”. Assim, para os integrantes do movimento, o trabalho da saúde mental não pode ficar restrito ao âmbito da saúde; ele precisa acontecer nas áreas da educação, da assistência social, da cultura, do trabalho refletindo sobre em quais dimensões é possível transformar as relações que envolvem a sociedade e loucura. “Precisamos transformar as relações de quais lugares são adequados para tratar e cuidar dos transtornos da saúde mental e gerar a consciência de que espaços asilares não são necessários; porque enquanto os hospitais existirem, as pessoas ainda enxergarão neles possibilidades e referência em cuidados pras pessoas”, afirma.
Suares também critica a perspectiva ainda comum à sociedade de enxergar na instituição do manicômio uma alternativa para tirar do convívio os indivíduos considerados indesejáveis. Ele lembra que Franco Basaglio, precursor da reforma psiquiátrica na Itália, alertou para a visão de que os manicômios são instituições para pessoas que não conseguem produzir através do trabalho na sociedade.
Há também um aspecto que tomou força durante o período da ditadura militar: o do capital sobre a assistência em saúde mental. Suares conta que, a partir de 1964, teve início a expansão de redes hospitalares privadas, em que o hospital particular recebia os pacientes e o governo repassava ao seu proprietário o valor referente à diária para seu tratamento. A chamada “Indústria da Loucura” promoveu um aumento de 3 a 4 vezes no número de hospitais psiquiátricos e de seus internos entre as décadas de 1960 a 1970. “Pessoas começaram a aprisionar outras para ganhar mais dinheiro”, afirma o psicólogo.
Suares conta que, ao longo da história, os hospitais psiquiátricos foram denunciados e responsabilizados por violências das mais diversas ordens – tendo se tornado, assim, as chamadas instituições totais, nas quais o indivíduo é privado de direitos e liberdades individuais. As crueldades aconteciam não somente em práticas médicas invasivas, como a lobotomia e a eletroconvulsoterapia (popularmente conhecido como eletrochoque) – contra as quais a psiquiatra Nise da Silveira foi uma das primeiras a se manifestar, mas também por maus-tratos como incitação de brigas entre os internos e pela negligência com outros quadros clínicos apresentados pelos pacientes, como diabetes e hipertensão – muitos dos quais vinham a óbito. Por essas razões, o psicólogo e demais representantes da Luta Antimanicomial mantêm suas ressalvas quanto aos hospitais: “Não negamos a necessidade da internação em um espaço hospitalar”, ele rebate. “Apenas entendemos que não é no modelo do hospital psiquiátrico, um espaço que não provê o cuidado e que, principalmente, leva ao esquecimento, que devemos nos concentrar para o tratamento da saúde mental”. Para ele, a chamada Lei Antimanicomial preconiza casos em que possa haver necessidade de internação e é por isso que a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) prevê a existência de leitos em saúde mental hospitais gerais.
Porém, Suares admite que existe, sim, uma dificuldade da atual rede de atendimento à saúde mental em atender todas as demandas de crises e surtos psicóticos. Mas o psicólogo acredita que o principal motivo para a emergência do Hospital Ulysses Pernambucano – conhecido entre os recifenses como Tamarineira – ter pacientes à espera de atendimento a qualquer hora do dia é o fato de ele estar fortemente cristalizado no imaginário popular como o lugar de referência para acolhimento. “Durante muito tempo, o único modelo de assistência a saúde mental era o hospital psiquiátrico. Então, se a pessoa tivesse uma crise, era levada para o hospital. Isso cria um comodismo: os familiares preferem deixar a pessoa no hospital em tempo integral para não precisar levá-la e buscá-la a cada crise”, ele explica. “Essa perspectiva do abandono é modificada com o atendimento nos CAPS, os Centros de Atenção Psicossocial, onde o usuário recebe assistência, mas não fica meses ou anos internado, e precisa retornar para casa. Assim, a responsabilidade do tratamento é compartilhada com a família – o que acaba, em muitos casos, não sendo muito fácil”.
Suares explica ainda que, apenas em 2001, com a aprovação da Lei 10.216, é que surge o estímulo para a reflexão quanto às alternativas de práticas, equipamentos e instrumentos para o sistema de assistência em saúde mental. Entre elas, estão os CAPS 24h e a incorporação de políticas relacionadas ao consumo de álcool de outras drogas – culminando na criação, em 2004, dos CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas). Passa-se a ter também a percepção de que há uma demanda de dispositivos específicos para o tratamento de crianças e adolescentes portadoras de distúrbios, o que leva à formação dos CAPS Infanto-Juvenis. Assim, para Suares, a preparação da rede para lidar com toda a gama de especificidades é um processo que está em constante construção.
“Hoje, a RAPSconta com vários equipamentos para atender às demandas de assistência em saúde mental. Entre elas, estão o Consultório na Rua, os CAPS, as residências terapêuticas, as unidades de acolhimento transitório, os hospitais gerais. Até mesmo o Samu acaba sendo componente da rede, porque é muitas vezes a porta de entrada de uma situação de crise”, conta Suares. “E o Samu pode ser visto como um dos gargalos, já que nem sempre as equipes estão sensibilizadas para entender que o transtorno mental não é questão de polícia, mas sim uma questão de saúde como qualquer outra, a ser remetida aos hospitais gerais.”
É nesses momentos emergenciais em que Suares vê a importância do espaço hospitalar, de modo que sejam garantidas ao indivíduo as condições de cuidados clínicos. Ilustrando essa situação, o psicólogo relata o caso do morador de uma residência terapêutica que apresentou repetidas crises intensas, levando a comportamentos violentos. O psiquiatra do CAPS então determinou o tratamento com psicofármacos atípicos – que produzem uma resposta psiquiátrica satisfatória rapidamente, mas podem trazer outros efeitos clínicos indesejados. Assim, o morador foi encaminhado para um leito no Hospital das Clínicas, por um período de 30 dias, para que o uso e a reação do medicamento fossem monitoradas. “Em seguida ele pôde retornar bem à residência, fazendo uso do medicamento atípico, com seu quadro clínico estável”, conclui.
Suares defende que a própria política da reforma psiquiátrica preconiza que haja um determinado número de leitos em hospitais gerais para emergência psiquiátrica, a fim de garantir que a equipe tenha melhores condições no cuidado dos internos. Além disso, ele aponta que “é preciso ter em mente que a existência desses leitos em hospitais gerais é importante e necessária para dar conta de questões que o CAPS, que o serviço residencial terapêutico, que o consultório de rua ou qualquer outro dispositivo como esses, não dá conta; que precisaria da dimensão de um espaço como o hospital. Mas não na dimensão em que foram construídos historicamente os hospitais psiquiátricos.”
Para o psicólogo, é preciso destacar que, mesmo nos ambientes dos CAPS que funcionam 24h, a política de internação inevitavelmente difere da política dos hospitais psiquiátricos. No primeiro, há a disponibilização de um leito por um período de 15 a 30 dias, para que a pessoa possa se estabilizar e retornar para casa. Já no segundo, as pessoas dão entrada na emergência e lá ficam durante meses, podendo até mesmo passar para a ala hospitalar de internação, sem a previsão ou o intuito do recebimento da alta.
Se hoje há um grande entrave para a reforma psiquiátrica é a resistência de determinadas parcelas da sociedade. Mas para Suares, as manifestações contrárias acontecem não pela crença de que que esta não é a alternativa mais adequada de cuidado à saúde mental, mas pela ausência de serviços. “A reforma realmente está em construção e nem sempre a gente tem serviços suficientes para suprir a demanda que o território apresenta. Recife tem 17 CAPS, e considero que há a necessidade de mais unidades, mas não estamos conseguindo qualificar a discussão para a expansão”, explica o psicólogo. “Então, a dificuldade é pensar como conseguimos garantir uma reforma assegurando a quantidade suficiente de equipamentos para que as pessoas não se sintam desassistidas; essa é uma discussão da saúde mental, mas que perpassa as outras áreas da saúde”.
O movimento antimanicomial vem conseguindo fortalecimento e organização progressivos para o enfrentamento de uma série de pautas, cientes das dificuldades impetradas pelo contexto político atual, tanto em nível estadual quanto nacional. E para Suares, elas não são poucas – nem simples. “Hoje, tanto no âmbito estadual quanto municipal, nossas atenções estão voltadas para a precarização dos vínculos trabalhistas, com a terceirização de vários serviços; para a dificuldade de expansão da rede psicossocial, tanto no Recife quanto no interior de Pernambuco; e para a ampliação da discussão sobre o uso álcool e outras drogas, principalmente com a popularização das unidades terapêuticas de cunho religioso, onde a cada inspeção são encontradas diversas violações aos direitos humanos; assim como nos hospitais.”
Pela valorização do saber médico
“Apesar de ter sido norteada por princípios de base humanista, a lei de 2001 foi um tanto precipitada”. Essa é a visão de Everton Botelho Sougey, psiquiatra clínico, professor da Universidade Federal de Pernambuco e presidente da Sociedade Pernambucana de Psiquiatria – instituição federada à Associação Brasileira de Psiquiatria. Ambas as instituições, assim como várias outras ligadas ao tratamento da saúde mental, são signatárias do documento “Diretrizes para um modelo de atenção integral em saúde mental no Brasil”. Redigido em 2014 e entregue aos mais diversos órgãos governamentais ligados à área de saúde, o documento lista uma série de propostas que visam não se contrapor diretamente à Lei Antimanicomial, mas sim repensar seu funcionamento e ampliar seu alcance diante das dificuldades de sua total implantação – mas sem retrocesso.
Para Sougey, ainda que o atual modelo de assistência aos portadores de transtornos mentais em Pernambuco e no Brasil seja passível de uma série de críticas, o caminho não é mais um total contraponto aos pressupostos defendidos pelos integrantes da chamada Luta Antimanicomial. Diante da conjuntura atual, em que a maioria dos hospitais já se encontra fechado e o atendimento é centrado principalmente nos CAPS (Centro de Assistência Psicossocial), Dr. Everton acredita que o diálogo entre as duas correntes seja o caminho mais benéfico rumo à uma assistência próxima do ideal. “A lei, é fato, não tem mais volta”, ele afirma. “Então, como todo corpo funciona em harmonia com suas duas metades, o mais interessante na atual conjuntura seria que pudéssemos estabelecer conversas entre as duas correntes, que nos levassem a um caminho comum.”
A assistência ao portador de distúrbio mental no Brasil, ele admite, sempre foi “o calcanhar de Aquiles da psiquiatria”: ao longo do tempo, a busca pelo conhecimento que formaria a base de um tratamento psiquiátrico adequado, através do empiricismo, levou a práticas totalmente condenáveis; assim como as distorções na implantação do sistema de hospitalização, principalmente durante os anos 1970, levaram ao recolhimento indevido de milhares de cidadãos em situação de rua – todos fatores admitidos por Sougey.
Contudo, segundo ele, o abrupto abandono do sistema de internação causou uma série de efeitos colaterais imediatos. “A Lei Antimanicomial, surge com uma proposta muito interessante – no papel. Na prática, se vai desmontar um sistema, que tinha muitos defeitos, e substituí-lo por uma rede de assistência que não estava devidamente capilarizada.” Os efeitos disso seriam sentidos até hoje: pacientes que, ao voltarem às casas de famílias repentinamente confrontadas com a necessidade de lidarem com distúrbios que podem dificultar a convivência, acabam confinados em cômodos (os quartinhos ou “puxadinhos”), transformados em verdadeiras celas; ou acabam abandonados, vagando pelas ruas e sendo recolhidos, dessa vez, pela polícia – os últimos anos registram aumento significativo de portadores de distúrbios psiquiátricos nas prisões brasileiras. Além disso, Sougey afirma que o número de CAPS criados, bem como o número de profissionais designados para estes centros, era insuficiente para atender à demanda gerada pelo fechamento dos hospitais – e com a alta demanda e o desgaste gerado, muitos destes profissionais decidiram desligar-se da área de assistência. Para ele, tudo isso configura um verdadeiro retrocesso. “Voltamos à era pré-psiquiátrica”, afirma.
Assim, a necessidade da existência de hospitais psiquiátricos torna-se o ponto de maior discordância entre os adeptos da Luta Antimanicomial e outras instituições voltadas à saúde mental: para a associação presidida por Sougey e muitas outras, há, sim, a necessidade de um espaço constituído dentro de moldes hospitalares, que ofereça o tratamento adequado aos pacientes possuidores de distúrbios mentais. “Se a cardiologia e a maternidade, por exemplo, possuem um ambiente hospitalar específico, por que não a psiquiatria?”, ele questiona. “Mas os integrantes da luta não concebem que alguém possa defender um modelo de assistência que funcione com a existência de hospitais.”
Sua posição é a de que o ambiente hospitalar deve ser aprimorado, não extinto. E uma das medidas visando esse aprimoramento seria a constituição de equipes multidisciplinares, unindo as mais diversas competências, em um ambiente de estrutura moderna e apropriada – diferente dos modelos popularizados em décadas anteriores. Ainda assim, ele afirma que as instituições de psiquiatria não se posicionam contra as residências terapêuticas ou os lares protegidos – experiências que, segundo ele, tiveram sucesso na Inglaterra (nas chamadas “comunidades terapêuticas”) e foram responsáveis por um processo de humanização da especialidade. Mas sem prescindir do tratamento em ambiente hospitalar.
Uma outra crítica de Sougey à Lei Paulo Delgado, como também é conhecida, diz respeito ao fato de que, segundo o psiquiatra, seu norteamento é mais ideológico do que científico. Um dos indícios que comprovariam esse fato é justamente a utilização do termo que dá nome ao movimento. “Manicômio é uma instituição psiquiátrica para tratar terapeuticamente, em regime fechado, doentes mentais que cometeram crimes sérios”, ele explica. “Se a reforma não estivesse a serviço de uma ideologia, não chamariam hospitais de manicômio, nem psiquiatras de torturadores. A desconstrução de um conhecimento, que possui uma história – mas não a esconde – é muito perigoso. Afinal, a medicina tem andado pra frente”, continua Sougey. “Talvez tenhamos tido uma época difícil, onde o médico ficou desumanizado. Principalmente porque as condições de trabalho, na maioria do tempo, são de enorme dificuldade. Mas discordo do discurso cada vez mais difundido que relega a figura do psiquiatra a um plano de menor importância no tratamento dos distúrbios mentais.”
É partindo do pressuposto de uma disputa política que Sougey refuta a afirmação de que os profissionais da psiquiatria, ao defenderem o modelo hospitalar, estariam desprezando o bem-estar de seus pacientes. “Numa profissão juramentada como a medicina, quem pode, em sã consciência, concordar com um modelo asilar como o que ocorria? Concordar com uma Tamarineira, com 1200 pacientes?”, ele pondera. “Contudo, décadas atrás, não havia outra alternativa. Os tratamentos medicamentosos só começaram a surgir nos anos 1950. Historicamente, é algo muito recente. Ninguém é a favor de ‘holocaustos’ – como no livro ‘Holocausto Brasileiro’, sobre o caso ocorrido em Minas Gerais. O problema é outro: o fato de o modelo de hospitalização ser muito complexo.” Sougey afirma ainda que o único outro país a adotar uma visão de desmonte da prática hospitalar foi a Itália, na reforma da saúde psiquiátrica coordenada por Franco Basaglia – modelo que serviu de referência à reforma implementada no Brasil. Mas para Everton, essa foi uma experiência totalmente fracassada.
A internação em modelo hospitalar, contudo, não prescindiria da aplicação de outros métodos, em conjunto, durante o tratamento. O psiquiatra afirma que isso nem mesmo pode ser considerado novidade, ao citar como exemplo os métodos desenvolvidos por Ulysses Pernambucano no Hospital da Tamarineira (que hoje, inclusive, leva seu nome), durante a década de 1930; lá, o psiquiatra desenvolveu, junto à Anita Paes Barreto, tratamentos que utilizavam, entre outras técnicas, a terapia ocupacional. “Havia uma padaria na Tamarineira, na qual os pacientes faziam seu próprio pão”, lembra o psiquiatra. “Mas ele nunca perdeu a visão científica.”
É essa visão científica que Sougey evoca como maior aliada do tratamento psiquiátrico. Para ele, a resolutibilidade dos problemas psiquiátricos obteve avanço significativo nas últimas três décadas, fazendo com que a realidade, hoje, seja muito diferente daquela do início do sistema psiquiátrico no Brasil. Mas ele afirma que o conhecimento médico desenvolvido e acumulado nesse período vem sendo deixado de lado no atual modelo de assistência. “Defensores da lei chegam a afirmar que não existe doença – o que vemos como um absurdo.” Segundo o psiquiatra, para que a assistência psiquiátrica fosse instituída a partir de preceitos que não os da medicina, ela teria que ter sido desenvolvida a partir da ciência social – o que não é o caso. “Mas nossa visão é médico-naturalista, de forma que o psiquiatra enxergue não apenas o distúrbio, mas a saúde e a pessoa do paciente de forma integral; ainda assim, uma visão médica, científica.”
Assim, a solução dos problemas enxergados por Sougey, pela associação que preside e por outras signatárias do documento “Diretrizes (…)”, seria o investimento massivo e o planejamento detalhado – atitudes que, ele afirma, estiveram ausentes na implantação da Lei de 2001 (ainda que ele admita que o investimento em saúde, em todas as áreas, seja precário).
Diferente do Movimento Antimanicomial, Everton acredita que o investimento na adequação e modernização das estruturas, além das equipes multidisciplinares capacitadas, que criariam um modelo hospitalar distante das chamadas “instituições totais” – aquelas que acabam por retirar a autonomia e os direitos individuais daqueles que nelas são confinados. Assim, as internações não se dariam de forma inadequada, nem por um tempo além do necessário. “Para mim, o discurso de que o hospital, em si, desumaniza, é puramente político. Um hospital preparado, que realmente atenda às necessidades do paciente, não teria esse efeito.”, ele afirma.
Contudo, o tratamento seria sempre voltado para o menor tempo de internação possível e para restabelecer totalmente a capacidade de o indivíduo gerenciar sua própria vida. Esse é um ponto de convergência com as propostas da Lei Paulo Delgado, mas que hoje é executado de outras maneiras – para Sougey, de forma totalmente improvisada. Ele cita como exemplo a adaptação de vários CAPS de forma improvisada, sem sistematização, como determinadas unidades que preveem a internação. Isso acarretaria um contrassenso à própria lei e enfraqueceria um de seus objetivos mais destacados: a desinstitucionalização. “Se o paciente diz que adora o CAPS, ele não demonstra ainda estar institucionalizado? A falta de planejamento vem criando uma colcha de retalhos”, conclui o psiquiatra.
Paciente ou usuário?
Contrapondo-se as falas de Vinícius Suares e Everton Sougey, percebe-se uma diferença no termo utilizado para se referir a uma pessoa portadora de distúrbios mentais que seja atendida pelo sistema de saúde psiquiátrica. Enquanto Vinícius, representante da Luta Antimanicomial, utiliza o termo “usuários”, Sougey dá preferência ao costumeiro pacientes. Mas o que essa diferenciação significa?
Em um artigo intitulado “Da institucionalização da loucura à reforma psiquiátrica: as sete vidas da agenda pública em saúde mental no brasil”, a pesquisadora Eliane Maria Monteiro da Fonte diz o seguinte:
“Como afirma Perrusi (2010: 102-103), o uso de psicotrópicos produziu um processo de diferenciação na clientela psiquiátrica, que não precisa mais ser identificada como reclusa no asilo, produzindo internamentos intermitentes (com duração limitada) e possibilitando a boa parte dos pacientes o uso de serviços extra-hospitalares. Atualmente no Brasil, assim como em muitos outros países, os serviços psiquiátricos e de atenção psicossocial são utilizados voluntariamente pelos pacientes, identificados como ‘usuários’, no papel de doentes, ou seja, ‘num papel reconhecido e sancionado socialmente, como qualquer outro serviço de saúde pública ou privada’, contribuindo para minimizar o estigma da intervenção psiquiátrica. Como resultado conjunto da reforma institucional (hospitalização do asilo + instituições extra-hospitalares), o portador do sofrimento psíquico pôde deixar de ocupar uma linha biográfica, a carreira moral de paciente psiquiátrico, cujo resultado era a cronicidade do paciente, se transformando em usuário.”
Sobre a loucura e a lucidez
Já cantou Caetano Veloso que, de perto, ninguém é normal. Muito provavelmente, dentre as pessoas atendidas no posto de saúde onde Yasmin** trabalha, nenhuma delas seja capaz de imaginar o passado e o histórico em saúde mental da técnica de enfermagem que os assiste. Observam, porém, a dedicação e o bom trato que ela tem com as crianças e o empenho a cada dia de vacinação.
Yasmin, por sua vez, equilibra em sua agenda o trabalho, o andamento da construção de sua casa, os planos para o casamento, os estudos para aprovação em um concurso público e os encontros semanais com sua psiquiatra. Yasmin tem esquizofrenia e se enche de orgulho ao contar que leva uma vida normal.
Ela teve três surtos psicóticos ao longo da vida, que a ensinaram a necessidade de se reerguer. O primeiro, em abril de 2003, foi ocasionado por uma estafa mental e estresse no ambiente de trabalho. O segundo no ano de preparação para o vestibular; e o último, em 2007, pela convicção que a invadiu de que o pai era um suicida. “Eu tranquei meu pai no terraço para que ele não pudesse mais fazer mal a ele mesmo, pois eu tinha em mim a certeza de que ele beber muito significava que ele queria se matar”, conta ela.
Em todas as situações, Yasmin passou por tratamento. Chegou a ser atendida na emergência psiquiátrica do Hospital Otávio de Freitas e foi acompanhada pelos profissionais do CAPS David Capistrano. “Precisei ser socorrida, mas meu tratamento foi mesmo no CAPS, que na minha época tinha uma estrutura muito boa. Mas hoje em dia está bastante sucateado”.
Yasmin conta que após cada episódio, a parte mais difícil é retomar uma vida normal. “As pessoas tendem a não acreditar em você, elas acham que você é inválida”.
“O meu maior sonho e o de muitos pacientes é poder ser respeitado no seu local de trabalho, que seu chefe, seu colega saiba que você foi paciente da saúde mental, mas que saiba que você pode trabalhar, que nos dê uma chance e acredite que a gente tem potencial.”
O relato de Yasmin vem cheio de sonhos: o casamento, a vontade de ser aprovada num concurso público… O maior deles, porém, talvez se concretize na luta diária que ela trava com o mundo para ter uma vida normal. “Eu quero dar o exemplo para que ninguém desista! Qualquer pessoa tem direito de ter loucura, de sofrer das emoções, mas essa pessoa pode se reerguer. O que não pode é a gente ficar excluído ou ser visto como doente pro resto da vida.”
**Nome fictício utilizado a pedido da entrevistada.
*Aline Soares, bacherela em Rádio, TV e Internet pela UFPE e estudante do 4º período de Jornalismo.
*Dandara Palankof e Cruz é radialista, mestranda em comunicação pela UFPB e tradutora de histórias em quadrinhos.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.