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Por Rogério Sottili*
Há 56 anos se instalava no Brasil uma ditadura sangrenta, que matou, torturou, exilou e fez desaparecer milhares de brasileiros – indígenas, camponeses, operários, intelectuais, jornalistas e estudantes. Casos emblemáticos, como o do jornalista Vladimir Herzog, assim como o do pernambucano Fernando Santa Cruz e o do alagoano Luiz Almeida Araújo, se somam aos mais de 400 mortos e desaparecidos políticos.
Relembrar
essa história não tem a ver somente com o que já aconteceu. Nosso
passado está intrinsicamente relacionado com o presente e com o
projeto de futuro que desejamos construir para nossa nação.
Em
31 de março de 1964, o Brasil começou a viver um período em que
prevalecia a força e a destruição do Estado de Direito, com
sequestros de crianças, desaparecimentos forçados, assassinatos,
censura e violência generalizada.
A
violência de Estado do presente, principalmente contra as populações
pobres, negras e periféricas, é reflexo de um passado sombrio, cuja
violência não foi superada porque nossa sociedade não promoveu uma
justiça de transição capaz de levar a julgamento os responsáveis
por crimes de lesa humanidade, como torturas e assassinatos.
O
Brasil precisa construir sua memória, defender a verdade e promover
a reparação e a justiça em relação ao genocídio indígena, aos
três séculos de escravidão, à ditadura militar e ao genocídio
das populações negras, pobres e periféricas.
Somos
um país violento porque nunca elaboramos adequadamente os processos
históricos de violência, desde a chegada dos europeus que dizimaram
os povos indígenas até as duas ditaduras, passando pelos 300 anos
de escravização de pessoas sequestradas no continente africano.
E
por isso que convivemos com homenagens aos assassinos e torturadores
de nossa história em nomes de escolas, ruas, praças, avenidas e
estradas. É por isso que um presidente é eleito com discurso de
ódio e violência e fazendo apologia à tortura.
É o
desconhecimento da nossa história que faz com que parte da população
apoie o risco de transformarmos o país em um dos maiores focos da
tragédia da pandemia do coronavírus pelo descaso do poder público
e pelo desmonte de políticas públicas ligadas a saúde, assistência
social e direitos humanos, frutos de lutas e conquistas dos
movimentos sociais e da sociedade civil organizada.
É
ainda pouco conhecida a epidemia de meningite que acometeu a cidade
de São Paulo, entre 1971 e 1975, durante o governo do ditador Emílio
Garrastazu Médici. Na época, o aumento vertiginoso de casos que se
alastrou pela cidade e chegou a um índice de letalidade de 14% em
1972, mas foi acobertado pela censura e pela cumplicidade de
autoridades. As principais vítimas foram crianças de até cinco
anos e suspeita-se que a maioria das vítimas da meningite tenha sido
enterrada na Vala Clandestina de Perus – uma chaga aberta na
capital paulista.
Recentemente,
o governo federal tentou, com a medida provisória (MP) nº 928,
dificultar o acesso à informação e à transparência em relação
à pandemia do coronavírus. Tal medida colocaria a transparência e
o controle social em um lugar secundário, justamente quando a
população sofre com a desinformação em meio a uma crise sem
precedentes. Isso prejudicaria o direito das pessoas de terem
informação sobre as ações governamentais de enfrentamento à
epidemia. Posteriormente, esse trecho foi suspenso pelo Supremo
Tribunal Federal, justamente pelo entendimento de que a medida viola
o direito constitucional de acesso a informações de interesse
coletivo.
Em
vez de estabelecer novos procedimentos que dificultam o acesso a
informações, o governo federal deveria seguir o exemplo dos países
que foram mais bem-sucedidos no combate à pandemia do coronavírus e
ampliar a transparência, orientando estados e municípios a fazerem
o mesmo.
E
por que nesta crise sem precedentes o governo tenta impedir o livre
acesso às informações? Porque este era um expediente corriqueiro
no regime autoritário da ditadura civil-militar que vivemos de 1964
a 1985.
Violência
de Estado, ameaças e intimidação de jornalistas, omissão de
informações de interesse público, perseguição e assassinatos de
defensores de direitos humanos. Já vimos e vivemos essas atrocidades
antes.
Para
que esse triste cenário não mais se repita, devemos enfrentar nossa
atual realidade. Este é o momento de o Supremo Tribunal Federal
pautar em sua agenda a reinterpretação da Lei de Anistia, seguindo
os acordos internacionais que o Brasil ratificou e assinou de forma
voluntária, para que seja possível a responsabilização dos
artífices de crimes de lesa humanidade e para que os agentes de
Estado não permaneçam na impunidade.
Conhecer
nosso passado, responsabilizar os criminosos e respeitar o Estado de
Direito e os acordos internacionais são tarefas fundamentais para
que o Brasil possa, nos dias de hoje, sonhar com justiça.
Pensar
no passado para que o Brasil possa definitivamente ser uma país que
se reinvente, se repactue socialmente, repense o papel do Estado e
para podermos viver uma vida, no presente e no futuro, fundada na
liberdade, no respeito ao outro e ao planeta.
Ainda
que estejamos em isolamento social para evitar a transmissão do
coronavírus, precisamos agir com os meios disponíveis para que,
quando esta pandemia cessar, possamos construir um novo pacto
civilizatório, em que a dignidade humana seja um princípio basilar.
Baltazar Garzon, um
dos mais importante e corajosos juízes do mundo, está na UTI em
Madrid, em estado grave, devido à covid-19. Foi ele que prendeu o
ex-general e ditador chileno Augusto Pinochet, em Londres, em 1998,
por ter cometido crimes de lesa humanidade. O Chile não fez uma
justiça de transição adequada e necessitou da coragem de Garzon
para dar exemplo ao povo chileno para que respeitasse os acordos
internacionais, os direitos humanos e a democracia.
Precisamos
assimilar o que está acontecendo com o Brasil e com o mundo para
sermos melhores. Que o exemplo de Baltazar Garzon encoraje nosso
judiciário a ter coragem de fazer história.
A
impunidade do passado e do presente estão umbilicalmente
relacionadas. Assim, as violências de ontem e as de hoje devem ser
julgadas pelos tribunais nacionais e internacionais. O Brasil foi
condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos (OEA) sob o entendimento de que
os crimes de lesa humanidade são crimes como os de guerra e de
genocídios. Ou seja, não expiram e ameaçam a paz e a segurança da
humanidade.
Por
tudo isso, entendemos ser absolutamente fundamental uma
reinterpretação da Lei de Anistia. Somente assim seremos capazes de
construir um país mais justo e menos desigual.
Rogério Sottili é diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.