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Dificuldade de acessar auxílio emergencial expõe indígenas venezuelanos à Covid-19 e à fome no Recife

Maria Carolina Santos / 19/05/2020

Os indígenas da etnia warao, originários da Venezuela, viviam no Recife desde o ano passado basicamente de doações e do que chamam de coleta, pedindo dinheiro em sinais e nas ruas. Povo em intensa migração no Brasil desde 2018, os waraos se encontram à margem do trabalho formal. A pandemia do coronavírus os deixou ainda mais vulneráveis. Há duas semanas, um idoso de 81 anos morreu em uma das três casas comunitárias onde vivem os cerca de cem indígenas no Recife. Impossibilitados de fazer a coleta e com as doações diminuindo, os waraos ainda encontram dificuldades para conseguir o auxílio emergencial do Governo Federal.

Divididos em duas casas na Rua dos Prazeres e uma na Rua Gouveia de Barros, todas na região central do Recife, a maioria dos moradores não fala português, nem espanhol, mas apenas a língua warao. Um dos representantes das cinco famílias que dividem a casa na Gouveia de Barros, Juan Perez conta que dos 15 adultos residentes, apenas cinco conseguiram o benefício emergencial.

“Está muito difícil para nós. Não estamos mais saindo. As doações chegam, mas não é todo dia. É uma vez a cada três ou quatro dias”, conta Juan, que diz que não há doentes na residência onde moram 32 pessoas, sendo 15 crianças. “Fui na Caixa, peguei o protocolo, mas meu auxílio foi negado”, lamenta Juan. “Quem já recebeu o auxílio, ajuda a comprar arroz e frango”, diz, sobre a base da alimentação dos waraos no Recife.

O direito ao auxílio emergencial é garantido para migrantes e refugiados, como os waraos, explica o defensor público da União André Carneiro Leão. “Estamos vendo uma resistência nas agências daqui da Caixa Econômica Federal. Alguns dos indígenas só têm cédula de identidade da Venezuela e o documento de refugiado. Houve uma ação civil pública, feita pela defensoria em São Paulo, mas que tem abrangência nacional, para que fosse garantido o cumprimento da lei 9474 que prevê a flexibilização dos documentos para refugiados”, detalha o defensor.

Por ora, a Defensoria Pública da União enviou um ofício circular para a Caixa Econômica, para que cumpra a lei. “Em algumas agências está sendo cumprido, em outras não”, diz André. A DPU avalia ainda outras ações para garantir o auxílio aos waraos.

Óbito por coronavírus

No dia 6 de maio, Francisco José Burio, 81 anos, faleceu em um das casas da Rua dos Prazeres e o exame confirmando o coronavírus só saiu após a morte. Os demais moradores da casa não foram testados. A Prefeitura do Recife ofereceu um abrigo para quem apresentasse sintomas da Covid-19, e não precisasse de internação hospitalar, pudesse ficar em isolamento. A prefeitura também fez vacinação contra gripe entre os moradores das duas casas da Rua dos Prazeres, já que os moradores costumam frequentar ambas as casas. Também foi feita a sanitização da casa onde ocorreu o óbito.

“Foi acertado o abrigo para se fazer o isolamento, mas não quiseram ir. Existe esse desejo de todos permanecerem juntos, várias famílias, é uma dinâmica diferente da nossa, uma outra visão de mundo”, diz o defensor público do estado, Henrique da Fonte. “Houve uma resistência inicial em relação à vacinação contra a gripe, mas, com diálogo, aceitaram. Há muitas diferenças culturais. Tem que haver diálogo e conscientização”, explica

Para evitar a disseminação do coronavírus nas casas, a Cáritas faz campanhas de arrecadação não só de alimentos, mas também de material de limpeza, álcool em gel e máscaras. “Com a pandemia, estamos atuando, junto com a prefeitura, na sensibilização para que eles reforcem a higiene e usem máscaras. É uma cultura bem diferente da nossa e precisa haver uma sensibilização sobre a necessidade do isolamento”, afirma Lucina Florêncio, da direção de migração da Cáritas.

A pandemia também mudou a dinâmica da rede de apoio que os waraos tinham. As doações da Cáritas, por exemplo, vão agora para um convento perto, e eles vão até lá fazer a retirada. O contato com as defensorias é feito apenas por telefone.

Mudança de casas

Até pouco depois do carnaval, o maior grupo de indígenas habitava duas precárias casas na Rua da Glória, no centro do Recife, que não ofereciam condições mínimas de moradia. “Uma era condenada pela Defesa Civil e a outra apresentava rachaduras”, conta o defensor André Carneiro. Em outubro do ano passado, a Marco Zero visitou as casas e relatou a precariedade em que os waraos viviam.

Sem falar português nem espanhol, indígenas venezuelanos lutam para sobreviver no Recife

Por meio do Comitê Interinstitucional em Favor de Migrantes, Pessoas de em Situação de Migração, Refúgio e Apátrida foi criada uma rede de apoio, que inclui as defensorias públicas, entidades assistenciais e universidades.

Em fevereiro deste ano, após chuvas fortes antes do carnaval, os waraos procuraram o grupo em desespero com a possibilidade das casas desabarem. “Ajuizamos então uma ação e foi deferida uma liminar para que a Prefeitura do Recife fizesse em 15 dias o acolhimento humanitário. A prefeitura recorreu e conseguiu postergar o cumprimento em 60 dias”, lembra o defensor.

Mas antes do término do prazo judicial houve um acordo com a prefeitura. “Tínhamos receio de que pudesse acontecer uma tragédia. A prefeitura se comprometeu a pagar um valor de auxílio aluguel para 15 famílias. Esse valor foi fechado em R$ 3 mil e foram alugadas duas casas”, afirma. A Cáritas ficou como responsável financeira pelas casas dos waraos, que permaneceram no tradicional arranjo com várias famílias em uma habitação.

O desafio da sobrevivência pós-pandemia permanece, já que os waraos contam majoritariamente com doações. “É um grupo que, antes da pandemia, estava em constante migração. No começo do ano, havia cerca de 170 pessoas da etnia warao no Recife. Hoje, calculamos em cem. Alguns foram para João Pessoa, Campina Grande, outros lugares do Brasil. Eles têm uma ligação muito forte com a água, é um povo que morava perto de uma foz de rio na Venezuela. O trabalho urbano não faz parte da realidade deles. No Norte do Brasil, uma das saídas foi a criação de cooperativas. Eles estão migrando pelo Brasil e é uma situação que grande parte das capitais vai ter que pensar”, reflete Luciana Florêncio.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org