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Autorização para uso do nome social impulsiona candidaturas de pessoas trans em Pernambuco

Kleber Nunes / 30/10/2020

Candidata a vereadora em Pesqueira pelo Republicanos, Genilde Lima diz que sabe da responsabilidade de se colocar na disputa e quer deixar um legado. Crédito: Divulgação

Durante pelo menos seis anos, a universitária Sofia Fragoso precisou se virar com o CPF e as carteirinhas de estudante e do SUS para usufruir de algum tipo de serviço que demandasse sua identificação. Quando a burocracia era maior e a forçava a sacar o RG, tinha que se preparar para enfrentar questionamentos e olhares de discriminação. Sofia é uma mulher trans.

“Aconteceram vários episódios de transfobia em consultórios médicos, por exemplo, precisar entregar o documento não retificado, se recusarem a me chamar de Sofia. As pessoas costumam acreditar mais em um pedaço de papel do que na sua auto afirmação”, relembrou.

Hoje com 24 anos, Sofia, miss trans Pernambuco 2019, é candidata a vereadora em Caruaru, no Agreste, pelo PC do B. Sua estreia na corrida eleitoral coincide com a aplicação da norma do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que permitirá, pela primeira vez, num pleito municipal, que candidatos e candidatas, transgêneros, travestis e transexuais exerçam o direito de ter o nome social na urna.

Ao todo, as eleições 2020 terão 171 candidatos e candidatas concorrendo com o nome social em todo o Brasil, número seis vezes maior do que em 2018 quando a resolução entrou em vigor. Ainda segundo o TSE, no Nordeste serão 49 postulantes a prefeituras e câmaras legislativas municipais beneficiados pela regra. Em Pernambuco, o tribunal contabiliza sete registros, todos para o mandato de vereador ou vereadora, contra apenas uma candidata inscrita em 2018.

No estado, as candidaturas que optaram pelo uso do nome social estão distribuídas em seis partidos – DEM, PDT, Republicanos, Psol, PC do B e PT – que concorrem em cidades do Sertão, Agreste, da Zona da Mata Sul e Região Metropolitana do Recife.

O nome social é aquele com o qual a pessoa se identifica e se apresenta. Esse tipo de designação muda com a retificação de todos os documentos, quando o nome social passa de fato a ser o nome civil. Para o TSE, a opção pelo nome social é autodeclaratória e deve ser informada no momento do registro eleitoral.

Embora tenha conseguido retificar todos os documentos pessoais em fevereiro deste ano, Sofia chegou a enfrentar problemas com a Receita Federal quando tentou fazer seu registro no TSE. A candidata aparecia no cadastro do órgão com o nome antigo e o recém-oficializado.

Sofia reconhece a importância do nome social na urna, mas diz que a medida demorou muito tempo para ser implementada no Brasil. Crédito: Divulgação

“Essa decisão do TSE é uma forma de dar dignidade a todos e todas nós que sofremos um processo histórico de discriminação. Com certeza, é um marco da nossa luta, mas aconteceu bem tarde. Por isso, considero uma comemoração mixuruca porque mostra bem a transfobia institucional que ainda existe neste país”, afirmou Sofia.

Postulante do Republicanos à Câmara Municipal de Pesqueira, no Sertão, Genilde Lima é uma das duas candidatas no estado que ainda tem os registros civis com o nome masculino. Ela diz saber a importância de ter o direito de ser reconhecida no processo eleitoral com o nome que a identifica.

“Essa é mais uma conquista importante. Quantas pessoas não morreram lutando por esse direito? Sou uma das primeiras mulheres trans de Pesqueira e sei da responsabilidade que tenho ao me colocar na disputa eleitoral com toda minha história, mostrando que nosso caráter não está na nossa sexualidade, mas na nossa capacidade política”, declarou.

Para Ladja Santos, 32, que compõe uma chapa coletiva do Psol com outra mulher trans, a Carla Félix, em Caruaru, ter o direito de usar o seu “nome de verdade” é menos um constrangimento a ser enfrentado. “A discriminação acompanha a gente todos os dias, ainda mais para mim que comecei a transição aos 23 anos. Dói ser chamada por um nome que você não se identifica, ao menos no nosso direito de ser candidata não passamos mais por isso”, disse.

Ladja (d) compõe chapa coletiva em Caruaru. Crédito: Divulgação

No decorrer da campanha eleitoral, Ladja diz que tem percebido mais curiosidade dos eleitores em conhecer sua plataforma, e ela atribui esse interesse ao fato de poder usar o nome com que sempre se identificou. “Juntou com a questão da chapa coletiva, as pessoas querem entender como funciona e acabam nos conhecendo melhor e o que propomos para Caruaru”, contou.

Sofia Fragoso também reconhece que a norma do TSE evita mais um aborrecimento na disputa política, “um ambiente tão marcado pelo machismo”. “Alguns tentam nos limitar a falar de pautas que sejam só do universo LGBTQI, mas nós provamos que podemos debater sobre tudo. Minha campanha tem um programa aberto nas redes sociais com 46 propostas para a cidade”, afirmou.

Genilde Lima diz que os obstáculos só servem para encorajá-la ainda mais. “Recusei muitos convites para ser candidata, quando entrar [na Câmara Municipal] quero deixar um legado, pois o nosso lugar é onde nós quisermos e não onde dizem que devemos ficar”.

Apesar do avanço, muito embora tardio na visão da população LGBTQI, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) cobra do TSE regras mais rígidas para o uso do nome social, a fim de que ele de fato cumpra o papel de reconhecimento das pessoas trans.

“Após criteriosa análise caso a caso [da lista de candidatos do TSE], identificamos sete pessoas cisgênero que solicitaram o nome social, mesmo quando essa possibilidade é de uso exclusivo das pessoas trans”, destacou a entidade em nota. Para a Antra, as pessoas cisgênero já dispõem do direito de uso de um nome na urna com o qual se identificam ou são identificadas.

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo Representativo, com o apoio do Google News Initiative”.

AUTOR
Foto Kleber Nunes
Kleber Nunes

Jornalista formado pela Unicap e mestrando em jornalismo pela UFPB. Atuou como repórter no Diario de Pernambuco e Folha de Pernambuco. Foi trainee e correspondente da Folha de S.Paulo, correspondente do Estadão, colaborador do UOL e da Veja, além de assessor de imprensa. Vamos contar novas histórias? Manda a tua para klebernunes.marcozero@gmail.com