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Sob ataque, movimento negro retoma iniciativa, se une e articula Coalizão Negra por Direitos

Débora Britto / 10/12/2019

Crédito: Coalização Negra por Direitos

Sem tempo a perder diante das ameaças à população negra, já em fevereiro, quando poucas vozes repercutiam nacionalmente o perigo do Pacote Anticrime de Moro para a população negra, um grupo de organizações e movimentos tomou uma das primeiras iniciativas contra o projeto ao protocolar formalmente uma denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA) responsável por monitorar a situação dos direitos humanos nos Estados membros.

No início como uma mobilização de organizações e movimentos, o nome Coalizão Negra por Direitos foi definido em junho, após encontros para definir as estratégias e intensificar a pressão no Congresso Nacional, além de fortalecer ações nos estados e municípios. A Coalizão surgiu com o objetivo de enfrentar o Pacote Anticrime no Congresso Nacional, mas carrega também o desafio de dar novo fôlego para o projeto político do povo negro para o Brasil.

Em maio de 2019, a CIDH reconheceu e acatou as denúncias dos movimentos brasileiros na audiência em que discutiu sobre “Sistema Penal e denúncias de violações dos direitos das pessoas afrodescendentes no Brasil”. Uma comitiva de 14 ativistas esteve na Jamaica e participou da audiência, constrangendo o Brasil e o ministro Sérgio Moro com a repreensão internacional ao conteúdo do projeto.

As movimentações também tiveram impacto na Câmara Federal. Após reuniões com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em março, e com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), em junho, a Coalizão conseguiu garantir a participação de representantes do movimento negro nas instâncias de debate sobre o Pacote e ampliar o debate e a pressão para derrubar os pontos considerados mais graves.

O objetivo é garantir a ampliação do debate. Para Bianca Santana, da Uneafro, organização que integra a secretaria operativa da Coalizão, a atuação articulada das mais de 100 organizações e movimentos conquistou vitórias, ainda bem pequenas, com relação à primeira versão do projeto.

Apesar da recente aprovação do Pacote na Câmara Federal, a Coalizão considera que “não há motivos para comemorar a aprovação de um pacote de leis que criminaliza pessoas negras”, mas pondera, em nota oficial, que é preciso “considerar que as excludentes de ilicitude foram barradas no GT penal e não voltaram ao texto aprovado no plenário da Câmara Federal, bem como os aspectos nefastos da ampliação do banco genético de pessoas presas”.

“Conseguimos derrubar alguns itens do pacote. São pequenas vitórias, mas o Moro adotou a estratégia de ir picotando o pacote em vários pontos e ele tem tentado passar isso por dentro do Congresso aos poucos”, avalia Mônica Oliveira, ativista da Articulação Negra de Pernambuco (Anepe), Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e que também faz parte da Coalizão.

O movimento também realizou o Encontro internacional da Coalizão Negra por Direitos, reunindo ativistas de diversos estados brasileiros, além de convidados internacionais. Para Bianca, o saldo do evento foi a renovação de forças e compartilhamento de ideias e estratégias para 2020. 

Plataforma política e eleições 2020

O acompanhamento da tramitação do Pacote Anticrime no Senado continuará, mas o movimento já planeja outras ações no legislativo. “A gente tem como objetivo sair cada vez mais da defensiva e assumir um papel propositivo”, afirma Bianca, para quem os resultados da pressão nos últimos meses já ensinou que é possível avançar, mesmo com um cenário de desvantagem. “É hora de a gente tirar o foco das discordâncias e colocar o foco naquilo que a gente quer construir, que nos une, e com que a gente concorde. E trabalhar conjuntamente. A gente tem muita força quando a gente trabalha conjuntamente”, acredita. 

Antevendo a importância das eleições municipais de 2020, a Coalizão estuda a construção de uma plataforma política para adesão de candidaturas ou, como outra estratégia, pode atuar na formação de candidaturas de pessoas negras. “É algo que está no horizonte e temos um grupo de trabalho desenhando em que termos isso vai acontecer”, garante Bianca.

Apesar da forte incidência no Congresso, a Coalizão não sentou com bancadas partidárias. As agendas construídas com lideranças da Câmara e Senado, por exemplo, foram resultados da articulação direta com parlamentares individuamente. “Procuramos parlamentares negros e negras que tenham uma posição de denúncia do racismo no mínimo ou proposições antirracistas. Em outro momento, também buscamos o apoio solidário de parlamentares não negros que se alinham à luta antirracista”, explicou Bianca.

Reunião com Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Foto: Pedro Borges/Portal Alma Preta

Um exemplo foi o Grupo de Trabalho Processual Pena da Câmara que analisou o projeto do Pacote Anticrime. “A gente tinha três parlamentares aliados: Orlando Silva, deputado negro, o principal deles. Mas tinha também o Paulo Teixeira, do PT, e o Marcelo Freixo, do PSOL”, conta.

Outro passo importante, na avaliação da Coalizão, é a ampliação de espaços de construção entre parlamentares negras e negros. Como possíveis resultados desse estímulo, surgem com folêgo iniciativas como o lançamento da chamada Frente Parlamentar com Participação Popular Feminista e  Antirracista, e, recentemente, e o Projeto de Lei 5.885/2019, que enfrenta o racismo institucional da administração pública. Pela proposta, de autoria de seis parlamentares –  Áurea Carolina (PSOL/MG), Bira do Pindaré (PSB/MA), Damião Feliciano (PDT/PB), Benedita da Silva (PT/RJ), David Miranda (PSOL/RJ), Orlando Silva (PCdoB/SP) – União, estados e municípios deverão ter protocolos e políticas de combate ao racismo institucional, entre outras ações.

Desafios para os movimentos negros

Para Mônica, a atualização do projeto político a partir das transformações que o país viveu nos últimos anos é fundamental para a ação da Coalizão. “O desafio para nós é atualizar essa proposta de projeto político e unificar mais os movimentos e organizações. Temos que atualizar as leituras de realidade, atualizar e chegar a uma ideia um pouco mais consistente”, afirma. “Insisto em dizer que não está se começando nada agora. Isso é algo que já vem sendo trabalhado há muito tempo”, reforça.

Além da plataforma política e atuação no Congresso, a preocupação com a segurança de ativistas e organizações também está na agenda do dia. “Não é de hoje que esse governo anuncia que vai acabar com as organizações, que vai acabar com os movimentos. E eles já têm atuado para isso, então a gente precisa de fato cuidar das militâncias, dos militantes, das organizações para que a luta continue”, lembra Bianca.

I Encontro Internacional do movimento, em novembro. Crédito: Coalizão Negra por Direitos

Passos coletivos vêm de longe 

Tão importante quanto as ações em 2019 é o histórico do movimento negro, que contribui para a continuidade. Para Mônica Oliveira, a Coalizão tem dado continuidade e também recuperado articulações iniciadas pelo movimento negro desde a década de 70. “O diálogo internacional não é coisa nova para movimento negro brasileiro. Nos anos 70, o movimento negro já dialogava com processos de independência de países africanos, com a Palestina. Também o diálogo com movimento afro-americano é uma coisa antiga. As coisas não começam agora”, lembra, e acrescenta que nas últimas décadas as mulheres negras brasileiras estabeleceram um diálogo estreito com o Black Lives Matter, com pesquisadoras e ativistas afro americanas, como Angela Davis.

Um elemento central para análise dos desafios da atualidade é o avanço e estruturação da extrema-direita, aponta Mônica. “O que marca esse momento é o fato de estarmos vivendo avanço da ultradireita, de partidos neoconservadores, de um movimento fascista que está tomando conta da América Latina. Na Europa vem tomando força há duas décadas”, explica. 

Retomadas estaduais

Como parte da estratégia de fortalecimento, a Coalizão tem estimulado a reorganização de movimentos regionais ou estaduais de movimentos negros. Em Pernambuco, estado que tem tradição importante de ativistas e militantes do movimento negro, o retorno da Articulação Negra de Pernambuco (Anepe) é um dos resultados. “As mulheres negras já estavam bastante organizadas, mas havia necessidade de juntar com organizações mistas. A Coalizão nos impulsionou a dar andamento a essas ideias”, conta.

Ativista e referência do movimento de mulheres negras, Mônica recorda que a Anepe existiu no período de 2005 a 2010, com uma formatação diversa, composta por grupos políticos, coletivos, afoxés, maracatus e outros. Para ela, é importante a retomada de articulações amplas em defesa de objetivos comuns. “Estamos numa conjuntura nesse país em que todo mundo tem que estar muito junto para poder resistir. Não dá para fazer a luta de maneira isolada”, argumenta.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.