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Imagens que aparecem na tela e somem rapidamente mostram manchas e feridas. “Se no mundo acontece um milhão de casos de IST (infecções sexualmente transmissíveis) todo dia, para que arriscar a sua saúde nessa perigosa loteria?”, narra um jovem, enquanto faces igualmente jovens e preocupadas surgem na tela. A campanha de carnaval do Ministério da Saúde neste ano, com slogan de “Usar camisinha é uma responsa de todos”, gerou críticas em instituições que trabalham com jovens e HIV/Aids.
Isso porque a campanha vai pelo viés do reforço negativo, o que leva a estigmatização não só da doença, mas dos doentes. “Quando eu vi, me lembrou as campanhas que eram feitas no início da epidemia de HIV, há quase 40 anos, quando o Estado se isentava e responsabilizava a pessoa pela infecção”, diz Wladimir Reis, coordenador geral da GPT+, ong que atua na educação e saúde preventiva.
Para Jô Menezes, da Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero, é uma campanha que volta a trabalhar com o medo. “Tem uma proposta de temor, e não uma proposta de diálogo sobre prevenção. Há também um desrespeito com quem convive com HIV/Aids, porque reforça o estigma. O ´você tem que ter medo da doença´ estimula o ´você tem que ter medo do doente´, que é algo que combatemos tanto ao longo dos anos”, lamenta.
Jô também faz um link com a campanha de prevenção à gravidez na adolescência, lançada pelo Ministério da Saúde na mesma semana, e que ficou conhecida como a “campanha da abstinência”. “As duas campanhas se alinham porque não propõem um diálogo sobre a vivência da sexualidade. Parece que a mensagem que fica é assim: `não transe! e, se você transar, olhe aí o que pode acontecer, cuidado!`”, acredita.
Um dos coordenadores do Bigu, coletivo que trabalha com ativismo na comunicação entre jovens, Thiago Jerohan também estabeleceu uma ligação entre as campanhas. “Ninguém é responsabilizado porque comeu muita gordura e agora tem hipertensão. Ninguém é responsabilizado porque levou chuva e está resfriado. Mas as pessoas são responsabilizadas moralmente pelo sexo – não pela infecção. Há uma criminalização do sexo e da juventude, que está muito atrelada ao discurso da campanha de Damares (Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) sobre abstinência. Essa campanha do carnaval diz que é sobre camisinha, mas na verdade é sobre o medo de transar”, diz.
Nem mesmo a rima que o Ministério da Saúde afirma ter sido inspirada na “poesia slam” é vista como positiva. “É um texto todo rimado, como um poema, mas tem um discurso amedrontador. É a tática de ter medo do sexo, do prazer, para fomentar a abstinência e colocar as pessoas com HIV e outras ISTs em um lugar moral, e não de saúde pública. Esse discurso moralista afasta as pessoas da prevenção, do teste e do tratamento. Acaba alimentando uma cultura de preconceito”, analisa.
Em nota, a Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/Aids repudiou as campanhas e a fala do presidente Jair Bolsonaro, dada no começo deste mês, de que as pessoas com HIV/Aids eram uma “despesa”. “A desinformação e a irracionalidade dos argumentos por chefes de estado têm sido uma tática recorrente para avançar em um modelo de sociedade onde a mercantilização dos direitos sociais é a peça da vez”, diz trecho da nota.
Outra crítica dos movimentos é sobre a falta de diálogo com a sociedade civil ao se construir as campanhas do Ministério da Saúde. Representante em Pernambuco da Rede Nacional de Pessoas Convivendo com HIV/Aids, José Cândido lembra que até antes do governo Michel Temer havia reuniões para sugestões e colaborações.
“A gente discutia, opinava. Aceitavam algumas propostas e recusavam outras, mas a gente era ouvido, havia uma construção. É difícil, claro, que tenha uma campanha 100% aprovada pelos movimentos, mas essa é uma campanha sem foco, antiquada, colocada goela abaixa”, diz José Cândido.
Em dezembro passado, a campanha do Dia Mundial da Aids também foi alvo de críticas. “Outras formas de prevenção, além da camisinha, estão sendo ‘esquecidas’ pelas campanhas. Não se fala da PEP (profilaxia pós-exposição), da Prep (pré-exposição), desses novos métodos como um todo”, reclama Cândido.
Para Jerohan, é uma estratégia do Ministério da Saúde. “O governo está apostando em falta de informação, porque o próprio site tem uma mandala com 9 estratégias de prevenção e o MS foca somente na camisinha e não fala nas outras formas, está omitindo informações importantes para a população. Omite inclusive a questão de tratamento e o que fazer se for infectado. É uma campanha focada no medo e sem saída: o discurso é de que não se tem o que fazer. Assim, o estado se isenta de oferecer as medicações necessárias”, diz.
Para o publicitário Giovanni di Carlli, da agência BG9, a campanha de carnaval do Ministério da Saúde dá o recado. “Ela cumpre seu papel. Aborda o tema de forma muito direta”, acredita. “Estamos vivendo tempos de um grau de intolerância muito grande, então qualquer escorregãozinho as pessoas reclamam. Achei que a mensagem foi passada de forma responsável”, diz.
Do ponto de visto técnico, Giovanni diz que é uma produção de “primeira linha”. “A fotografia, a direção e a abordagem estão dentro dos padrões”, afirma.
Professor de publicidade e propaganda na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Fernando Fontanella afirma que a peça é datada. “É uma campanha que dá ênfase ao estímulo negativo. É uma abordagem ingênua. É um tipo de campanha que é feita por quem não está inserido na discussão, o que não é o que se espera de um Ministério da Saúde, que deveria ter uma expertise no assunto”, afirma.
De acordo com o professor, a publicidade contemporânea tenta construir a motivação por meio de estímulos positivos. “Para quem faz campanha o desafio é a motivação. Você pode fazer uma abordagem racional, a pessoa vai entender e concordar, mas não necessariamente agir. Não só basta convencer, mas tem que trazer o motivacional – e isso é com emoção. Essa campanha traz a emoção, que é o medo. Pode ser eficaz, mas a publicidade pode tentar construir essa motivação em cima do coletivo e não com uma campanha que vai pelo egoísmo”, diz.
Fontanella vê as recentes campanhas do Ministério da Saúde como uma tendência do governo Bolsonaro. “Trabalha muito com o moralismo. Na perspectiva também de apontar um culpado. Mas isso é feito de uma forma até sutil, em um governo que não trabalha com sutilezas”, comenta.
Não é fácil achar a campanha no site do Ministério da Saúde, repleto de banners e notícias sobre o coronavírus, que, até a véspera do carnaval, ainda não tinha caso confirmado no Brasil. Não há nenhuma chamada na home do site para a campanha de carnaval.
Na página de Facebook do Ministério da Saúde há quatro postagens sobre a campanha. A mais recente é do dia 15 de fevereiro, com um gif de camisinha e o slogan. No texto, o MS recomenda: “se notar sinais de uma IST, procure uma unidade de saúde e informe-se”. Sem dizer quais seriam esses sinais – e sem considerar que algumas ISTs demoram meses ou anos para manifestar sinais.
A segunda postagem, de 11 de fevereiro, um dia dia após o lançamento oficial, avisa que “Comportamento de risco eleva infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) no Brasil”, reforçando o tom moralista da campanha.
Além da invisibilidade nos meios oficiais, o lançamento da campanha também foi discreto. O ministro Luiz Henrique Mandetta participou de um evento na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, no segundo sábado de fevereiro.
Foi bem diferente da campanha de prevenção à gravidez, a chamada campanha da abstinência, que contou com coletiva de imprensa em Brasília, exibida ao vivo pelas redes do MS, com a presença da ministra Damares Alves, que contou na ocasião que passou um ano construindo a campanha junto ao Ministério da Saúde. A ideia é de que a campanha da abstinência seja levada para as escolas após o carnaval.
A Marco Zero questionou o Ministério da Saúde sobre os gastos com produção e veiculação das campanhas, além do período de cada uma e espaço nas mídias.
Em nota, o Ministério respondeu que a campanha do uso da camisinha será veiculada durante o ano de 2020 todo. “A campanha é permanente e veiculada em TVs aberta e fechada, rádio, mídia exterior, internet e cinema. Foram investidos R$ 15 milhões”.
Sobre a da abstinência, o Ministério afirma que “fez parte da Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, instituída pelo governo federal, no ano passado, por meio da lei nº 13.798”. A campanha aconteceu na primeira semana de fevereiro. O orçamento, para apenas uma semana, foi de R$ 3,5 milhões para TV aberta, mídia exterior e internet.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org