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Raull Santiago: ‘Na pandemia, descaso do governo impacta mais a favela’

Marco Zero Conteúdo / 24/03/2020

Raull (à dir.) segura faixa colocada em uma das entradas do Alemão | Foto: Beto Fábio/Coletivo Papo Reto

Arthur Stabile, da Ponte Jornalismo

Isolamento e lavar as mãos são algumas das iniciativas para combater a
proliferação do coronavírus. Mas como evitar o contágio nas favelas, em
locais com várias pessoas e a maioria trabalhadora, que não pode
interromper seu ganha pão senão não terá o que comer? Ações para incluir
a favela no combater a pandemia são levantadas por Raull Santiago,
ativista do Rio de Janeiro que mora e atua no Complexo do Alemão, zona
norte da capital fluminense.

Carros de som, cartazes e faixas são uma das formas de informar as
pessoas. Coletivos das próprias comunidades têm feito essas ações, sem
contar com ajuda do poder público. “Como sempre, o senso de comunidade,
um pelo outro, é o que tem crescido, todos juntos, mas cada um no seu
quadrado, se fortalecendo. Tenho visto mais avanço das iniciativas das
próprias pessoas que vivem essa realidade da dificuldade”, afirma Raull.

Segundo o ativista, a falta de água e a fome, que começam a se intensificar nas casas mais pobres, são alguns dos principais pontos a serem combatidos, seja pelo poder público, que tem sido omisso, segundo ele, ou pela própria comunidade. “A pandemia veio para expor a gravidade do país, o quanto a desigualdade é gritante. Ficamos em segundo plano tendo que sobreviver por conta própria, pedindo doação para o mundo inteiro”, lamenta.

Ponte Como as favelas estão se organizado para combater o coronavírus?

Raull Santiago – Fundamos no Complexo do Alemão um
gabinete de crise. Uma moradora ativista da luta por moradia, Camila
Santos, provocou alguns de nós, como Voz das Comunidades e o Coletivo Papo Reto
e outras pessoas foram se aproximando. Esse gabinete evoluiu para
fortalecer um movimento anterior que existia através da junção de várias
instituições do Alemão, chamada Juntos Pelo Complexo do Alemão. E aí o
movimento começou a fazer duas frentes de trabalho: uma de
conscientização interna sobre a importância de fazer o máximo para
evitar que o coronavírus chegue na realidade da favela, e outra, com uma
pressão para fora, para o poder público e a sociedade perceberem a
gravidade e a diferença, a marca da desigualdade social na realidade do
tratamento do corona na favela para dentro e na favela para fora. Para
isso também começamos a pedir algumas doações.

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PonteO que pode ser feito para evitar a disseminação?

Raull Santiago – O que acontece: primeiro que a
distribuição de água aqui no Complexo não é regrado, algo diário em que
todos os dias as pessoas têm água. Tem muitos pontos que faltam água.
Inclusive hoje postei no meu Facebook pedindo para a galera comentar
onde não tinha água e houve vários comentários de muitos pontos. Então a
gente não consegue seguir as dicas básicas da Organização Mundial da
Saúde, do Ministério da Saúde sobre, por exemplo, lavar as mãos o tempo
inteiro quando chegar ou sair para a rua, quando tiver contato com outra
pessoa. Essa higienização básica de lavar com água e sabão, que é mais
barato do que o álcool em gel, nem todo mundo consegue fazer nesse
momento. Já tem essa marca da desigualdade.

Raull é morador e atua no Complexo do Alemão, zona norte do Rio | Foto: Reprodução/Facebook

Ponte Há outras questões?

Raull Santiago – Tem muitas famílias extremamente
pobres, que vivem uma vida muito difícil e não têm condições de comprar
sabonete antisséptico, álcool gel e todos esses materiais indicados por
serem substâncias capazes de remover ou evitar que o coronavírus entre
no corpo dessas pessoas. Não tem água e para muitos desses mais pobres
também não existe grana para comprar esses materiais, então fica esse
limbo de dificuldade. Ainda nesse conjunto de pessoas extremamente
pobres, muitas delas sobrevivem de seu trabalho diário: camelôs,
catadores, reciclistas, pedreiros, a tia da cantina. Várias pessoas que
têm no seu dia a dia a sua renda principal, desde a proposta de
quarentena e isolamento, estão começando a passar dificuldade. A pessoa
vive do dinheiro que entra todo dia para suprir suas necessidades
mínimas. Hoje, tanto no Voz da Comunidade e no Papo Reto, temos recebido
muitas pessoas falando da dificuldade e da fome. Não é a completa fome,
mas gente que não tem mais arroz, tem só o feijão, e não tem o dinheiro
para comprar. Começa a essas faltas acontecerem.

Ponte Como combater?

Raull Santiago – Temos feito uma mobilização para
ajudar nas pressões públicas importantes que estão surgindo, como a
renda básica: um projeto de lei, iniciativa de várias instituições,
pressionando o Estado para garantir a renda mínima dessa pessoas, mas
também doação de dinheiro e de produtos como água sanitária, álcool em
gel e alimento. Alimento por quê? Porque acreditamos que uma das coisas
que pode gerar contaminação é a quantidade de pessoas que ainda estão na
rua. Por mais que esteja diminuindo, que a conscientização tenha
avançado, são muitas pessoas na rua. Mas elas estão na rua pela
necessidade, são as que dependem do dia a dia para gerar uma renda e
comprar comida. Elas que estão vagando aleatórias, esperando fazer um
bico, um trabalho qualquer, uma ajuda que venha para conseguir ter o que
comer.

Ponte Como evitar essa situação?

Raull Santiago – Garantir essa renda mínima e uma
cesta básica legal, que dure um mês, que garanta que aquela família e
garanta as pessoas. É mais uma ferramenta para que elas não fiquem nas
ruas e se concentrem em casa por não estarem passando fome. Temos
tentado chamar atenção a isso: não tem como fazer muitas vezes essa
higiene minima e é grave evitar que o vírus chegue e se prolifere porque
todo mundo que conhece a realidade da favela é que são casas humildes,
muito próximas, com poucos cômodos e muitas pessoas. A possibilidade de
quarentena, de isolamento do indivíduo, é algo impossível. Na minha
própria casa, se alguém de nós fica doente não tem possibilidade de
isolamento, moro com cinco pessoas. Não tem como destinar um cômodo para
uma só pessoal.

Ponte Quais ações para informar as pessoas?

Raull Santiago – Um processo é a tentativa de
fomentar uma comunicação interna que dialogue de forma profunda com a
realidade da favela. Ainda hoje, muita pessoas não têm televisão, não
têm acesso à internet. Mesmo as dicas básicas que nem sempre se encaixam
na nossa realidade, tem gente que nem isso acessa. O que fizemos?
Usamos a principal estratégia que dialoga com todo mundo dentro da
favela, que é colocar faixas nas entradas, colar cartazes com dicas em
pontos estratégicos, como o moto-táxi, de transporte alternativo,
farmácias e também circular um carro de som com as dicas e as indicações
da OMS [Organização Mundial da Saúde] e Ministério da Saúde, mas também
dicas locais, como doar água para o vizinho que não tem, fomentando a
coletividade.

Ponte E o que tem visto entre os moradores?

Raull Santiago – Nas comunidades e favelas tem
rolado muito essas iniciativas de conscientização coletiva. Um pelo
outro, um pela outra, monitoramento dos idosos… Vejo algumas pessoas
andando pela rua e quando passam por um idoso perguntam para onde estão
indo, fala para tomar cuidado. Usando a leveza da fala, mas por um
cuidado real. Nos grupos de WhatsApp tenho visto crescer os áudios das
pessoas, não os compartilhados, mas gravados por elas mesmas, chamando a
atenção para o cuidado.

Aviso com informe de como as pessoas devem se proteger | Foto: Bento Fábio/Papo Reto

Ponte Vêm algo por parte do governo?

Raull Santiago – Efetivamente, de ações do governo,
não tenho visto coisas reais acontecendo. Estamos vendo proposta de PL
[Projeto de Lei], um monte de reunião, de vai, não vai, mas nada
avançando, pelo contrário. Quando observamos a nível federal, a nível
Jair Bolsonaro, temos um completo descaso, ouso dizer até um crime, o
que tem sido trazido de discurso pelo presidente do país que trata o
coronavírus, que tem matado tanta gente no mundo, inclusive no Brasil,
como “viruzinho”, uma coisa que vai passar… Esse desdém é triste. Há
mais um descaso do governo, se somando a todo histórico de desigualdade
que a gente já vive, na pandemia, especificamente, um descaso e
desrespeito com a sociedade como um todo, mas que impacta mais a favela.

Ponte Mas há alguma ação de fora?

Raull Santiago – Como sempre, o senso de comunidade,
um pelo outro, é o que tem crescido, todos juntos, mas cada um no seu
quadrado, se fortalecendo. Tenho visto mais avanço das iniciativas das
próprias pessoas que vivem essa realidade da dificuldade, mais algumas
pessoas parceiras do mundo artístico, com alta visibilidade, do que
estratégia do governo, que está batendo cabeça. O governo sabe que a
histórica desigualdade da favela não será resolvida de uma vez, não dará
para fazer de uma vez tudo o que não foi feito para ajudar essas
pessoas. A pandemia, falei isso hoje, veio para expor a gravidade do
país, o quanto a desigualdade é gritante. Ficamos em segundo plano tendo
que sobreviver por conta própria, pedindo doação para o mundo inteiro.

Ponte Como vê propostas como as de mandar pessoas doentes para navios ou para estádios?

Raull Santiago – Sobre mandar para navios ou estádios, é muito grave. Nos outros países do mundo, quando estão mandando pessoas contaminadas ou para hotéis ou para navios, não tem uma distinção se é rica ou pobre. As pessoas são tratadas como iguais em um serviço para a coletividade. Aqui, não. Há um recorte específico para a populações negras, periféricas, faveladas. Me preocupa quais as condições e formatos de acompanhamentos das pessoas nesses espaços, se é um local de isolamento, aprisionamento desses corpos que “precisam sair de circulação porque não são bem vistos na realidade que vivemos, estão vamos isolar elas daqui”, ou qual outro motivo? É muito preocupante essa ser a principal solução e, ao mesmo tempo, escancara o quanto o distanciamento social é grande no nosso país.

AUTOR
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Marco Zero Conteúdo

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